Exposições

Fotografia latino-americana é destaque na programação do festival de Arles 2017

Sérgio B. Gomes Publicado em: 1 de setembro de 2017

Equador, de Paco Salazar, Quito, 1994. Cortesia do artista.

Este ano, os Encontros de Fotografia de Arles, um dos principais festivais de fotografia do mundo e que toma conta da cidade do interior francês nos meses de verão, tinham a clara intenção de abraçar uma grande diversidade de geografias e de congregar no mesmo espaço diferentes identidades ligadas à produção de imagem, sobretudo fotográfica, mas não só. A fotografia pode ser uma ferramenta útil para decodificar o que ocorre numa sociedade, num país, num bairro, numa casa, num cotidiano individual ou coletivo, por mais “fechada” ou turbulenta que seja essa realidade. Nesse exercício de olhar para o que nos é distante (a partir de e em qualquer direção), há sempre armadilhas ligadas a exotismos vários, maravilhamentos cegos, paternalismos exagerados e atitudes condescendentes. Em suma, o perigo de olhar para o outro como se ele fosse “o outro” e não nós mesmos.

A primeira virtude da programação proposta este ano por Sam Stourdzé, diretor do evento, é a de ter conseguido reunir uma série de mostras dentro do tema Latina!, que se impuseram por mérito próprio nos pontos nevrálgicos da intrincada (e disputada) coreografia de exposições do centro de Arles. Ou seja, mesmo se não fosse uma das principais linhas dos Encontros e nem se beneficiasse de um (natural) acréscimo de visibilidade entre as iniciativas do festival, a existência dessas exposições no coração da cidade já teria sido uma aposta ganha.

Numa edição particularmente eficaz na construção e desconstrução de conceitos rígidos relacionados com fronteiras (muito além da sua acepção política e das linhas imaginárias ou físicas que separam países), Latina! não cumpriu aquele papel burocrático e politicamente correto de preenchimento de uma cota geográfica que eventualmente lhe estivesse “reservada”. Nem se abrigou à sombra do forte impulso proporcionado pela atual celebração do França-Colômbia, que tem desdobrado iniciativas de todo o tipo nos dois lados do Atlântico. Nestas ocasiões, quando jorra dinheiro público e há por parte dos dois celebrantes a intenção de não melindrar o outro de maneira nenhuma, qualquer coisa que se ponha no avião para cruzar o oceano (do mais medíocre ao mais institucionalmente domesticado) pode muito bem ser louvada com a grandeza de uma obra-prima. Não foi o caso de Latina! que, para além de Stourdzé, tem a marca de mais cinco curadores.

Sem ser extraordinariamente ambiciosa em número de exposições, a programação do Latina!, orientada em torno de quatro mostras, revela-se muito equilibrada e diversificada no que diz respeito aos usos da imagem fotográfica, reunindo trabalhos que tanto indicam como essa estética é levada a extremos por artistas visuais contemporâneos (mais próximos ou mais distantes), como recuperam as utilizações do fotográfico nas mais diversificadas manifestações da imagética vernacular. Esse equilíbrio manifesta-se ainda na tipologia das exposições, com duas coletivas muito distintas (Pulsões urbanas – fotografia latino-americana, 1960-2016 e A volta – 28 fotógrafos e artistas colombianos), uma retrospectiva (Paz Errázuriz – uma poética do humano) e aquilo que podemos chamar de turbilhão kitsch (A vaca e a orquídea – fotografia vernacular colombiana).

A escolha de ocupar vários ambientes da cidade também se revelou certeira. As exposições de Latina! não foram confinadas a um único lugar, detalhe que pode parecer sem importância, mas que ajuda a quebrar uma velha tentação de juntar “os da mesma origem” no mesmo espaço, um bairrismo onde o difícil é encontrar algum efeito positivo.

No geral, o destaque negativo vai para a pouco equilibrada representatividade do gigantesco universo latino-americano, com um claro favorecimento da Colômbia, em detrimento de outros grandes universos fotográficos desta região, como o clássico México (por sinal, já muito revisitado) ou a Argentina e o Brasil, ainda pouco conhecidos na Europa, para além dos grandes nomes. Devido à celebração do ano França-Colômbia, isso era algo esperado, mas não obrigatório. Os Encontros podiam ter aproveitado o foco sobre um país e voltar os olhos para toda a região, que a própria organização apelidou de “terra da fotografia”.

Colômbia, de Viki Ospina, Bambuco, 1977. Cortesia do artista.

Um extraordinário exemplo da riqueza dessa produção em torno da fotografia é dado por Pulsões urbanas, exposição de onde se sai com a sensação de conhecer pouco este universo fotográfico. Organizada a partir da vasta coleção privada de Leticia e Stanislas Poniatowski – que há 15 anos reunem imagens produzidas na América Latina, com foco na vivência da cidade – , Pulsões é uma das exposições mais surpreendentes da programação de todo o festival. Isso se dá não tanto pela visão renovada e ampliada com que nos apresenta o vibrar da cidade latino-americana (o que já seria bom), mas sobretudo pela potência do que é mostrado e pela riqueza de olhares com que o faz. Percorrendo as paredes, é possível sentir a força, a violência, a tensão, a saturação e o imenso frenesi da urbe. Depois de duas apresentações no Museu do Banco da República de Bogotá, em 2013, e, um ano depois, no ICP, de Nova York, com o nome Urbes Mutantes, a exposição que chega agora a Arles foi reformulada de maneira a receber novas imagens e novos artistas da mesma coleção que, contam os curadores Alexis Fabry e María Wills Londoño, não para de crescer.

A dupla Fabry/Londoño, que já assinou outras mostras tendo a América Latina como pano de fundo, como a Fogo latino (PhotoEspaña 2015), a partir da coleção de Anna Gamazo de Abelló, consegue a proeza de nos manter permanentemente atentos numa exposição com centenas de fotografias. E, no final, com vontade de ver ainda mais, de perceber como a cidade se tornou um ente que respira, que vive e morre, que se embeleza, que festeja, se contorce, se expande e se mutila. A cidade como utopia modernista e como um dos símbolos máximos do triunfo capitalista.

O movimento das cidades foi sempre sujeito privilegiado dos fotógrafos. Tem a fotogenia (que uma certa fotografia procura) e a transformação que toda a fotografia gosta de contrariar. Pulsões urbanas concentra-se na produção fotográfica dos últimos 50 anos para construir um panorama rico que nos põe a pensar (como era desejo dos curadores) sobre “os efeitos das mutações e as hibridações” a que foram sendo sujeitos os grandes centros urbanos latino-americanos, driblando toda a carga de falsa alteridade sugerida pelo exotismo e o seu imaginário visual indígena e rústico. Vemos a cidade encravada entre as contradições de um mundo pré-ibérico e outro pós-colonial, a maneira por vezes desorganizada como cresce, assimilando o rural e o popular, fazendo-os viver em cápsulas do tempo no meio de um progresso inexorável, estridente e amoral.

Num percurso dividido por nove grandes grupos, que começa em Aberto à noite e termina em Os condenados, esta é uma daquelas exposições que devia empreender a reescrita da história da fotografia canônica construída a partir de perspectivas demasiado “europeizadas”. Ainda assim, apesar da imensa diversidade de autores oriundos de geografias latino-americanas (com destaque para a Colômbia e o Chile), o Brasil está claramente sub-representado, com apenas três fotógrafos em todo o percurso: Rosa Gauditano, Ayrton de Magalhães e Miguel Rio Branco.

Evelyn, de Paz Errázuriz, da série Pomo de Adão, La Palmera, Santiago, 1983. Cortesia da galeria AFA, Santiago, Chile.

A partir dos artistas escolhidos para Pulsões urbanas poderiam ser feitas várias exposições retrospectivas como a que foi dedicada a Paz Errázuriz, tal a profusão de percursos artísticos de grande calibre, como os de Fernell Franco, Johanna Calle ou Armando Cristeto. O que vemos no Atelier de la Mécanique é a singularidade, a teimosia e uma capacidade ímpar de mostrar mundos que foram sendo atirados para as margens (prostitutas, cegos, travestis, artistas de circo, alcoólatras, mendigos…). Ao percorrermos as séries de Errázuriz, percebemos como é extraordinariamente sutil a sua maneira de nos pôr a olhar para o que geralmente se esconde, para o que não quer ser visto ou para o que, como na maior parte dos casos, é escondido.

Demônio negro, de Paz Errázuriz, da série Lutadores do ringue, 2002-2003. Cortesia do artista.

Paz, dizem as suas notas biográficas, mais do que uma andarilha foi uma nômade no seu país, galgando lugares remotos que vão da Patagônia às ruas de Talca, Valparaíso ou Santiago. Não fez, contudo, da paisagem o seu objeto fotográfico, preferindo quase sempre o rosto humano, na sua imensidão, na sua singularidade. Na grande retrospectiva apresentada em Arles (vinda da Fundação Mapfre, em Madri), confirmamos como Paz Errázuriz nunca precisou apontar dedos acusadores para dizer com a sua fotografia aquilo que sempre quis dizer; vemos com nitidez e sem subterfúgios de nenhum tipo a sua opção de se colocar ao lado dos que estão em situações sociais mais fragilizadas e desprotegidas; percebemos como nunca precisou gritar para falar com autoridade, que lhe advém da imensa solidez ética com que foi construindo a sua obra, da qual fazem parte séries tão emblemáticas quanto Pessoas, Memento mori, O pomo de Adão, Prostíbulos, Cegueira, Os nômades do mar, A luta contra o anjo ou O circo. Saímos do meio do trabalho de uma vida, como o de Paz Errázuriz, com várias imagens na memória, como aquele rosto do boxeador VI, eterno, quase imaculado.

Jogo de probabilidades, de Oscar Muñoz, 2007. Cortesia do artista e da galeria Mor Charpentier, Paris.

Ao contrário das duas exposições já referidas, A volta – 28 fotógrafos e artistas colombianos foi produzida especificamente para os Encontros. Em dois pisos da capela Saint-Martin du Méjan é possível sentir o pulsar da produção artística contemporânea colombiana que lida com a imagem fotográfica e com o vídeo. Ao contrário de uma das exposições mais badaladas da edição deste ano, Irã, ano 38, cujos 66 autores apresentados parecem poucos diante do que há para se mostrar e dizer sobre o país, os 28 nomes escolhidos para A volta dão a impressão de muitos para o estado da arte que se quis levar até Arles e que parte do final dos anos 80 até hoje. A maioria lida com questões históricas traumáticas dos últimos 60 anos, profundamente marcados por tensões sociais e políticas e pela guerra civil. Neste particular, a exposição parece bem resolvida com um punhado de obras de grande intensidade e valia (casos de Óscar Muñoz e Miguel Ángel Rojas). No entanto, áreas como Cartografias urbanas, onde há trabalhos relativamente redundantes (Rosario López e Andrea Acosta), deixam a sensação de que seria necessário escavar muito mais o passado para trazer propostas mais estimulantes e criativamente surpreendentes.

Ao mesmo tempo que cita os mais recentes desenvolvimentos políticos (e históricos) do país (acordo de paz entre o Governo e as FARC, rejeição do referendo sobre os termos desse acordo, Prêmio Nobel da Paz para o Presidente Juan Manuel Santos), dando a entender que será possível encontrar produção artística nova em relação a esses acontecimentos (o que não chega a acontecer em nenhuma das obras apresentadas), A volta promete um estado da arte do “dinamismo” das últimas décadas. Certo é que, não desmerecendo o retrato que é feito sobre isso, os curadores parecem ter sido apanhados pelo turbilhão de acontecimentos que rodearam a Colômbia nos últimos meses sem que tenham tido a capacidade de lhes responder com arte fresca, recente. Sabemos que seria um exercício bem mais arriscado, apesar de mais estimulante – descobrir a arte que parece andar ombro a ombro com as últimas manifestações da realidade.

Hulk, de Juan Pablo Echeverrí, 2011. Cortesia do artista.

A coletiva A volta, com curadoria de Stourdzé e Carolina Ponce de León, pretendia sentir o pulso da arte da Colômbia contemporânea, mas a sensação que fica é que a realidade enganou-a, e fez com que passássemos a olhar para ela sobretudo como o resumo de um mundo defasado do momentum atual. Sem dúvida esse sentimento é evidente nos trabalhos cuja mensagem política é explícita, mas A volta apresenta propostas de outros universos criativos, como aquele que lida com o meio ambiente e com a natureza, onde se destaca Alberto Baraya, com Herbário de plantas artificiais (2012-2016), uma fina ironia ao deslumbramento colonial pela natureza exuberante, ou (outra vez) Johanna Calle, com Terra quente (2012-2013), um exercício de percepção, de escala e de memória sobre os poderes latentes do fotográfico; ou ainda as propostas que se concentram na vivência nas cidades, com destaque para o vídeo Ação de repetição (2010), de A virgem do milagre produções, uma reflexão estimulante sobre o  cotidiano social e psicológico urbano; ou Andrés Felipe Orjuela, com Arquivo morto (2013), um trabalho que lida com a construção e com a deformação da realidade a partir de fotografias do arquivo do extinto tablóide El Espacio.

Anônimo, anos 1980.

No que diz respeito a confusão de realidades, A vaca e a orquídea – fotografia vernacular colombiana é imbatível. Diz Timothy Prus, curador da mostra, que “a Colômbia, à semelhança da fotografia, nunca é aquilo que pretende ser”. A exposição que montou em Arles – dando continuidade a uma presença  constante do vernacular na programação oficial, trazida sobretudo pelo holandês Erik Kessels – demonstra de forma aguda como essa afirmação provocatória pode ter algum fundo de verdade. As paredes do espaço Croisière estão carregadas de imagens que Prus, editor do Arquivo de Conflitos Modernos, juntou ao longo dos últimos dez anos. E se à primeira vista temos a sensação de estar perante um amontoado caótico, um olhar um pouco mais demorado faz com que descubramos logo outras imagens – umas dentro das outras, umas sobrepostas às outras; umas grandes, como pano de fundo de outras, menores; umas bidimensionais, outras tridimensionais; outras ainda a surgir na nossa imaginação.

Dois lutadores, Bogotá, 1956. Cortesia de Manuel H.

Para A vaca e a orquídea, Prus convocou de maneira emocional e intuitiva toda a parafernália da imagética vernacular (capas de discos, fotografias de estúdio, fotografias de rua…), juntou um pouco de fotografia histórica (há albuminas e cópias de outros processos de impressão históricos), uns grãos de imagens com um toque vintage e ainda uns grãozinhos de pretensa “fotografia de autor”. A caldeirada tem ingredientes de sobra, mas é impossível entrar na Croisière e não participar por um momento que seja neste festim da imagem; de provar um pouco da tragicomédia servida por um país que viveu décadas mergulhado na incerteza e que agora vislumbra voltar à normalidade.

Ao mesmo tempo que somos esmagados por uma avalanche de imagens de uma incrível diversidade, sentimos a tentação de fazer um certo tipo de respiração através delas, como se fossem o tônico certo para nos fazer descansar ao ritmo de uma música onipresente, que não cessa. A ausência de tese (quem vê é que decide o que quer retirar do que lhe é mostrado), ou de qualquer sentido óbvio levam-nos a uma espécie de êxtase, um estado em que podemos escolher qualquer caminho sem medo de errar. Em A vaca e a orquídea (dois símbolos nacionais de Colômbia) todos os caminhos contam e todos servem para chegar a algo que vagamente se possa chamar de “objetivo”: o prazer da imagem.///

 

Sérgio B. Gomes é jornalista e escreve sobre fotografia no jornal português Público desde 1999. É pesquisador da história da fotografia em Portugal, júri de vários prêmios, curador de exposições e editou por dez anos o blog Arte Photographica (2005-2015).

 

 

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