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Viagens sem volta

Dorrit Harazim Publicado em: 13 de janeiro de 2015
Mala de Clarissa B.

Willard Suitcases, mala de Clarissa B.

 

Elas foram encontradas por acaso 20 anos atrás no empoeirado sótão de um asilo para doentes mentais do estado de Nova York. Pareciam múmias ensacadas em papel de embrulho branco e seladas com barbante de nós bem atados. Foi só o que restou da imponente mansarda conhecida como Willard Lunatic Asylum [Asilo de lunáticos Willard], que abrigou mais de 5460 pacientes ao longo de 130 anos de atividade.

Só que não eram múmias os 429 volumes descobertos por funcionários durante a última inspeção antes do casarão ser demolido, por desuso. Eram malas, valises e baús que haviam pertencido a pacientes internados no Willard entre 1910 e 1960 e que adquiriram vida post-mortem graças ao trabalho de sísifo empreendido pelo fotógrafo americano Jon Crispin.

Desde a infância, Crispin domava o medo e cedia à curiosidade para se aproximar de mansões em ruínas ou propriedades abandonadas e tidas como mal-assombradas – lugares onde a cautela recomenda que crianças passem ao largo. Quando adulto, essa curiosidade levou-o a se tornar fotógrafo. Hoje profissional freelance, aos 62 anos Crispin tem um amplo leque de clientes – do mundo da moda, esportes, corporações, eventos. Quando possível, continua a perseguir projetos não comerciais de cunho social.

Foi no início dos anos 1980 que Crispin conheceu mais intimamente o misterioso asilo de Willard de sua infância. O casarão construído no alto de uma das margens do lago Seneca, o maior dos onze lagos glaciais do estado de Nova York, abrira as portas para uma visitação pública à qual acorreram profissionais de psiquiatria e apreciadores de construções antigas , além de curiosos como o fotógrafo.

O tour guiado levou-o a conhecer quase todas as edificações da imensa propriedade que hoje abriga um centro de tratamento de presos reincidentes no uso de drogas. Data daquele passeio o interesse de Crispin pelo dia-a-dia dos milhares de internados como loucos que viveram na edificação de tijolos inaugurada em meados do século 19.

“Era uma época”, conta o fotógrafo, “em que o diagnóstico de doença mental podia ser aplicado a alguém que apenas expressasse emoções ou frustrações, ou que fosse gay, tivesse sofrido algum trauma, fosse alcoólatra ou incapaz de se expressar corretamente em inglês. Jovens consideradas promíscuas ou mães desconsoladas pela perda de um bebê recém-nascido também podiam ser despachadas para asilos mentais por seus familiares – todos comportamentos mal aceitos socialmente até meados do século XX.”

Ao final da visita em grupo, Crispin comprou a obra que ele mesmo classifica como detonador de sua futura obsessão: The Lives They Left Behind [Vidas deixadas para trás], de Darby Penney e Peter Stastny, uma minuciosa crônica da vida dos antigos pacientes de Willard, dos tratamentos a que foram submetidos e que fim levaram. Uma mostra posterior organizada em 2000 pelo Museu do Estado de Nova York, intitulada Lost Cases, Recovered Lives [Malas perdidas, vidas recuperadas], fisgou Jon Crispin definitivamente pela ideia de fotografar essas vidas através do conteúdo de suas bagagens abandonadas.

À época ele já tinha concluído um laborioso levantamento fotográfico dos mais de 20 asilos psiquiátricos do Estado de Nova York que começaram a funcionar em meados do século 19. E foi graças a esse trabalho que ele obteve a autorização para desnudar e revelar ao mundo o conteúdo das 429 malas de Willard.

Três internos do museu histórico estadual já haviam catalogado todos os itens encontrados em cada mala, embrulhado um a um com a sua etiqueta e recolocado cada lote embrulhado nas respectivas valises. O compromisso do fotógrafo era refazer um caminho igualmente trabalhoso: após desnudar por completo o conteúdo de cada mala e montar a composição desejada escondendo as etiquetas no momento de clicar, ensacar tudo de novo e devolver os volumes novamente à sua forma de “múmias”.

Crispin conseguiu fotografar um primeiro lote de 82 bagagens com os 20 mil dólares que arrecadou através de crowdsourcing. Foi um trabalho insano, delirante, metafísico-documental, que lhe consumiu um ano inteiro. Interrompeu a labuta apenas para expor as primeiras fotos em San Francisco, no ano de 2013, sob o título Changing Face of What is Normal [Mudando a cara do que é normal].

 

Willard Suitcases, Freda B. | ©2013 Jon Crispin

O primeiro contato visual com o desconhecido universo de Freda B.

 

Mala de Freda B.

Willard Suitcases, mala de Freda B.

 

Mala de Freda B.

Willard Suitcases, mala de Freda B.

 

Mala de Freda B.

Willard Suitcases, mala de Freda B.

 

A primeira mala revelada pelas lentes de Crispin foi a da interna Freda B., que deixou o fotógrafo atônito ao se deparar com os esplêndidos objetos de toiletterie verde jade guardados pela interna. (Uma lei americana que atende pela sigla HIPAA, ainda em vigor, proíbe a divulgação de nomes completos de pacientes constantes em fichas médicas). Felizmente Crispin percebeu cedo que deveria documentar também, além do conteúdo, cada etapa do processo e o registro fotográfico dessa arqueologia do inesperado, mala por mala, que pode ser acompanhado pelo site willardsuitcases.com.

No início da empreitada, o fotógrafo imaginou ser indispensável ter acesso às fichas de cada paciente para entender o motivo pelo qual ele ou ela foram internados e melhor interpretar o significado de seus guardados. Mas desistiu logo. Percebeu que o projeto, para ter relevância, deveria conseguir revelar os donos dos pertences para além da classificação de seres humanos mentalmente doentes. “Quem olhar as fotos terá a liberdade de construir as histórias de vida que desejar, até porque cada um dará peso diverso ao que achar significativo”, diz Crispin. “Não faz a menor diferença saber se alguém era ou não psicótico. O que me importa é descobrir que uma mulher do asilo de Willard sabia bordar como ninguém.”

Tampouco importa a Crispin tentar adivinhar se cada mala foi preparada pelo próprio interno ou por algum membro da família antes do caminho sem volta para Willard. Importante, para o fotógrafo, é ver o que cada paciente julgou essencial guardar.

Fuçar na bolsa de uma mulher, qualquer uma, costuma ser revelador. Examinar a coleção de livros ou de cds de alguém, mesmo desconhecido, permite construir alguns parâmetros sobre o temperamento, alma ou ambição do dono. Mas inspecionar pertences pessoais guardados por anônimos considerados insanos e que viveram em outra época representou para Jon Crispin um projeto ao mesmo tempo emocional e racional.

As malas tinham dimensões e formas variadas, podiam tanto ser de couro nobre forrado de seda como de cartolina reforçada amarrada com barbante – tudo era surpresa uma vez desfeito o embrulho protetor externo. Fivelas e fechos outrora reluzentes podiam estar enferrujados, cantoneiras e cintas de reforço puídas, etiquetas de propriedade esmaecidas. Ainda assim, nada lhes tirou a vida.

Crispin contou à revista eletrônica Slate que mais da metade das valises nada continham , que nem sempre o conteúdo o induzia à reflexão e que era grande a dificuldade em achar contexto para determinados objetos, como uma dentadura solta ou a lista manuscrita de cada estação ferroviária dos Estados Unidos.

 

Crispin encontrou mais da metade das valises sem conteúdo algum

Crispin encontrou mais da metade das valises sem conteúdo algum.

 

“De todo modo”, acrescentou em entrevista à ZUM, “procuro manter a mente aberta antes de abordar um conteúdo novo. O lento desembrulhar e o movimento de entreabrir [uma nova identidade] resulta sempre numa experiência emocional. E é isto que eu espero conseguir transmitir em cada uma das imagens.” Crispin considera que seu papel , no caso, está em representar cada objeto ou conjunto de objetos de forma a causar um impacto positivo e sensorial em quem as vê . “O que assombra , no caso das malas, é a facilidade com que podemos nos identificar com seus donos”, escreveu a revista Newsweek. “Em seus detalhes mais prosaicos os itens revelados ajudam a resgatar esses indivíduos do sombrio manto do anonimato”, elogiou o New York Times.

Crispin considera desrespeitoso ficar remexendo de forma superficial e apressada o conteúdo das malas, por serem objetos pessoais de quem deve ter se debatido muito num mundo que talvez não compreendesse. Quando possível, ele tenta incluir na composição final todos os itens encontrados – exceto quando se trata de um amontoado de tecidos.

Um dos casos que mais instigou sua imaginação foi uma mala marrom de exterior banal mas cujo conteúdo revelou uma vivência tão rica quanto surpreendente. “A mala pertenceu ao ucraniano Dmytre Z., um homem claramente brilhante”, arrisca Crispin. “Ele guardou cadernos repletos de fórmulas matemáticas e de estudos sobre a sinuosidade das marés, além de fotos de seu casamento e uma parafernália de objetos singulares”. Dmytre também tornou-se um dos preferidos da galera de Willard pelo fato de ter sido preso pelo Serviço Secreto em Washington ao sustentar ser o marido de Margaret Truman, a filha do então ocupante da Casa Branca, Harry Truman. A título de souvenir de sua prisão na capital do país, o ucraniano guardou um termômetro em forma do monumento a George Washington.

 

Dmytre Z.: Vida interessante e o souvenir de quando acreditou estar casado com a filha de Truman

Dmytre Z.: Vida interessante e o souvenir de quando acreditou estar casado com a filha de Truman

 

Na mala de Anna G., um par de escovas de dentes, cintos de lamé dourado e faixas de cintura exuberantes, além de vários sapatos e chapéus. Na do veterano de guerra Frank C., uma pistola de brinquedo e um tíquete de ração de pão, o uniforme impecavelmente preservado , muitas fotos de família e um kit de higiene pessoal. Henry L. tinha dois pares de botas deformadas e uma perna prostética de madeira. Peter L. comprara um exemplar do jornal de Syracuse na véspera de ser internado em Willard. Maude K . conservou fechada uma garrafinha de glicerina. Uma citara acompanhou a internação de Charles L. Entre os pertences de elegância absoluta de Flora T., Crispin encontrou agulhas e seringas para a aplicação de sulfato de estricnina.

Zum conversou com o fotógrafo pela última vez pouco antes do Natal, quando ele já tinha conseguido mapear perto de 350 do total de 429 volumes. Três anos de avanços notáveis e uma derrota ainda em aberto: até hoje Crispin não conseguiu devolver a identidade plena aos internos cujos pedaços de vida fotografou. Nem mesmo quando morriam, por sinal, costumavam ser levados de volta ao entorno familiar para serem pranteados e acolhidos nos jazigos portando seus sobrenomes. Assim como suas malas, acabavam sendo esquecidos e enterrados anonimamente nas paragens de Willard.

Era lá que um robusto interno de bigode das antigas fazia as vezes de coveiro. Munido de uma enxada, uma pá e um molde retangular de madeira ele cavou pelo menos 1,5 mil covas de 1,8 m de profundidade ao longo de meio século. Morreu aos 90 anos, em 1968, e foi enterrado por outros pacientes numa das covas de sua autoria. Como no caso dos outros 5,8 mil internos ali enterrados, apenas uma anódina placa de ferro com o número do paciente sinaliza que embaixo daquela terra há um ser humano que existiu.

Foi somente em novembro passado que o nome completo do coveiro de Willard – Lawrence Mocha –  foi publicado pela primeira vez com todas as letras. Em reportagem no New York Times sobre um o fim do preconceito contra doentes mentais, um grupo militante reivindicava o reconhecimento de Mocha como cidadão pleno e símbolo do que é preciso fazer com os outros 55 mil enterrados anonimamente nos asilos psiquiátricos desativados do Estado. Na verdade, o sistema de identificação numérica convinha em especial às famílias dos pacientes: protegia-se, assim, os parentes dos mortos do opróbio de ter o sobrenome familiar gravado num cemitério de hospital psiquiátrico.

 

Cemitério de Wiilard

Cemitério de Willard

 

Data justamente daquela época de internações como política de saúde mental o nascimento de uma dos nove filhos de Joseph e Rose Kennedy – Rosemary. Um ano mais jovem do que o irmão que se tornaria presidente dos Estados Unidos, a menina nasceu com uma deficiência intelectual. Era meiga, tinha um sorriso kennediano irresistível e um QI de 60 e 70 (num adulto, equivalente à idade mental entre 8 e 12 anos). Aos 15, foi enviada para uma escola de freiras de renome, porém foi mantida afastada do resto das alunas – duas freiras e um tutor se encarregavam do seu desenvolvimento, em separado.

Ao longo de anos, o clã dos Kennedy se recusava a admitir que a plácida jovem (considerada por todos a herdeira de maior beleza) pudesse não ser saudável. Rosemary frequentava eventos, foi apresentada ao rei da Inglaterra e imaginava-se que poderia tornar-se professora. Até que paulatinamente ela começou a sofrer alterações de humor e temperamento, com frequentes rompantes de rebelião. Aconselhado por médicos, o patriarca da família concordou em submeter a filha a uma lobotomia experimental. Deu tudo errado.

Com a capacidade mental reduzida à de uma criança de dois anos, mobilidade física, fala e continência urinária perdidas, Rosemary tinha 23 anos ao ser internada num asilo perto de Nova York. Tempos depois foi despachada para outro asilo no distante estado do Wisconsin, onde viveu o resto da longa existência num chalé construído especialmente para abrigá-la. Recebeu a visita da mãe uma única vez em 20 anos. O patriarca Joseph jamais reviu a filha. Reuniu-se com o resto do clã somente aos 86 anos, ao morrer. Está enterrada com nome e sobrenome junto aos pais no cemitério de Holyhood, em Massachusetts.

Nesse sentido – e apenas nesse – teve sorte em relação aos pacientes internados nos asilos fotografados por Jon Crispin. “Minha meta, agora”, diz o fotógrafo, “é conseguir que as malas de Willard retornem a Willard. Penso em sugerir às autoridades do Estado de Nova York e do Condado de Seneca que aproveitem a vastidão da magnífica propriedade de valor histórico do antigo asilo e reabilitem pelo menos um dos prédios para a instalação de uma exposição permanente.”

 

Mala de Phoebe U.

Willard Suitcases, mala de Phoebe U.

 

Mala de Anna G.

Willard Suitcases, mala de Anna G.

 

Thelma R. guardou a canção do selo Decca: "I Guess I’ll Have to Dream the Rest"

Thelma R. guardou a canção do selo Decca: “I Guess I’ll Have to Dream the Rest”

 

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The Inmates of Willard 1870 to 1900: A Genealogy Resource, de Linda S. Stuhler (2011)
The Lives They Left Behind: Suitcases from a State Hospital Attic , de Darby Penney e Peter Stastny; fotos de Lisa Rinzler (2009)

 

Dorrit Harazim é jornalista e documentarista brasileira. Nascida na Croácia durante a II Guerra Mundial, talvez venha daí seu interesse pelo papel da fotografia na história e pela história da fotografia como meio de comunicação.

Leia outras colunas de Dorrit Harazim aqui.

IMAGENS ©2013 Jon Crispin