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Ruth Orkin fez primeiro e melhor

Dorrit Harazim Publicado em: 25 de março de 2015

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Postado no YouTube em 28 de outubro passado, o vídeo “10 Hours Walking in New York as a Woman” foi o fenômeno viral de 2014. Com apenas 118 segundos de duração, ele obteve dez milhões de cliques em menos de 24 horas e hoje, decorridos quatro meses, bate na casa dos 40 milhões de visitantes. Os mais de 140 mil comentários que gerou não deixam dúvidas quanto ao impacto causado, o interesse pelo tema e o sucesso de marketing da empreitada.

Vamos a ela. A ideia foi da produtora Rob Bliss Creative, listada como Agência de Vídeos Virais e voltada para clientes que precisam de resultado imediato. Exatamente o que procurava a ONG Hollaback, dedicada ao combate do assédio sexual nas ruas. Colocado no ar como campanha de interesse público, sem fins lucrativos, o vídeo tinha por objetivo desmistificar a teoria de que a forma de se vestir da mulher atrai, ou não, o assédio.

Shoshana B. Roberts, aspirante a atriz de 24 anos, estava no seu emprego temporário de babá quando viu o anúncio de teste de elenco no site de classificados Craiglist. Decidiu apresentar-se e foi selecionada pela produtora. No dia da filmagem, ela seguiu as instruções recebidas. Enfiada num jeans e camiseta preta sem adornos, a morena de cabelo longo cacheado bateu pé por inúmeros bairros de Manhattan, sempre sem sorrir nem olhar para os lados. Em dez horas de filmagem, recebeu 108 cantadas.

Alguns metros à frente dela, registrando tudo, ia o próprio Rob Bliss, também a caráter: mochila amarela berrante, fones de ouvido, óculos escuros e roupa de ginástica, como se estivesse a caminho de alguma academia. Dificilmente alguém suspeitaria que ele e Shoshana tinham uma ligação. Escondida sob a camiseta igualmente chamativa estava sua câmera GoPro com suporte nas costas. Em meio a um visual tão ruidoso, passou despercebido o pequeno orifício que fizera na camiseta para a lente permanecer desobstruída.

O estrepitoso resultado obtido é melancolicamente ilustrativo dos tempos modernos, em que um mero “Oi, linda”, ao vivo, é taxado de assédio sexual, enquanto a selvageria verbal na internet é tolerada como “dano colateral”. Shoshana, que contara ter decidido fazer o teste de elenco pensando no currículo da futura carreira de atriz, jamais imaginou que a celebridade instantânea viria dessa forma. “Rob faturou, a Hollaback recebeu um caminhão de doações, e eu ganhei o quê? Um monte de gente querendo cortar meu pescoço”, comentou a jovem em entrevista referindo-se às ameaças de estupro e morte recebidas.

Na verdade, Shoshana está sendo cogitada para figurar em outras campanhas da ONG. Seu primeiro depoimento post facto seguiu o tom confessional quase obrigatório nestes tempos de mídia social. “Tenho certeza de ter chorado na noite da filmagem ao voltar para casa. Abracei meu namorado, telefonei para minha mãe porque queria ouvir que ela me ama e tem orgulho do que fiz em nome de uma causa”, afirmou. Acrescentou já ter sido vítima de mais de um episódio de ataque sexual.

Como era de se esperar, imitações, versões locais e paródias brotaram num piscar de olhos. Um nova-iorquino vestiu uma amiga com um jihab, que lhe encobria de preto a cabeça, corpo, braços e pernas e a filmou pelas ruas de Manhattan durante cinco horas. A jovem não recebeu um assovio sequer. Foi filmada novamente por cinco horas envergando jeans e uma camiseta branca ajustada nos seios. Choveram cantadas, buzinas, assédio e cliques no YouTube: mais de cinco milhões.

Experimentos semelhantes foram feitos com um gay estereotipado que segurava entre os dedos uma sacola de lingerie Victoria Secret (2,1 milhões de cliques e 50 assédios, quase todos homofóbicos). Um modelo masculino com físico de atleta, em contrapartida, circulou por três horas sob aprovação unânime de homens e mulheres (7,5 milhões de cliques).

Em São Paulo, Mumbai e Auckland não foi diferente .Todos pretenderam marchar por uma causa, comprovar uma tese, gerar um debate sobre discriminação. Na prática prevaleceu a habitual troca de insultos entre campos opostos que inunda as redes sociais.

Vale lembrar que nem sempre foi assim.

Sessenta e três anos atrás, numa Itália ainda sarando das feridas da II Guerra, a fotógrafa americana Ruth Orkin demonstrou que o mundo já foi mais espontâneo e bem humorado, menos estridente. A anotação para o dia 22 de agosto de 1951 no diário de viagem de Orkin era simples: “Esta manhã fotografei Jinx a cores – no Arno & Piazza della Signoria. Isso me deu a ideia de um ensaio. Uma sátira sobre uma jovem americana sozinha na Europa”. Tentaria fazer algo leve, traquino, nada além disso. Jamais imaginou que entre as dezenas de fotografias feitas naquela manhã em Florença, uma delas se transformaria em emblema da feminilidade de uma época – e em retrato de assédio sexual à luz de hoje.

 

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Orkin sempre teve natureza aventureira e independente. Aos 17 anos, empreendeu uma viagem de bicicleta de Los Angeles, onde morava, até Nova York, para ver de perto a Feira Mundial de 1939. Ora pedalando, ora de carona, naqueles tempos mais inocentes, fotografou sua travessia pela América de ponta a ponta. Aos 30 anos, havia se tornado uma bem sucedida profissional freelancer e acabara de fazer um trabalho de dois meses em Israel para a revista Life. Foi quando decidiu passar uma curta temporada na Itália, antes de retornar aos Estados Unidos. E quando teve a ideia de realizar um ensaio sobre mulheres que viajam sozinhas.

O acaso fez com que cruzasse com a jovem compatriota Ninalee Allen, em quem encontrou a personagem ideal para o referido projeto. Descreveu a jovem, que atendia pelo apelido de “Jinx”, como “luminescente e, ao contrário de mim, muito alta”. Além de arrojada.

Ninalee, 23 anos de idade e 1,82 m de beleza, acabara de se formar em Ciências Humanas no prestigioso Sarah Lawrence College de Nova York. Havia atravessado o Atlântico de navio, sozinha, em cabine de terceira classe, coisa que poucas jovens americanas faziam naqueles anos do pós-guerra. Para que suas economias de viagem durassem o máximo, Ninalee hospedou-se no mesmo hotel Berchielli que a fotógrafa, à beira do rio Arno. A diária custava US$1.

Foi um encontro de almas gêmeas. Logo no primeiro dia, trocaram impressões e combinaram de sair juntas por Florença para Orkin fotografar Jinx passeando, pedindo informações, admirando estátuas, negociando com comerciantes, flertando em cafés.

E assim foi, das 10h da manhã ao meio-dia. Orkin estava munida de uma câmera Contax. Jinx vestira uma saia longa, como mandava o new look introduzido por Christian Dior em 1947, jogara um xale mexicano cor de laranja sobre o ombro e calçara sandálias moderníssimas para a época. Mal despontaram na Piazza della Signoria, Orkin captou o gáudio de um grupo de italianos ali reunidos com as passadas largas da esbelta americana. Orientou Jinx a dar meia-volta e repetir sua confiante chegada à praça. Também pediu a um jovem sentado numa lambreta que instruísse os demais a não olhar para a câmera. Só então bateu a segunda chapa, que virou ícone. Transformada num dos pôsteres mais vendidos da história, a foto até hoje decora paredes de estudantes mundo afora.

A série completa, publicada pela revista Cosmopolitan em 1952, ilustrava uma reportagem com conselhos de viagem para mulheres desacompanhadas. Mas American Girl in Italy só se consolidou como uma das fotografias mais conhecidas do século 20 duas décadas mais tarde. Com um porém: o feminismo militante que veio junto com a revolução sexual atribuiu significado novo à cena. O que fora concebido como celebração de uma independência feminina despreocupada, atrevida e bem-humorada passou a ser interpretado como prova da impotência da mulher num mundo dominado por machistas. Sob essa ótica, até “Garota de Ipanema” (Olha que coisa mais linda/ mais cheia de graça/ é ela menina/ que vem e que passa), de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, deveria ser considerado sexista.

 

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Por sorte, a American Girl em pessoa, hoje senhora Ninalee Craig, não mudou. Está com 86, continua elegantérrima e de bem com a vida. Apenas lamenta a equivocada leitura do episódio. Em 1999 o crítico de fotografia do Washington Post a descrevera como uma garota “constrangida a aturar os olhares de lascívia numa rua cheia de homens”. Não foi nada disso, repetiu por ocasião do 60º aniversário da cena, comemorado com uma exposição da obra de Ruth Orkin no Canadá. “Em momento algum me senti assediada ou infeliz. Ao contrário. Imaginei ser a nobre e admirada Beatrice da Divina Comédia de Dante.”

Ao retornar daquele giro europeu, Jinx trabalhou durante alguns anos na agência de publicidade J. Walter Thompson e se casou com um conde veneziano – do qual se divorciou para casar com Robert Ross Craig, um executivo canadense da indústria do aço. Enviuvou, tem quatro enteados, dez netos e sete bisnetos. Em entrevista concedida três anos atrás em sua casa em Toronto, deixou-se fotografar com o mesmo xale mexicano jogado sobre um tailleur preto e branco. E lamentou a falta de humor do mundo de hoje.

Para ela, a foto continua a simbolizar independência e destemor. “Muitos querem usar American Girl como símbolo do assédio sexual a mulheres, coisa que a imagem não é. Trata-se da imagem de uma mulher de bem com a vida.” Contou que, ao longo dos anos, também muitos homens lhe perguntaram se não teve medo, se não precisou de proteção, se ficou mortificada. Em contrapartida, as mulheres de quem se tornou amiga acham enorme graça na foto e ainda exclamam Que maravilha. Aqueles italianos são maravilhosos, fazem com que você se sinta apreciada”.

Ninalee vê com naturalidade o italiano mais próximo a ela na foto. Encostado numa das colunas, ele tem uma das mãos sobre o que ela chamada de “suas joias da coroa”. A Cosmopolitan borrara intencionalmente o gesto para não chocar as leitoras daqueles anos 1950. “Nenhum daqueles homens cruzou a linha comigo. Posso garantir que ali não havia ninguém com intenção de me assediar de verdade”, repete a grande dama que encerrou a entrevista com um resumo de sua vida: “Foi ótima. Quero mais”.

Ruth Orkin, entrementes, havia se casado com o também fotógrafo e cineasta Morris Engel, diretor do premiado O pequeno fugitivo, Leão de Prata do Festival de Veneza de 1953 e indicado ao Oscar de Melhor Roteiro em 1954. Segundo François Truffaut, a Nouvelle Vague francesa não teria existido sem ele. “Foi Morris Engel, com seu filme [sobre um menino de sete anos que foge para Coney Island por achar que matara seu irmão mais velho], quem nos apontou o caminho”, sustentou Truffaut ao longo da vida.

Orkin morreu de câncer aos 63 anos e deixou uma obra focada no incessante desfilar da vida à sua frente. Foi feminista na forma de se conduzir e fazer escolhas. American Girl in Italy é um primor pelo que é, não pelo que a visão politicamente correta desejaria que fosse.

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Dorrit Harazim é jornalista e documentarista brasileira. Nascida na Croácia durante a II Guerra Mundial, talvez venha daí seu interesse pelo papel da fotografia na história e pela história da fotografia como meio de comunicação.

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IMAGENS: da série American Girl in Italy, Ruth Orkin © Orkin/Engel Film and Photo Archive

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