Entrevistas

Entrevista: o filósofo François Soulages e a estética da fotografia na era digital

Gabriel Menotti & Bruno Zorzal Publicado em: 2 de outubro de 2017

Lager, 2015, de Bruno Zorzal, participante do colóquio Imagens de imagens. Fotografia cedida pela autor.

Há 20 anos, o filósofo e pesquisador francês François Soulages lançava Estética da Fotografia – Perda e Permanência. No livro, Soulages propunha que a fotografia fosse tratada como um objeto teórico relevante, digno de ser analisado a partir de suas próprias bases técnicas. A obra rapidamente se tornou um marco no pensamento crítico sobre a imagem, ganhando versões traduzidas em mais de dez países, inclusive no Brasil.

No começo de setembro, Soulages esteve na Universidade Federal do ES, em Vitória, para participar do colóquio Imagens de imagens. O pesquisador Bruno Zorzal e o professor Gabriel Menotti aproveitaram a ocasião para conversar com ele sobre a recente reedição de Estética da Fotografia na França , considerando as diversas transformações tecnológicas que transcorreram nessas duas décadas desde a sua publicação. De que modos essa obra de referência faz frente ao digital?

Na entrevista, o professor da Universidade Paris 8 e do Instituto Nacional de História da Arte e fundador da cooperativa de pesquisa RETINA.International, aborda seus interesses de pesquisa mais recentes, a popularização das selfies, o alcance das “imagens fluidas” e outras questões da fotografia contemporânea.

 

Como ler e pensar seu livro Estética da fotografia hoje, quase 20 anos após a primeira edição?

O mundo da fotografia e o mundo em geral se transformaram nesses 20 anos. No campo da fotografia, acredito que houve dois grandes eventos que deram origem a transformações sociológicas e estéticas. Tecnologicamente, houve o desenvolvimento do digital. E houve também o surgimento da selfie.

Quando escrevi Estética da fotografia, me perguntei se as hipóteses com que estava trabalhando, relacionadas à película e ao negativo, se sustentariam e seriam fecundas com o digital. Conversei com meu amigo Edmond Couchot, um grande especialista em artes e tecnologias da imagem, e nos demos conta de que sim, confrontando a questão material, poderíamos manter as mesmas hipóteses. O que não imaginávamos é que haveria essa multiplicação do digital, esse transbordamento do digital. E nós não fomos os únicos. A própria Kodak, que era imensa na fotografia e financeiramente, perdeu completamente a virada do digital.

A selfie se desenvolveu de maneira igualmente surpreendente. É uma segunda revolução, que poderíamos acreditar que seria apenas uma moda, mas que foi assimilada pelo mundo. Poderíamos dizer que o desenvolvimento da selfie é o que salva a fotografia. A fotografia é relançada com a selfie, de uma maneira muito forte. Por quê? Porque é o retorno do ego no mundo globalizado. Cada vez mais as pessoas existirão, ou terão o sentimento de existir, sob a necessidade de criar práticas que lhes dêem a sensação, ou a ilusão, de existir. Então, de certa maneira, o efeito da globalização é o desenvolvimento da selfie.

Memory pool, 2016, de Miro Soares, participante do colóquio Imagens de imagens. Fotografia cedida pela autor.

Depois de esboçar esse horizonte que mostra por que sua questão é legítima, eu diria que nossa Estética da Fotografia e as teses levantadas por ela podem, sim, ainda ser interessantes. Uma das principais teses que desenvolvi no livro é a de que era preciso estudar a fotografia esteticamente, como estudamos a pintura, a literatura ou a performance. A partir de uma abordagem teórica da realidade da fotografia, sem se perguntar se ela é ou não artística, analisar o que de fato a constitui. E eu enxergava ali o tempo. Primeiro, o tempo de fabricação da película ou da matriz digital; depois, o tempo de exploração da película e da fotografia digital. Por isso eu dizia 20 anos atrás, e digo ainda hoje, que toda foto é uma imagem da imagem. Uma imagem feita a partir do negativo. Ou uma imagem feita a partir de uma matriz digital. Nunca estamos diante da pura impressão, mas da exploração dessa impressão. Não estamos diante do crime, mas da investigação policial a partir do crime. Isso quer dizer que a fotografia não é simplesmente matar algo de uma só tacada, mas antes de tudo se perguntar, diante deste negativo ou desta matriz digital, o que farei deles. Postarei essa imagem na internet? Farei uma série de imagens a partir de minha primeira imagem? Articularei essa imagem com som? Aqui reside também sua riqueza.

Em suma, dizia eu lá atrás com meu livro, que a fotografia é a incrível articulação entre o irreversível e o inacabável. Irreversível porque ela mostra algo que não ocorrerá outra vez: o negativo se transformou em imagem e a matriz digital foi criada. Inacabável porque posso continuar a fazer imagens a partir disso. As coisas não terminam quando estou com o negativo, com a placa de vidro. Você pode dizer: mas podemos manter essa placa de vidro tal como ela é. Sim, poderíamos guardar o negativo assim, como fez Claude Maillard. A matriz digital seria algo mais afeito à arte conceitual, e entediaria profundamente as pessoas. Tudo isso é verdade. Mas quando estamos diante de uma placa de vidro ou um negativo, podemos colocar a luz por trás ou expô-la de uma forma ou de outra. É uma escolha. Portanto, estamos começando e não terminando. Não acaba. Mesmo nos casos em que não há uma tiragem em papel fotográfico, ou quase, em que não há a fabricação de uma imagem no sentido tradicional do termo, o processo continua. E depois vem a exploração da exploração. O que é fascinante é que, embora o criador seja importante, por vir no início, o receptor também o é, pois é ele que fará uma imagem a partir de tudo isso. A última imagem criada é a imagem que faremos em nossa cabeça.

As bases da Estética da fotografia permanecem: relação com o real, relação com a própria fotografia, relação com o sujeito, relação com o fotografável, relação com o lugar onde aquilo se passou, relação com o tempo etc. etc. etc. Sua função era, em primeiro lugar, de engajamento. Dizer: “sim, podemos estudar a fotografia como estudamos a escultura”. Em segundo lugar, dar bases teóricas sobre as quais essa estética geral pudesse se desenvolver. Tentar compreender o lugar da fotografia, para que se tenham menos julgamentos pessoais, subjetivos — que só têm relevância para sociólogos que querem ver o que interessava às pessoas de uma certa época da história. Tentar, portanto, criar uma reflexão fundada na razão. Uma espécie de árvore cujas raízes se fixassem na materialidade técnica da fotografia. E mostrei como essa materialidade técnica, embora seja diferente na passagem do uso analógico para o digital, do negativo para a matriz digital, não é algo radicalmente diferente. Em seguida, se forma um tronco que irá constituir os grandes princípios. Logo, brotarão ramificações pelas quais chegaremos progressivamente a estéticas particulares, singulares, locais, como diria [Gaston] Bachelard.

Com o digital, surge uma tendência de empregar a fotografia não mais apenas como fotografia, mas também como vídeo, como cinema, novas mídias. Você vê nesse hibridismo elementos para uma ruptura teórica ou o surgimento de um novo paradigma de imagem?

É preciso primeiro constatar um fato: que há pessoas que fazem fotografia digital, e que antes faziam fotos analógicas, e que, grosso modo, fazem o mesmo tipo de fotografia. Mas há também uma questão que poderíamos chamar de ontológica: é o “ser” da fotografia digital o mesmo da fotografia analógica? Tentei dizer agora há pouco que poderíamos, mutatis mutandis, sem deixar de observar as diferenças, ver as coisas assim. Mas não dissemos tudo.

Acredito que uma estética não responde apenas a uma ontologia. Uma estética deve responder também a uma midiologia, ao uso que se faz da fotografia. A questão é a seguinte: há usos diferentes da fotografia digital em relação à fotografia analógica? Sim. Esses usos são secundários ou principais? São principais. Portanto, a fotografia digital, que pode ser usada como a fotografia analógica, quando é utilizada com as potencialidades do digital, quando ela efetua o que chamo de “digital global”, em todas as articulações que existem, todas as possibilidades, ela se torna diferente.

É preciso suprimir o termo fotografia? Não sei. Deixemos de lado questões relativas ao nome de batismo. Primeiro, tentemos compreender as coisas. O que caracteriza as fotografias digitais é que posso agrupá-las num computador, utilizá-las com uma rede e fazê-las circular de uma forma inteiramente outra. Portanto, o que importa na fotografia digital, para mim, é a circulação. Isso quer dizer que chegamos a um terceiro momento da imagem. Houve um primeiro momento com a imagem estática da fotografia. Um segundo momento com a imagem em movimento do cinema. E um terceiro momento, agora, com uma imagem que circula, uma imagem que poderíamos chamar de futurista, a imagem da velocidade, a imagem fluida. O conceito é esse. Errar numa imagem fluida.

Prova de contato, 2017, de Ignez Capovilla, participante do colóquio Imagens de imagens. Fotografia cedida pela autora.

O que mais interessa na imagem fluida? É a fluidez em si. Passamos de uma lógica parmenidiana a uma lógica heraclitiana da fotografia. A lógica parmenidiana é aquela do ser: “Eu vejo, observo, suspendo. Eu contemplo”. Ou seja, tenho com a fotografia a mesma relação que meus antepassados tinham quando se punham a rezar e a adorar num templo na Grécia. Hoje, não estou mais na contemplação. Estou na circulação. Torno-me eu mesmo máquina fluida. É isso que muda tudo. Antes eu podia muito bem fazer apenas uma foto, seguindo a lógica de Leonardo da Vinci. Em toda a sua vida, Leonardo pintou apenas uma quinzena de quadros, não porque não tivesse tempo ou porque não soubesse fazer, mas porque a cada vez fazia “o” quadro. Não se trata mais disso. Antes fazíamos referência à constituição do sujeito, se posso dizê-lo. Hoje fazemos referência ao isto. É o isto multiplicado que está diante de nós. Essa soma de imagens que despejo sobre meus amigos, que eu posto.

É essa torrente de imagens que, a meu ver, muda tudo. Muda, primeiro, aquele que fez a foto e que a posta. Muda também o artista, que será obrigado a pensar de outra forma. Muda o receptor. Muda o mundo. Isso coloca a fotografia em sincronia com uma lógica que já havia sido compreendida pela arte contemporânea, em particular pelo [Movimento] Fluxus. Quem vai a um museu e tem a mesma atitude diante de um Rembrandt ou um Picasso, de um lado, e das obras de Duchamp, de outro, me parece que não entendeu nada nem de Rembrandt nem de Duchamp. Hoje, com as imagens fluídas, estamos do lado de Marcel Duchamp, de Joseph Beuys, de Thomas Hirschhorn  e de muitos outros. Temos hoje uma outra relação com a imagem, que remete a uma outra revolução. É a revolução gerada pelo mundo da globalização, pela circulação, pelo deslocamento.  O que caracteriza esses novos fluxos de imagem são diferenças de potencial.

Você veio a Vitória para refletir sobre imagens de imagens. Qual a relevância desse tema para a fotografia hoje?

Creio que há duas razões. A principal é que, como me referia há pouco, a fotografia não é simplesmente uma imagem, mas sim uma imagem da imagem. Uma imagem ao quadrado, uma imagem à segunda potência. Para além disso, há diversas maneiras de se realizar essas imagens de imagens, seja para indivíduos que não são artistas, seja para o fotógrafo que é artista.

Quando tiro uma foto com minha câmera analógica e olho pelo buraco, não estou olhando a realidade. O que está enquadrado já é uma imagem da realidade. Tanto que alguns grandes fotógrafos, como Edouard Boubat , diziam: “quando vejo em meu visor uma foto que se assemelha a Henri Cartier-Bresson ou a Robert Frank, não disparo, não faço a foto”. Insisto que não tiramos [capturamos] uma foto, mas sim a fazemos [produzimos]. Temos no entanto a ilusão de tirá-la, assim como temos a ilusão de vê-la. Com a fotografia digital, iremos trabalhar explicitamente sob essa lógica.

Essa é a primeira razão. A segunda são as diferentes modalidades possíveis de imagens de imagens. No colóquio em Vitória, algumas delas foram exploradas. Há artistas que pegam uma imagem de saída, uma imagem-matriz, para fazer variações sobre ela. Há também os que trabalham sobre suas próprias imagens, efetuando releituras. Eles dão um novo destino e uma nova história a imagens que eles mesmo fizeram. E há ainda os que se apropriam de imagens feitas por outros.

Desse último caso, podemos distinguir três abordagens. Primeiro, há os que revisitam imagens feitas no âmbito de sua família, de maneira completamente vernacular, doméstica. Penso aqui em Bernard Koest. Segundo, há os que utilizam imagens encontradas no lixo, em qualquer lugar. Imagens que supostamente não tinham vocação para se tornar obras de arte. Por último, há os que tomam obras reconhecidas e trabalham sobre elas, produzindo outras imagens. [Richard] Prince  é um que sofre constantes aborrecimentos por se apropriar de imagens dos outros. É processado por estar “fazendo dinheiro com imagens que são nossas”. O que é interessante é que ele experimenta com os limites, não apenas estéticos, mas também jurídicos e financeiros: como se faz dinheiro com imagens? Embora essas questões não possam ser confundidas, elas estão ligadas. É sempre interessante observar o ponto de vista do direito para compreender uma realidade.

Anamnesis, 2016, de Bernard Koest. Fotografia cedida pela autor.

Não creio que essas práticas de apropriação sejam algo profundamente novo. Na vida pessoal e no desenvolvimento de uma cultura, estamos sempre nos referindo não tanto ao real, mas às imagens, aos objetos. Penso num texto de Platão sobre Crátilo que diz: para pensar alguma coisa é preciso partir do real, não das palavras. Ele insiste nisso, repetindo a frase de outra forma. E ele está certo. Por outro lado, sabemos que o real é algo sem sentido, por assim dizer. Estamos sempre verbalizando o real. Quando vejo alguma coisa, conto uma história dessa coisa. Portanto, estou sempre fabricando uma imagem do real. O real, como tentei mostrar em Estética da Fotografia, é infotografável.

Um homem ou um artista, em sua vida, é confrontado com o real, mas também com as representações do real que o precederam. Uma criança pequena, por exemplo, não desenhará a poltrona ou a árvore, mas coisas que estão representadas em sua cabeça. Daí o fato de que o desenho não se assemelha à realidade, por assim dizer. Pensar não é duplicar a realidade de forma mimética. É preciso ver nessa fraqueza da criança, que faz braços e corpo totalmente desproporcionais, um pensamento sobre o corpo que está diante dele, que ele tenta representar. Por trás da falta de jeito, há o signo de um pensamento: o fato de que a criança nunca vê o corpo diante dela tal como este é. É preciso ser um grande artista para não ver senão o corpo. A frase de [Edmund] Husserl, “é preciso retornar às coisas mesmas”, é muito inspiradora. Mas a verdade é que jamais teremos a coisa em si.

Nesse sentido, talvez o mais importante na frase de Husserl não seja a “coisa mesma”, mas o “retornar a”. Ir na direção de. Esse caminho, essa busca, é o que nos interessa. E o artista, o que faz? Faz do passado uma tábula rasa? Claro que não. O artista pensa em relação a todas as correntes que vieram antes dele, nem que seja para se distinguir. [André] Malraux não estava errado em dizer que não pintamos um pôr-do-sol, mas um quadro semelhante a um quadro em que havia um pôr-do-sol.

Diante disso, como podemos ter a pretensão de fazer uma imagem? Dizer “imagem da imagem”, no caso da fotografia, mas também da arte em geral, e mesmo talvez para além da arte, é reconhecer humildemente que nascemos no meio de uma cadeia genealógica. E que seria possível fazer a genealogia das imagens que produzimos. Na Bíblia, diz-se de alguém que é filho de um outro que é filho de um outro que é filho de um outro e assim por diante. Cada imagem é precedida por 40 gerações de outras imagens. Dizer “imagem da imagem” é reconhecer esse fato e recusar a virgindade aparente, segundo a qual fazemos uma imagem da própria coisa. É mostrar que as coisas são infinitamente mais complexas do que isso, seja por razões psicológicas ou cognitivas, razões ligadas à filosofia ou à história da arte.

No fim das contas, quando reconhecemos que fazemos imagens de imagens, a única coisa que podemos nos perguntar é: a imagem de imagem que faço pode originar outra coisa? Não que ela será original, no sentido que tanto interessa à publicidade, mas sim originária. Poderá ela dar origem e vazão a um novo pensamento ou uma nova prática da arte?

Temos uma sorte maravilhosa. Um pouco como as pessoas do quattrocento [período histórico que marca o final da Idade Média e início do Renascimento], que estavam diante desta técnica nova que era a perspectiva, estamos diante da tecnologia do digital. Ela vai permitir, quem sabe, inaugurar novas imagens. Sem negar, é claro, todas as que vieram anteriormente. Acredito que participar da cultura é integrar elementos novos e antigos de maneira articulada, ordená-los num lugar. Um lugar que jamais é definitivo. A imagem da imagem é, ainda hoje, o inacabável.///

 

François Soulages é professor titular da Universidade Paris 8 e do Instituto Nacional de História da Arte, em Paris, na França. Fundador e presidente da cooperativa de pesquisa RETINA.Internacional, é também editor e diretor de coleções na editora Klincksieck e L’Harmattan, de Paris.

Gabriel Menotti é professor da Universidade Federal de Espírito Santo. Já publicou livros no Brasil e no exterior sobre questões ligadas a imagem e tecnologia. Atua como curador independente e coordena a rede de pesquisa Besides the Screen.

Bruno Zorzal é artista e pesquisador da fotografia associado ao laboratório Art des images et art contemporain (Labo AIAC), da universidade Paris 8, e membro da cooperativa de pesquisa RETINA.International.

 

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