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O futuro da imaginação depois do TikTok

Giselle Beiguelman Publicado em: 4 de novembro de 2021

 

Versão reduzida, com 3 telas, de Coleção particular (de bolso), de Lucas Bambozzi, apresentada na exposição SinchroniCities BXL – SP, Bruxelas, 2017.

O TikTok, aplicativo chinês de propriedade da ByteDance, chegou em setembro de 2021 a 1 bilhão de usuários. Em um ano, entre 2020 e 2021, cresceu 45% e tornou-se “o lugar” para se estar durante o isolamento social. O TikTok é a mais maquínica das redes. Não por acaso a primeira coisa que oferece é o botão For You (Para Você). É esse o canal por onde o aplicativo decide, a partir de seus prognósticos de Inteligência Artificial, os vídeos que você supostamente gostaria de ver.

No tsunami de imagens que se sucedem, consolida-se um estado “poltergeist” de ser. Como no filme no qual a protagonista de cinco anos se comunicava com um fantasma que se manifestava pelo monitor de tevê, somos tragados por um fluxo ininterrupto de vídeos que se sucedem ao bel-prazer de uma IA. Fenômeno de mercado e audiência jovem, ali ninguém está preocupado em fazer “amigos” ou criar “comunidades”. Não espanta que tenha dobrado sua audiência no período pandêmico. É uma mídia de solitários. Não é um lugar para comentários e textão.

Não se trata de uma volta ao espectador de tevê, que o teórico Arlindo Machado (1949-2020), definiu como “zapper”, uma espécie de editor anárquico “que potencializa, ou mesmo tira consequências daquilo que é o funcionamento normal da televisão, funcionamento que consiste em interromper tudo e tudo seccionar, para embaralhar os gêneros, substituir as prioridades e fazer instaurar o fragmentário como condição do exepressivo” (Máquina e imaginário, 1993, p. 147). É o oposto. O “tiktoker” não seleciona. Ele recebe initerruptamente o que o aplicativo direciona a ele.

O sucesso de público do TikTok explica a aderência de outras redes, como o Twitter e o Instagram, ao regime de recomendações em detrimento do movimento do feed que, como sabemos, é inteiramente orientado para a composição do perfil dos usuários em suas bolhas algoritmicamente filtradas. No caso do TikTok as recomendações são praticamente uma imposição.

Em Not For You (2021), Ben Grosser oferece uma extensão do app para o navegador que pretende ocupar as brechas da programação do TikTok e fazer com que sejam inseridas na tela do usuário vídeos que o algoritmo de recomendação jamais disponibilizaria. Um dos aspectos mais interessantes de seu projeto é permitir visualizar as rotinas de programação que fazem a indicação de conteúdos, que rolam como uma cascata e produzem um efeito mental anestésico. Definitivamente, não é preciso fazer nada no TikTok. Consumir imagens basta. Talvez por isso seja esse aplicativo o ícone da cultura das redes atual. Tudo indica, pelo peso que o Instagram vem dando ao seu Reels, que o futuro é TikTok.

O emergente protagonismo da China na cena atual da Internet é um dos aspectos mais que interessantes desse futuro, haja vista que esse aplicativo, o TikTok, é o primeiro a furar a muralha de bits do Vale do Silício. Acirram-se nesse contexto questões relacionadas a uma nova geopolítica, embarcada na territorialidade distribuída que emaranha os poderes políticos estatais e corporativos.

Não há expressão mais contundente dessa imbricação que o conflito entre o Google e a China em 2009, marcando a irrupção da Primeira Guerra “Sino-Googlesa” da história, quando o Google disputou (e perdeu) o filão de buscas na nação chinesa, um fato analisado em profundidade por Benjamin H. Bratton em On Software
and Sovereignty
(Sobre Software e Soberania – MIT Press, 2018). Outro capítulo dessa nova história foi escrito quando Donald Trump tentou impedir o funcionamento do aplicativo nos EUA. Mais uma batalha perdida. Mas, para além dessa nova cartografia de poder global, em que países e empresas se enfrentam, a “tiktokização” das redes traz uma série de questões estéticas e simbólicas.

Ronaldo Lemos escreveu há poucas semanas um artigo na Folha de S. Paulo no qual comentava que esse aplicativo dispensa toda a cultura audiovisual e a história da arte que o precede. Concordo e não teria nada a acrescentar. Por isso, chamo aqui a atenção para outro ponto: a migração de uma economia da atenção para uma da retenção, e o que isso significa em termos comportamentais e simbólicos

Essa é uma pauta central na obra Coleção privada (de bolso), de 2016, de Lucas Bambozzi. Nessa videoinstalação o artista organiza uma série de trabalhos em vídeo que mostram obras renomadas e reconhecíveis de arte moderna e contemporânea. Elas são manipuladas na tela de um dispositivo portátil e exibidas em telas LCD verticalizadas e disponibilizadas lado a lado no espaço expositivo.

 

Foto da obra Coleção particular (de bolso), de Lucas Bambozzi, 2016

As imagens das obras, que incluem trabalhos de Duchamp e Warhol, passando por Francis Alÿs e Baldessari, aparecem respondendo a um movimento característico dos mecanismos de busca no celular. Como um scroll infinito no qual as imagens estão para serem olhadas sem nunca ser contempladas. Estar diante da Coleção de Bambozzi, por isso, é como estar no TikTok. Não só pela intensidade de seus fluxos, mas também pela uniformidade e repetição das imagens.

Uma repetição que remete às arquiteturas algorítmicas de distribuição do conteúdo, de acordo com um regime de darwinismo social dos dados, no qual, por seleção natural, vence sempre o mais forte (o mais acessado). Estamos vivendo a paradoxal situação de potencialmente criar a mais rica e plural cultura visual da história, pela democratização dos meios, e mergulhando no limbo da uniformização do olhar. Essa uniformização plasma uma máquina cerebral que opera por meio de plataformas, cuja força reside na maneira como dão forma a um mundo baseado apenas em dados que podem ser acumulados, analisados e modelados. São esses os limites e os risco da Inteligência Artificial, discutidos por Yuk Hui em Tecnodiversidade (UBU Editora, 2021).

Para compreender alguns desdobramentos desse modelo, basta aqui lembrar da fórmula de sucesso de bandas de K-Pop, como o BTS, cuja estratégia assenta-se no TikTok, apoiado em um fã-clube distribuído, de no mínimo 20 milhões de pessoas organizadas em armies (exércitos – é assim que os grupos de fãs do BTS se chamam). Como soldados, essas pessoas se esmeram em remixar e dublar o septeto sul-coreano, replicando o BTS como um eco contínuo.

A passagem da ideia de clube para exército mereceria uma análise mais aprofundada que não cabe neste espaço. Contudo, não se pode deixar de notar o quanto ela responde a processos de padronização do olhar e dos corpos que se adequam a um determinado regime de imagens. E aí está a chave para entender a dimensão biopolítica da “tiktokização” das redes.

Biopolítica é como o filósofo francês Michel Foucault descreveu o processo pelo qual o capitalismo estabeleceu, dos fins do século 18 em diante, as diretrizes para controlar os corpos e amestrá-los para as novas condições de trabalho fabril. É nesse contexto que nasce a sociedade disciplinar. A industrialização, a cidade moderna e a formação dos Estados nacionais são pautadas por novas demandas, que impuseram novas regras para que os corpos operassem com a velocidade, a eficiência e os padrões de comportamento que o trabalho e o espaço urbano solicitavam.

Da escola à fábrica, passando pelo transporte coletivo, o exército e a rua, um conjunto de diretrizes passa a prescrever as formas de ocupar a cidade e normatizar o comportamento para a produção e o consumo. É o que Michel Foucault chama de “corpos dóceis”: corpos que podem ser sujeitados, transformados e melhorados. Mas a sociedade disciplinar de hoje não passa mais pela adequação da força dos corpos à fábrica, e sim às redes, incidindo no regramento da produção e circulação de imagens para disciplinar o olhar. Esse regramento não se circunscreve à Internet. Seus meandros remetem à cadeia produtiva que envolve das câmeras, cada vez menos dependentes de lentes e de sensores e mais de Inteligência Artificial, aos programas de processamento de imagens e os canais por onde escoam.

Em conjunto eles respondem e modelam a formatação padronizada de perspectivas, de cores e de pontos de vista que nos condicionam ao uso e às diretrizes da “superindústria do imaginário”, título e tema do excelente livro de Eugenio Bucci (Autêntica, 2021). Nesse contexto, fica claro que se o século 19 criou as regras para amestrar os corpos dóceis, as redes sociais consolidaram as normas dos olhares dóceis. Que tipo de imaginação (estética e política) será possível a partir desse monopólio do olhar? //

 

Giselle Beiguelman é colunista do site da ZUM, artista e professora da FAUUSP. É autora de Políticas da imagem: vigilância e resistência na dadosfera (2021) e Memória da amnésia: políticas do esquecimento (2019), entre outros. Site: desvirtual.com.

 

 

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