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O futuro das rugas

Giselle Beiguelman Publicado em: 2 de agosto de 2019

Selfie da apresentadora Xuxa processada pelo aplicativo FaceApp. Reprodução Instagram @xuxamenegheloficial

Qual futuro da fotografia e do olhar, quando confrontados com o emergente mundo da Inteligência Artificial? Ao alcance da mão de qualquer um, as tecnologias de IA mostram que o futuro da imagem não passa pelos olhos e sim pelas técnicas de aprendizado de máquinas (machine learning).

Aplicativos como FaceApp, DeepNude e Lensa fazem parte dessa geração de novas tendências. São recursos para quem tira fotos com o celular e usa Instagram. Ou seja, são aplicativos para um público alvo de milhões de pessoas. Em comum, combinam Inteligência Artificial e visão computacional para criar imagens do que poderia ter acontecido em um futuro que não foi.

O FaceApp recentemente causou furor com as histriônicas imagens de pessoas envelhecidas em cerca de três décadas. Como a maior parte dos usuários têm no máximo 30 anos, encantou a Internet. Todos os homens ficaram com um quê de George Clooney e todas as mulheres que vi oscilaram entre versões de Sandra Bullock e Glenn Close.

Já o DeepNude ficou pouquíssimo tempo disponível e foi um estrago. Sexista e politicamente incorreto, repetia um sonho adolescente de muitos. Permitia “tirar a roupa de mulheres” (e somente mulheres) ao adicionar imagens de corpos nus, escolhidos autonomamente em bancos de dados, que eram “colados” aos rostos. Uma espécie de raio X virtual que deve se consolidar proximamente.

Imagem manipulada pelo aplicativo DeepNude. Reprodução Internet

Lensa é o mais trivial, e um dos mais populares dessa safra. É bem a cara da nossa época, inimiga das marcas do tempo e da história vivida. Você instala, adiciona uma selfie e pronto: ele “limpa” sua imagem de tudo que se tornou o evil da atualidade (imperfeições e idade).

Nada do que acontece com esse aplicativos é fruto de uma edição pessoal. Não estamos falando de filtros de estilo, como aqueles “antigos” recursos do Photoshop que transformavam imagens em superfícies líquidas ou varridas por uma ventania. Não são camadas que se superpõem à imagem ou operações na superfície da foto para alterar sua aparência. Estamos falando de filtros inteligentes, fruto do trabalho de redes neurais que usam o reconhecimento de objetos (entendidos como padrões internos) para criar uma nova imagem.

Diagrama de Rede Neural computacional para catalogação de imagens. Reprodução Internet

Redes neurais interpretam as camadas das imagens, alterando os pixeis para conformar um estilo específico. Os algoritmos dessas rede neurais e de aprendizagem maquínica interpretam, por exemplo, sinais de rugas no pescoço, comparam com suas fotos arquivadas no celular (lembrando que todos pedem acesso às fotos armazenadas no seu celular, certo?) e cruzam com todas as de outras zilhões de fotos de pessoas que fizeram o mesmo “exercício” que você. E assim, “fatiando” as fotos disponíveis nas nuvens computacionais, é possível aproximar a sua foto com o que ela seria em 30 anos ou mais.

Testes já provaram, com fotos de pessoas mais velhas postando retratos de quando eram jovens, que a previsão feita por aplicativos como o FaceApp não se verifica. Contudo, o fotorrealismo é tão convincente, e tão bem parametrizado pelo manancial de informações disponível no limbo do Big Data, que ninguém duvida.

E por mais que câmeras, como a Google Clip, que almejava fotografar “aquele” momento que você desejava registrar, mas em geral perde (como o pulo do seu gato fazendo carinhas fofas e que passou assim que você procurou o celular), tenham fracassado, as próximas devem acertar. E é inevitável perguntar: qual o lugar social da imagem nesse contexto, em que o olhar passa a ser uma variável, entre outras de programas e aparelhos que vasculham e combinam os resultados, prevendo o que não foi visualizado?

Imagem de divulgação do aplicativo de correção de selfies Lensa. Reprodução Internet.

Já foi bastante noticiada a potencial instrumentalização desses aplicativos para coletar dados e arquivar padrões que podem ser utilizados para fins de vigilância ou outras formas de manipulação. Meu ponto é outro. Pergunto como esses aplicativos respondem a um momento que, malgrado a obsolescência programada da tecnologia e a falência institucional da infraestrutura da cultura, teima em ser eternamente “xovem”.

Abolimos o “passado como passado”, disse o filósofo Peter Pelbart, ou pelo menos o passado da forma que o conhecíamos: como uma herança que se recebe e que se constrói. Por um lado, “o amanhã é hoje”, tal qual aprendemos com o slogan do Museu do Amanhã (em vias de estrangulamento, o que não deixa de ser mais irônico). Por outro, dadas as catástrofes ecológicas cada vez mais recorrentes, as mudanças climáticas provocadas pela ação humana e o aumento exponencial de lixo tecnológico produzido diariamente, talvez não tenhamos, de fato, algo a conservar. E, nesse sentido, como afirmou o historiador francês Henri Pierre-Jeudy, “o que estaria impulsionando a conservação para o futuro não é mais a angústia da perda dos vestígios, mas sim o medo de não ter nada para transmitir”.

Isso vale para as pessoas e vale também para as cidades. Afinadas com esse imaginário, imagens 3D de projetos que prometem a recuperação de áreas históricas como se oferecessem verdadeiras injeções de botox na paisagem urbana são cada vez mais comuns. Elas incorporam as técnicas antienvelhecimento dos corpos humanos nos processos de recuperação patrimonial.

Estamos testemunhando a reconceituação do que se entendia por natureza e a manifestação de novos padrões de beleza é sintomática desse processo. Eles nascem em uma realidade midiática que corporifica Lara Croft, protagonista do jogo de computador homônimo, e transforma Angelina Jolie em sua cópia real. Mas isso ainda remete a uma espécie de Jurassic Park da imagem digital, que exigia a presença de superdesigners hábeis na manipulação de arquivos. Hoje elas avançam em direção a um novo repertório imagético. Ele antepõem o machine learning ao ato de olhar.///

 

Giselle Beiguelman é colunista do site da ZUM, artista e professora da FAUUSP. Assina também a coluna Ouvir Imagens na Rádio USP e é autora de Futuros Possíveis: arte, museus e arquivos digitais (2014), entre outros. Entre seus projetos recentes, destacam-se Odiolândia (2017), Memória da Amnésia (2015) e a curadoria de Arquinterface: a cidade expandida pelas redes (2015).

 

 

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