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Alfredo Jaar e as lutas políticas das imagens

Dária Jaremtchuk Publicado em: 19 de novembro de 2021

 

Exposição Alfredo Jaar – O lamento das imagens, em cartaz no Sesc Pompeia, SP, 2021. Crédito: Everton Ballardin.

O próprio título da mostra de Alfred Jaar, O lamento das imagens, já indica que a fotografia está no centro do debate. Desde o início da carreira do artista, problemas sobre a produção e a circulação de imagens e estratégias de representação ocupam lugar privilegiado em sua poética. Para ele, o problema não incide na avalanche diária de imagens ou na intensidade de seus fluxos acentuados pelos meios de comunicação digitais a que somos submetidos, mas na ausência de contextualização dessas imagens. A exposição no SESC Pompéia, em São Paulo, cuidadosamente planejada pelo artista, exibe alguns trabalhos emblemáticos em que o artista procura ativar a potência e o poder de afetação da imagem e é rara oportunidade para se experimentar a força dos dispositivos de exibição criados por ele, sempre com o objetivo de reverter processos de despolitização das imagens.

 

Exposição Alfredo Jaar – O lamento das imagens, em cartaz no Sesc Pompeia, SP, 2021. Crédito: Everton Ballardin.

Dentro do galpão do SESC Fábrica-Pompéia, Jaar construiu três grandes estruturas arquitetônicas retangulares que, pela escala e aparência metálica, estabelecem um contraste direto com as paredes de tijolos aparentes do espaço e colocam o visitante em uma perspectiva racional de aproximação com os trabalhos. O público é conduzido de forma inequívoca e sem distração para o interior das grandes caixas aparentemente herméticas. Dentro delas, estratégias bem calculadas, como design meticuloso e cenografia parcimoniosa, organizam e dirigem o fluxo da visita. O artista delimitou o percurso e criou o isolamento necessário para que as diretrizes de cada trabalho possam ser assimiladas com cuidado pelo público. Imagens e textos bem-posicionados favorecem posturas silenciosas, olhares exclusivos e perscrutadores, e a necessária compenetração para que as narrativas selecionadas possam ser acompanhadas de modo apropriado. Em diversos momentos, corredores semiescuros e efeitos luminosos trazem sensações de vulnerabilidade e instabilidade ao corpo do visitante.

 

Exposição Alfredo Jaar – O lamento das imagens, em cartaz no Sesc Pompeia, SP, 2021. Crédito: Everton Ballardin.

Lamento das imagens é um desses casos, trabalho constituído por dois ambientes escurecidos. Logo no primeiro, três blocos de textos “saltam” da parede por causa da forte iluminação interior das letras. O fragmento inicial informa que Nelson Mandela não chorou, por ausência de lágrimas em seus olhos, quando saiu da prisão em 1990, após quase três décadas de reclusão. Durante os anos no cárcere, sua visão foi lesionada devido ao trabalho de extração de calcário, que realizou sem qualquer tipo de proteção visual, apesar dos protestos dos prisioneiros envolvidos nessa atividade. Já o segundo texto apresenta a história de uma mina na Pensilvânia que, em 1950, havia sido transformada em abrigo contra bombas e hoje armazena 65 milhões de imagens pertencentes à Corbis, maior agência de imagens do mundo, de propriedade de Bill Gates. Por fim, o último bloco de palavras revela que o governo dos Estados Unidos comprou todas as imagens referentes aos ataques que realizou em Cabul, em 2001, após a queda das Torres Gêmeas em Nova Iorque, com isso estabelecendo uma única versão oficial e impedindo qualquer contra narrativa acerca dos fatos. Terminada a leitura dos escritos luminosos, o visitante é dirigido para o segundo ambiente, onde se depara com uma tela fortemente iluminada que, pela intensidade da luz, constrange o visitante a proteger seus olhos. Assim, essa experiência física incômoda, provocada pela excessiva claridade, pode ser compreendida como um momento síntese e uma conexão entre as três narrativas sobre privação, ocultamento e domínio, resultantes de ações de regimes de controle e de poder e apresentadas no ambiente anterior. Na era da saturação midiática das imagens em nossos cotidianos, Jaar constrói uma abordagem que trata do ocultamento e do não deixar-ver. Se a Mandela a visão do mundo foi interditada pela prisão, que quase o cegou para todas as cores além do branco agressivo, a todos nós as imagens depositadas nas minas pelo poder econômico, ou produzidas pelos satélites sob controle do poder militar, são inacessíveis. Por outro lado, a ambientação contrastante entre claro-escuro, recurso repetido nas outras caixas-ambientes da mostra, não deixa de fazer referência à própria ontologia do suporte fotográfico tradicional.

 

Se na composição de Lamento das imagens Jaar utilizou apenas palavras, Sombras foi composta exclusivamente por imagens. O trabalho parte de cenas produzidas por Koen Wessing em 1978, na Nicarágua. Detalhes sobre a história são mais bem conhecidos na entrevista concedida pelo fotojornalista, que é exibida na parte externa e posterior da caixa-ambiente. Para a reapresentação do episódio ocorrido na América Central, Jaar selecionou fotogramas e os dispôs em caixas de luz logo no primeiro espaço escurecido da ambientação. Observando as imagens, é possível reconhecer militares armados revistando um conjunto de passageiros enfileirados do lado de fora de um ônibus parado em uma estrada de chão batido. Na imagem seguinte, há um corpo caído no chão com ferimento na cabeça, o que faz presumir que foi assassinado pelas forças repressivas do governo. Nos fotogramas restantes, há cenas de pesar e de sofrimento relacionadas àquela morte. Adentrando o ambiente, na sala seguinte o visitante encontra uma imagem projetada em grande escala de duas mulheres, presumidamente as filhas do homem assassinado, que manifestam seus sentimentos provocados pela dor daquela perda. O desespero é revelado pela postura de seus corpos em transe, que parecem querer abraçar no ar o corpo já ausente de seu pai. Paulatinamente, essa projeção se altera e o entorno que as circunda, provavelmente a estrada que as conduz ao encontro com o corpo do pai assassinado, se transforma em um fundo plano e negro. Esse recurso de congelamento ressalta a força das expressões corporais das duas mulheres e evidencia a intensidade da dor que carregam, comunicada, assim, sem rota de escape ao olhar distraído do visitante que acompanha o conjunto de imagens que compõem aquela história. Em seguida, as mulheres mesmas se tornam silhuetas brancas destacadas da densidade e recortadas da superfície negra que as envolve para, repentinamente, toda a cena se esvair e se tornar completamente branca e de intensa e ofuscante luminosidade, o que leva o público, mais uma vez, a proteger os olhos. De modo direto, essa instalação visibiliza e singulariza uma história de brutalidade comumente naturalizada pelos meios de comunicação, que costumam associar cenas de violência a espaços geográficos determinados. Possivelmente este seja o trabalho da mostra em que as fricções entre gêneros fotográficos aparecem de modo mais acentuado, assim como a confluência entre vários campos artísticos, como as artes visuais, a fotografia, o teatro, o cinema e a arquitetura. O fotojornalismo ou a fotorreportagem parecem gêneros insuficientes para que a narrativa seja analisada com o devido cuidado. Como o puro conteúdo das imagens que circulam social e midiaticamente não tem sido capaz de promover indignação e ações críticas, Jaar acredita que a arte pode fazê-lo de algum modo. Isso porque o âmbito da arte concede a longevidade necessária às imagens e pode mostrar o que as imagens fotográficas ainda são capazes. Para o próprio artista, o trabalho de arte é uma resposta a uma situação de vida, a um acontecimento real, e não um processo inventivo ou fantasioso. Mas os artifícios empregados pelo artista para a retenção da atenção do público seriam suficientemente capazes para gerar indignação ou promover algum tipo de ação ou intervenção contra uma realidade inaceitável? Como ele próprio admite, novos dispositivos com tais objetivos são constantemente explorados e testados em cada nova exposição.

 

Exposição Alfredo Jaar – O lamento das imagens, em cartaz no Sesc Pompeia, SP, 2021. Crédito: Everton Ballardin.

Do conjunto exposto, Fora de equilíbrio é o único trabalho diretamente relacionado ao contexto brasileiro. Composto por fotografias produzidas em 1985, ano em que Jaar visitou Serra Pelada, garimpo localizado no interior do Pará que atraiu um surpreendente contingente humano, o conjunto traz alguns dos personagens daquela história. Sem qualquer ambientação histórica ou geográfica, os corpos dos garimpeiros, que têm sua condição laboral identificada pela vestimenta e pelas cores que cobrem as suas peles, foram recortados, singularizados e arranjados de modo descentralizado nas superfícies das caixas luminosas. Estas, por sua vez, foram dispostas separadamente na exposição que, pela atração e repetição do suporte luminoso em lugares diferentes, produzem um efeito de amálgama visual. Porém, a soma dessas unidades distribuídas pelo espaço da exposição parece ser suficiente para reunir o contingente humano e rememorar as condições aviltantes sofridas pelo impressionante formigueiro humano que no passado explorou e escavou o solo do garimpo. Contudo, o conjunto parece sinalizar que a condição de pobreza daqueles personagens, assim como os danos irreversíveis ao meio ambiente resultantes daquela experiência de exploração de ouro, sobrevivem ao tempo. Como no trabalho Sombras, aqui também Jaar promove a contextualização das imagens em uma narrativa oferecida pelo seu trabalho, resgatando-as do caos imagético em que normalmente circulam, para ao final descontextualizá-las radicalmente, retirando-lhes todos os referenciais espaciais e temporais, de modo a reapresentar-lhes como universais e, assim, pertinentes ao público da exposição.

 

Exposição Alfredo Jaar – O lamento das imagens, em cartaz no Sesc Pompeia, SP, 2021. Crédito: Everton Ballardin.

A África tem atraído o interesse do artista faz algum tempo e na mostra em São Paulo há duas obras conectadas com aquele continente, nas quais o elemento água é tema e matéria fundamental. Formalmente atrativa, a imagem Um milhão de pontos de luz é exibida em escala generosa e dela sobressaem os brilhos refletidos na superfície do fluxo de água. A miríade de reflexos transforma a densidade material do volume aquoso em incandescência luminosa, acentuando a beleza e a flexibilidade daquele elemento vital. Próximo à projeção, o público encontra a mesma imagem impressa em cartão postal, e quando lê no verso as palavras do artista, compreende que a incandescência da imagem se refere à conexão entre a África e a América do Sul, mais precisamente o Brasil. Jaar revela que quando esteve em Luanda, Angola, apontou sua câmera ao oceano Atlântico em direção ao Brasil e o que conseguiu captar foi um milhão de pontos de luz. O gesto do artista, associando ambos os continentes e contextos geo-históricos, faz rememorar que a colônia portuguesa havia sido um lugar emblemático para o tráfego de escravos enviados para as Américas. O caminho que Jaar buscou apreender com a sua máquina se transformou em reflexo incandescente na imensidão do oceano, como se aquele caminho prenhe de sangue e de sofrimento impingido aos corpos negros escravizados fosse incapaz de se transformar em qualquer tipo de imagem. A dor moral e o infortúnio do tráfego de escravos não parecem relegados ao passado, pois, ao final do texto impresso no postal, ele recorda que mais da metade da população brasileira “descende direta ou parcialmente de africanos”.

 

Exposição Alfredo Jaar – O lamento das imagens, em cartaz no Sesc Pompeia, SP, 2021. Crédito: Everton Ballardin.

Geografia = Guerra compõe-se de um grande conjunto de barris tingidos de preto, preenchidos com água e dispostos no espaço expositivo, em diálogo direto com o lago criado por Lina Bo Bardi para o galpão do SESC, também conhecido por espaço de convivência. Sobre alguns barris foram dispostas caixas de luz que, no momento da aproximação do visitante, possibilita a percepção de imagens parcialmente refletidas sobre a superfície aquosa dos tonéis. O peso físico do conjunto de barris pretos contrasta com as caixas de luz branca e com a projeção de imagens na superfície líquida. Entre elas, se reconhecem fragmentos de imagens de crianças, de adultos negros e de homens vestidos com macacões brancos e com as faces cobertas por máscaras de proteção. O efeito da refração retalhada dos corpos na superfície dos tonéis impossibilita que o visitante refaça ou recomponha uma cena completa do que pode ter acontecido. As caixas de luz foram posicionadas próximas às bordas dos tonéis e fazem com que o visitante se curve para conhecer a origem dos reflexos e assim perceber que somente fragmentos daquela tragédia humana se refletem e se espraiam para fora daquele contingente geográfico. Mesmo que qualquer realidade não possa ser representada por nenhuma imagem, a história se recompõe quando se compreende que as fotografias da instalação foram feitas pelo próprio Jaar, que viajou até Koko, na Nigéria, para averiguar a denúncia do envio clandestino de cargas com substâncias tóxicas provindas de Pisa, na Itália, para serem “guardadas” em uma comunidade rural. A população local que vivia próxima ao terreno de disposição dos resíduos desconhecia o risco das substâncias tóxicas e cancerígenas que passaram a “guardar”. Ao mesmo tempo em que a terra utilizada para o plantio de alimentos foi atingida pela carga tóxica, habitantes daquela vila camponesa desenvolveram doenças graves e alguns morreram. O caso revela a perpetuação de negócios espúrios de exploração econômica de modelo colonial que desvaloriza a vida de seres habitantes de espaços geográficos considerados periféricos, com o propósito sistemático de obtenção de lucros invariavelmente estratosféricos.

 

Exposição Alfredo Jaar – O lamento das imagens, em cartaz no Sesc Pompeia, SP, 2021. Crédito: Everton Ballardin.

Por fim, Cultura = Capital, trabalho composto por essas duas palavras em neon vermelho, nos faz lembrar da ingerência financeira no meio artístico, mas também que a arte é o maior capital a ser cuidado, preservado e sempre defendido, como o próprio Jaar pleiteia. Em um mundo prenhe de cultura mediatizada, em que algoritmos, fragmentos de informações e fake news se disseminam, o artista nos lembra que a arte é o lugar em que novos modelos de pensar, de mudar o mundo e de sonhar são possíveis. Mas, para que a criação de novas realidades tenha lugar, é necessário que o espaço da arte seja preservado e defendido dos ataques de governos autoritários e protofascistas, que insistem em deixar queimar acervos, destruir instituições e atacar a liberdade de pensamento. ///

 

Dária Jaremtchuk é professora de História das Artes na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP. Autora de Anna Bella Geiger: passagens conceituais (C/ARTE, 2008) e Arte e Política: situações (Alameda, 2010).

 

 

 

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