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Moacir dos Anjos Publicado em: 14 de dezembro de 2021

 

No dia 17 de outubro deste ano, um vídeo mostrando um grupo de pessoas revirando a caçamba de um caminhão de lixo e latas com restos de comida em busca do que se alimentar viralizou nas redes sociais. O vídeo havia sido gravado poucos dias antes por um motorista de aplicativo que passava pelo local e se espantou com o visto. As imagens que registram a procura aflita por qualquer coisa que servisse para comer – sobras de refeições dos outros ou produtos alimentícios já impróprios para consumo seguro jogados fora – aconteceu no Cocó, bairro de Fortaleza onde moram pessoas ricas da cidade. Mas poderia ter sido em muitos outros bairros de diversas localidades do Brasil. Como na Glória, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Ali, quase em simultâneo ao que ocorria no Cocó, pessoas disputavam, também dentro da caçamba de um caminhão, ossos e restos de carne rejeitados por comerciantes como imprestáveis para qualquer uso. Situação imperfeitamente traduzida em fotografias que circularam em jornais, posto que imagem alguma pode exatamente equivaler, no campo do sensível, a uma busca desesperada por comida. Situação que se tornou comum no país em anos recentes, resultado do retorno a uma condição de fome extensa e extrema que, faz poucos anos, se pensava estar enfim superada. Afinal, em 2014 o Brasil havia saído do Mapa da Fome pela primeira vez desde que o instrumento fora criado, em 1990, pela FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação). Mapa que indica, a cada ano, “em quais países há parte significativa da população ingerindo uma quantidade diária de calorias inferior ao recomendado”. Em 2018, contudo, o Brasil ingressou de novo no grupo dos países cuja população pobre não tem o acesso adequado e suficiente ao que comer. De lá para cá, ainda de acordo com a FAO, dobrou o número de pessoas que passam fome no Brasil: são quase 20 milhões de homens, mulheres e crianças sem ter alimento assegurado para manter-se vivos.

A fome é um dos indicadores mais salientes do que se costumava chamar de subdesenvolvimento. Ao menos desde o tempo que o conceito de subdesenvolvimento ganhou robustez teórica e tornou-se corrente nas discussões sobre as desigualdades entre países diversos no mundo, em meados do século 20. Foi no âmbito da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina), órgão criado pelas Nações Unidas em 1948 e sediado no Chile, que o termo subdesenvolvimento adquiriu não somente densidade, mas também significados renovados, passando a pautar parte relevante do pensamento econômico e social daquela região. Em termos amplos, a maior novidade da concepção de subdesenvolvimento da CEPAL talvez tenha sido o abandono de uma visão teleológica da história que era ainda corrente à época, segundo a qual o subdesenvolvimento (com todas as carências materiais e humanas que o definiam) seria um estágio a ser inevitavelmente superado pelo crescimento da economia mundial. Para a CEPAL, o subdesenvolvimento seria, ao contrário, uma condição cujas causas estruturais necessitavam ser confrontadas com vigor pelas políticas públicas implementadas nos países que sofriam suas consequências. Abandonava-se, portanto, a ideia – de algum modo reconfortante – de que o desenvolvimento seria o destino natural dos países subdesenvolvidos, ainda que não houvesse previsão certa para essa mudança. De que seria apenas uma questão de tempo (indefinido) para que os países então subdesenvolvidos se ombreassem aos já desenvolvidos em satisfação de necessidades antigas e novas.

A percepção de uma assimetria estrutural entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos havia sido capturada, no âmbito da produção cultural e artística latino-americana, já na década de 1930. A manifestação do que o crítico literário Antonio Candido chamou de “pré-consciência do subdesenvolvimento” resultaria na incorporação de um temário que evidenciava a pobreza e o sofrimento vividos pela maioria da população dos países daquela região. Assuntos que contrastavam com a representação pitoresca dessa paisagem humana que até pouco antes era hegemônica, própria de uma produção artística assentada na ideia de haver simples atraso no caminho rumo a um desenvolvimento supostamente assegurado. É neste contexto que emergiria, ao longo da década de 1930, a chamada literatura regionalista, a qual enxergava “na degradação do homem uma consequência da espoliação econômica, não do seu destino individual”. Empenho de precoce tradução sensível do subdesenvolvimento que, no Brasil, teria em O Quinze (1930), de Raquel de Queiroz, e Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos, algumas de suas mais conhecidas expressões. A fome ronda essas representações do subdesenvolvimento. E não somente na zona rural. Ela está também o tempo inteiro presente em um livro urbano como Os Ratos (1935), de Dyonélio Machado. Já no campo das artes visuais, seria certamente a obra de Candido Portinari que melhor viria a traduzir, principalmente a partir do começo da década de 1940, a percepção de uma situação de falta que acometia a maior parte da população brasileira, que parecia ser perene e contra a qual seria imperativo lutar.

Não foi à toa que o poema “Tem gente com fome”, publicado no começo dos anos 1940 por Solano Trindade – escritor pernambucano radicado no Rio de Janeiro –, teve sua circulação censurada pelo regime autoritário do Estado Novo (1937-1946). No poema, Solano Trindade associa a fome a uma situação de sofrimento que acomete, principalmente, a população pobre e negra do Brasil. Gente como aquela vista no vídeo e nas fotografias, feitas oito décadas depois, buscando comida no lixo para se alimentar e dar de comer a suas famílias. E é sintomático da persistência da fome, da sua associação com a condição de subdesenvolvimento e do que ela revela do fracasso de um projeto de país que, em 1975, sob a ditadura militar então vigente (1964-1985), o mesmo poema de Solano Trindade tenha sido novamente censurado em uma versão musicada por João Ricardo para ser cantada por Ney Matogrosso, ambos membros do grupo Secos & Molhados. Foi somente em 1979 que tal versão do poema foi finalmente liberada para veiculação e gravada por Ney Matogrosso, então já em carreira solo.

Afirmar as causas e consequências da fome implica pôr em crise as condições que a geram, confrontá-las em várias frentes. A centralidade da fome em países subdesenvolvidos foi apontada e estudada, nas décadas de 1940 e 1950, pelo médico e geógrafo Josué de Castro. Sua extensa pesquisa sobre o assunto, introduzida no livro Geografia da Fome (1946), permitiu evidenciar a complexidade das causas de uma alimentação insuficiente ou inadequada em regiões pobres do mundo. Para o estudioso, a fome deveria ser entendida não somente como um fenômeno agudo ou como uma “fome total”, característica de áreas de miséria extrema ou sujeitas a contingências extraordinárias; haver-se-ia de levar em conta, igualmente, o fenômeno da “fome parcial”, fruto da falta continuada de nutrientes imprescindíveis à vida, a qual lentamente mata populações que a eles não têm acesso. Fome que a escritora Carolina Maria de Jesus afirmava, em seu livro Quarto de despejo. Diário de uma favelada (1960), afetar até mesmo os sentidos da visão, fazendo com que o faminto enxergasse tudo em volta com uma cor somente: o amarelo. E para que se entendessem as causas daquela fome “oculta”, Josué de Castro dizia ser necessário considerar não somente fatores geográficos, mas, principalmente, fatores associados aos sistemas econômicos e sociais que, de modos vários, privavam populações inteiras da alimentação necessária à sua sobrevivência.

 

Frame do filme Terra em transe, de Glauber Rocha, 1967

Tais questões estão também presentes em alguns dos primeiros filmes de Glauber Rocha, o cineasta a quem mais diretamente se associa o caráter transgressor do Cinema Novo; notadamente, ainda que de modos muito diversos, em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e Terra em Transe (1967). Em ambos, o diretor expunha o público a “um novo tipo de cinema: tecnicamente imperfeito, dramaticamente dissonante, poeticamente revoltado, sociologicamente impreciso como a própria sociologia brasileira oficial, politicamente agressivo e inseguro como as próprias vanguardas políticas brasileiras, violento e triste, muito mais triste que violento, como muito mais triste que alegre é o carnaval”. Colocava, para o cinema nacional (e para ele próprio, portanto) – o desafio de fazer filmes que não ignorassem as características mais marcantes de um país subdesenvolvido e que as tomassem, além disso, como tema e modelo de criação. Glauber Rocha traduziu suas inquietações em uma série de textos escritos ao longo da década de 1960 e início da seguinte. Em um dos mais conhecidos, intitulado “Eztetyka da fome”, escrito em 1965, deu destaque à fome não somente como elemento constitutivo do subdesenvolvimento e síntese do sofrimento dos que vivem sob uma condição subordinada no mundo, mas também o papel de operador central na luta para subverter as desigualdades que produzem e preservam a falta do que comer.

Para além ou por causa de seus efeitos e origens perversos, Glauber Rocha assume a fome como catalizador de experiências do subdesenvolvimento e defende fazer filmes “feios e tristes”, pois somente uma cultura da fome poderia, paradoxalmente, minar aquilo que a gera. E a mais nobre manifestação cultural da fome, dizia ele, é a violência: “uma estética da violência antes de ser primitiva é revolucionária, eis aí o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado”. Somente através de uma estética da violência as razões da fome poderiam ser entendidas e, também, atacadas. É entre a fraqueza que a fome causa e a potência violenta de uma estética da fome que Glauber Rocha enxerga o núcleo do projeto do Cinema Novo. Intervalo paradoxal entre fraqueza e potência que evoca a frase com que o artista Hélio Oiticica conclui seu texto “Esquema geral da Nova Objetividade”, escrito em 1967, mesmo ano de lançamento de Terra em Transe, o “manifesto prático da estética da fome” de Glauber Rocha: “da adversidade vivemos!”. Esta seria a condição do subdesenvolvido.

Considerar tudo isso tendo em vista um Brasil no qual, décadas depois, não existe comida acessível a quase 20 milhões de pessoas que vivem no país, implica também pensar em quais sentidos essas formulações poderiam manter-se artística e politicamente válidas. Se é certo que o termo subdesenvolvido raramente é encontrado em livros de economia e sociologia atuais, essa mudança não se deve ao fim das desigualdades estruturais entre países diversos, nem tampouco das que existem internamente a tantos espaços nacionais. Tais desigualdades continuam sendo o tempo inteiro repostas, condenando milhões de pessoas a uma condição de falta em meio à riqueza. A razão de o termo subdesenvolvido não ser mais largamente empregado como antes repousa, paradoxalmente, em ser de novo hegemônica, em parte relevante da academia e na mídia, a ideia de que o subdesenvolvimento é uma etapa a ser naturalmente vencida pelos países mais pobres por meio de um esforço continuado de crescimento nominal de sua produção. Setores da academia e da mídia que, por serem espaços de poder assentados no ideário e no léxico neoliberais, preferem a designação de país emergente à de país subdesenvolvido. Denominação que remete, em disfarçado retrocesso conceitual, a uma situação passageira de inferioridade de alguns países frente a outros, e não a uma condição que somente pode vir a ser superada através de amplas mudanças no brutalmente desigual sistema econômico existente. Nesse sentido, talvez pensar o Brasil como um país subdesenvolvido (e não como um país emergente) seja uma forma possível de resistência a essa condição.

É em tal contexto que se pode entender a pertinência e o significado da manifestação-performance ocorrida na sede da Bolsa de Valores brasileira, em São Paulo, no dia 23 de setembro deste ano, poucos dias antes do registro em vídeo e fotografias de pessoas buscando o que comer em latas e caçambas de lixo, em Fortaleza e no Rio de Janeiro. Situação que se repete diariamente em centenas de outras cidades do país. Naquele dia, um grupo de ativistas do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) entrou no edifício que mais representa a geração de riqueza material e financeira no Brasil para protestar contra a disparidade entre o crescimento dessa riqueza em anos recentes, apropriada por uma ínfima fração da população do país, e o aumento da inflação, do desemprego e, consequentemente, da fome sentida por milhões de brasileiros pobres. Além de falas contundentes e de cartazes exibidos no local (“Brasil tem 42 novos bilionários enquanto 19 milhões passam fome”, “Tem gente ficando rica com a nossa fome”), vários manifestantes empunhavam e exibiam ossos bovinos com sobras de carne agarradas neles, evocando a crítica falta do que comer para muitos habitantes do país. Não foi ato sem sentido ou ingênuo, como críticos à direita ou à esquerda quiseram logo fazer crer. Mas gesto de criação de imagens – depois veiculadas em mídias sociais e jornais – que articulam causas e consequências, lugares e gentes, que aparentam ser, no jornalismo econômico e político conservador, completamente apartadas uns dos demais.

 

Performance-manifestação realizada por artistas e ativistas ligados ao MST na 34ª Bienal de São Paulo. Foto: Vinícius Braga.

Esta manifestação-performance do MTST antecipou e fortaleceu a performance-manifestação contra o agronegócio e a fome (associando um à outra) feita por artistas e ativistas ligados ao MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) no interior do prédio da Bienal de São Paulo, no dia 11 de novembro. Ato que ocupou o espaço da instalação Deposição, dos artistas Daniel de Paula, Marissa Lee Benedict e David Rueter, a qual replica uma antiga “roda de negociações” originalmente situada na sede da Bolsa de Valores de Chicago, nos Estados Unidos. Com o formato de arena ou fórum, aquele espaço foi reconstruído na exposição para servir, segundo a proposta dos artistas, para manifestações políticas e artísticas de naturezas diversas pelo período de duração da mostra. A ocupação da instalação pelo MST aproximou e misturou teatro, artes visuais e prática política, associando o impacto de decisões tomadas em lugares como aquele, tanto no passado como em seus sucedâneos atuais, para a manutenção, no Brasil e em outros países, de uma condição de pobreza e fome de milhões de seus habitantes. Mesmo, como ocorre agora, quando tais decisões estão atreladas ao dinamismo da produção de alimentos, como ocorre com o chamado agronegócio, voltado para o comércio exterior e destruidor de formas de agricultura familiar. De novo, aqui, a presença marcante de ossos como índice da falta do que comer para a população mais pobre. De novo, também, a criação de imagens que circulam em lugares os mais variados de mídias sociais a jornais. Imagens que fazem política à medida em que disputam o entendimento sobre como se relacionam espaços e sujeitos tão distantes quanto os interiores de edifícios que abrigam bolsas de valores e pessoas que não têm o que comer para tão somente manter-se vivas. Imagens que resgatam, para os dias de agora, a ideia de “fome oculta” sugerida por Josué de Castro há várias décadas – aquela que é gerada pelos próprios modos como se gera riqueza em um dado lugar e tempo. Imagens que atualizam uma estética da fome que se junta à vontade, partilhada por tantos, de superar uma condição de insuportável falta. ///

 

Moacir dos Anjos é crítico de arte. Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, foi curador da 29ª Bienal de São Paulo em 2010. Publicou ArteBra Crítica: Moacir dos Anjos (2010)Local/global: Arte em trânsito (2005) e Contraditório. Arte, globalização, pertencimento (2017) entre outros volumes e ensaios em livros.

 

 

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