“Casulo”, de Dias & Riedweg

O projeto Casulo, da dupla Dias & Riedweg registra em fotografia e vídeo o cotidiano de um grupo de pacientes do Instituto de Psiquiatria da UFRJ para tornar visível o território designado à loucura e as novas formas de clausura a que esses pacientes são submetidos durante tratamento psiquiátrico.

O vídeo Casulo foi preliminarmente apresentado ao corpo médico do IPUB e a um grupo de 12 pacientes voluntários do hospital que forma A voz dos usuários. A partir de outubro de 2018, foram realizadas 25 oficinas, duas por semana, no Teatro Qorpo Santo, situado no pátio do próprio hospital. A essas oficinas foram acrescidas gravações externas feitas nas casas de alguns pacientes, no Parque Lage, na Praia Vermelha, na antiga sede do Ministério da Fazenda e na feira de Antiguidades da Praça XV, no Centro do Rio, e em um beco abandonado entre dois prédios em Botafogo. Ao todo, foram realizados 35 encontros até fevereiro de 2019.

Além da função terapêutica, a rotina das oficinas serviu para gerar uma dinâmica de criação em grupo e aumentar o nível de conhecimento e intimidade entre os participantes. Enquanto a repetição da yoga e dos exercícios de corpo e voz estimulavam a disponibilidade da vivência em grupo, o trabalho de redação e leitura dos textos permitiu uma progressiva imersão e melhor compreensão do tema. O “casulo” passou a ser um lugar de questionamento, ao mesmo tempo um ninho para acolhida coletiva e um território de busca para individuação. Os textos levaram o grupo a identificar lugares na cidade onde pudesse se materializar a metáfora de um casulo sem um lugar para existir.

A partir dos textos criados pelos participantes, chega-se à ideia de reunir objetos com histórias próprias (fictícias ou reais) desenvolvidas por eles em novos textos. Na Feira de Antiguidades e Quinquilharias da Praça XV, cada um fez a aquisição de um objeto escolhido para integrar uma cena teatral que reproduzisse o “casulo” do grupo.

Leia a entrevista com os artistas.

Ao longo dos últimos séculos, inúmeros projetos científicos recorreram à fotografia como ferramenta para objetificar patologias psicológicas e estados mentais dissociativos. A representação da loucura tem uma história extensa e polêmica. Isso foi uma questão durante o projeto? Em algum momento vocês temeram tangenciar a estigmatização da loucura? Como fugir dessa armadilha?

Maurício Dias: Uma das questões centrais da saúde mental é justamente a quase impossibilidade de definir uma metodologia de tratamento permanente. Os tratamentos não só mudam com a história, com o desenvolvimento das drogas e métodos, mas também com a percepção social sobre o distúrbio e de como lidar com ele. No centro do problema, se encontra a questão da clausura. Hoje se tenta reduzi-la a um mínimo de tempo para que as sequelas e traumas recorrentes das internações diminuam, assim como o perigo de estigma dos pacientes. Por outro lado, o momento de surto requer de fato atenção especial e a internação por um período tão curto quanto possível pode ser benéfica para o paciente e seus próximos. É uma questão não resolvida. Um conflito que apresenta avessos e contradições, e que não pode ser generalizado. A representação textual e imagética desse contexto obviamente não escapa à essa impossibilidade. E justamente essa impossibilidade é a questão do Projeto Casulo: sugerir que o lugar do tratamento psiquiátrico é limitado a uma espacialidade e temporalidade sempre mutáveis, um território que só existe de fato quando em transformação.

Vocês sentiram a necessidade de adaptar sua dinâmica de trabalho para lidar com os pacientes psiquiátricos? Quais os principais pontos de convergência e de divergência entre esse grupo e outras comunidades socialmente fragilizadas com que vocês já trabalharam? 

MD: Realizar um projeto participativo sempre requer diálogo. Cada projeto, cada contexto, tem suas particularidades e para interagir com ele é preciso saber lê-lo. Antes de interpretá-lo, é preciso ouvi-lo e reconhecê-lo. Isso leva um tempo. Casulo foi nossa quarta imersão nesse contexto e a terceira vez com esse mesmo grupo, A voz dos usuários, do IPUB, Instituto de Psiquiatria da UFRJ. Ainda assim foram novamente meses de encontros preparatórios, conversas e oficinas que possibilitaram o encontro e sua materialização em forma de arte. Nestes projetos, uma de nossas estratégias e uma das formas de mais-valia para os participantes é justamente mudar a percepção do público que estes participantes mais do que pessoas frágeis são, na verdade, parte de um contexto que as fragiliza, que as torna vulneráveis e que pode sempre mudar.

Em Casulo, como em muitas de suas obras, o processo parece ser tão ou mais importante do que um “produto final” que se materializa para o público. Como vocês sabem quando a obra está pronta para ser apresentada? Como decidir o quê mostrar?

MD: Todo processo é vital para a execução de uma obra de arte. A natureza do critério de excelência de uma obra reside, em parte, exatamente na fidelidade entre o processo e sua materialização. No caso de nosso trabalho, acreditamos ser esta uma questão central. Pretendemos com isso unir processo e representação ao máximo, fazendo com que o produto representado seja uma síntese entre processo e produto, entre conteúdo e forma, de maneira que, acima de tudo, a obra seja um dispositivo de ressonância subjetiva e um recipiente agenciador da percepção do público que a consumirá. Assim vemos o papel da obra de arte na contemporaneidade. Mais que encerrar e sintetizar uma questão, ela deve irradiá-la para que continue a abrir novos campos de reflexão e torne-se vibrátil ao outro.

Vocês usam a metáfora do casulo “para contextualizar o lugar da loucura como um território em permanente mutação”. Mas é possível levar a metáfora até o final? Essa forma mutante, provisória, aspira a uma síntese (“borboleta”) ou trata-se de um território irresoluto, em permanente desenvolvimento?

MD: A borboleta também é mutável, tem uma temporalidade limitada e imprevisível. Não existe final para nada a não ser quando se determina. ///

Foto: Dias & Riedweg (1993).

Dias & Riedweg (1993) 

Dupla formada por Maurício Dias (Rio de Janeiro, 1964) e por Walter Riedweg (Lucerna, 1955). Participou da Bienal de Veneza em 1999, da 12a Documenta de Kassel (2007), da 24a Bienal de S.Paulo (1998). Com obras no Centro Georges Pompidou (Paris), Reina Sofia (Madrid), MACBA (Barcelona), nos Museus de Arte Moderna de Lisboa, da Bahia, do Rio de Janeiro e de São Paulo, entre outros.