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Cinco encontros com Cristiano Mascaro

Ronaldo Entler Publicado em: 17 de junho de 2019

Avenida São João, de Cristiano Mascaro, São Paulo, SP, 1986

O que os olhos alcançam, em cartaz no Sesc Pinheiros (SP), é a maior mostra já dedicada ao trabalho de Cristiano Mascaro. Além de fotografias e ensaios consagrados, a exposição traz também imagens menos conhecidas do início de sua carreira e um conjunto significativo de trabalhos inéditos produzidos na última década, período em que Mascaro diz ter conquistado maior liberdade para definir seus trajetos e escolher aquilo que fotografa.

No conjunto de fotografias, a arquitetura predomina. Mas esses objetos sólidos e estáticos foram capazes de mover o fotógrafo ao redor do mundo, de convidar a uns tantos desvios e de promover muitos encontros. A experiência acumulada nesses trajetos permitiu que Mascaro desenvolvesse também, como poucos, essa arte quase extinta de contar histórias. Quem tem a oportunidade escutá-lo sabe o quanto suas imagens se desdobram em parábolas que costuram não apenas os elementos da paisagem, mas um universo mais amplo de acontecimentos da nossa vida social, cultural e política.

Com 180 imagens, a curadoria realizada por Rubens Fernandes Junior permite uma incursão generosa por 50 anos de seu trabalho, incluindo fragmentos biográficos e algumas de suas referências artísticas e afetivas. Ao mesmo tempo que sugere um trabalho em pleno curso, o recorte é orgânico e tem sua suficiência. Basta dedicar o devido tempo a uma exposição desse porte para entender o que é o trabalho de Cristiano Mascaro.

Para tentar uma outra aproximação ao pensamento do autor, optei por seguir algumas histórias. Mais pontualmente, aquelas poucas que pude testemunhar nos encontros que tive com ele. Não foram muitos. Foram precisamente cinco nos últimos 30 anos, em momentos diversos e com grandes hiatos. Esse pensamento está certamente impresso em suas imagens e abre outras portas para voltar à exposição.

Museu Chichu, de Cristiano Mascaro, Naoshima, Japão, 2017

Literatura

No final dos anos 1980, assisti a um debate que, entre outros fotógrafos, tinha a participação de Mascaro. Ao final, uma pergunta vinda da plateia pedia indicações de leitura para alguém que desejasse se iniciar na fotografia. Enquanto os outros debatedores tentavam lembrar nomes de publicações especializadas, um tanto raras no Brasil, a resposta de Mascaro foi curta e precisa: “leia Machado de Assis”.

Não existem na obra desse escritor muitas referências à fotografia. Não terá sido por aquilo que Machado de Assis pensa sobre essa linguagem que Cristiano Mascaro fez tal recomendação, mas sim pela necessidade de construir um repertório cultural mais amplo, de fazer com que as imagens dialoguem com eventos que vão além daqueles que foram enquadrados.

A literatura representa uma parte importante da formação de Mascaro. Foi também nesse território – mais precisamente em Proust – que Rubens Fernandes foi buscar o título da exposição: O que os olhos alcançam. Se transformássemos essa frase em uma pergunta, talvez Machado de Assis nos oferecesse uma resposta: “o olho do homem serve de fotografia ao invisível, como o ouvido serve de eco ao silêncio” (Esaú e Jacó). O olhar e a escuta são exercícios importantes para Mascaro, por isso, tantas imagens e tantas histórias. E não importa se ele lembra ou mesmo se conhece essa passagem de Machado de Assis. Algumas obras se tornam atemporais não tanto porque continuam a ser lidas, mas porque, quando as descobrimos, elas têm uma capacidade surpreendente de nos ler em nosso próprio tempo. Essa é uma boa maneira de entender o que chamamos corriqueiramente de “clássico”, caso precisemos mais adiante de uma definição que valha também para a fotografia.

Bilheteria, de Cristiano Mascaro, Brás, SP, 1977

As cidades que Mascaro mostra são um pouco invisíveis (para lembrar também a obra de Italo Calvino, que ele assume entre suas referências). Porque, mesmo que passemos pelos mesmos locais, não encontraremos essas cidades facilmente: é preciso disposição para buscá-las ou, quem sabe, para construí-las. Elas não estão prontas e talvez não existam fora dessas fotografias. Invisíveis também porque, ainda que sejam documentos de lugares visitados pelo fotógrafo, no conjunto trazido pela exposição, elas chegam para nós como uma espécie de alegoria sobre uma relação perdida com a paisagem: recobramos ali uma promessa de organização não cumprida pelo pensamento moderno que concebeu a ideia de metrópole, e também um olhar contemplativo que o ritmo das próprias cidades ajudou a aniquilar.

Para além de uma erudição, Mascaro diz ter tirado da literatura algumas lições aplicáveis à fotografia: aprendeu com um texto do sociólogo e crítico literário Antônio Cândido a força e a simplicidade das metáforas, uma forma de falar da realidade por meio de imagens inventadas. Na metáfora, diz Cândido, “o mundo está e não está presente” (Mundo desfeito e refeito). Mais ou menos como nessas imagens que, para chegar ao cerne das coisas, acabam por reconfigurá-las. E, se a fotografia parece constrangida, de um lado, pela realidade que está diante da câmera e, de outro, pela impossibilidade de fazer a imagem coincidir com ela, Mascaro aprendeu com Ernesto Sábato que “cada arte tem seus objetivos e seus limites. E, coisa estranha, essas limitações não constituem uma debilidade, mas uma força, do mesmo modo que para empurrar um móvel nos apoiamos em algo resistente” (O escritor e seus fantasmas).

Palácio do Planalto, de Cristiano Mascaro, Brasília, DF, 2010

A cidade vazia

Alguns anos depois daquele debate, participei de um workshop com Cristiano Mascaro. Vendo algumas de suas fotos de São Paulo, eu me perguntava porque a cidade que se mostrava à sua câmera era tão diferente daquela que eu via. Apressadamente, conclui que a qualidade de suas fotos tinha algo a ver com a ausência da figura humana. No workshop, tínhamos um exercício a fazer. Acordei às quatro horas da manhã e segui em direção a um centro da cidade que mal começava a acordar. Quantas vezes não buscamos nos equipamentos – nas câmeras, nas lentes, nas impressoras – o suposto segredo daquilo que admiramos. Desta vez, imaginei o despertador como um dispositivo capaz de reorganizar a cidade para a fotografia. O resultado que obtive foi um conjunto de linhas e volumes sem vida, em todos os sentidos. É por isso que alguns abandonam a câmera, e outros devem seguir com ela por toda a vida.

Na exposição que Mascaro apresenta agora, excluindo os eixos dedicados ao seu período de formação, à sua atuação no fotojornalismo e aos primeiros ensaios, o que vemos é ainda uma paisagem urbana com uma presença discreta da figura humana. Ficamos tentados a opor a solidez da arquitetura à fluidez dos corpos animados. Mascaro assume não se interessar por acontecimentos dramáticos, quando as emoções humanas podem ser lidas de modo sempre imediato: “há quem faça isso com muita qualidade”, ele diz. O que ele busca é captar essa presença numa escala mais ampla. A arquitetura é, para ele, uma linguagem que, “desde Stonehenge, inscreve no espaço uma história da humanidade”.

Mascaro é formado em Arquitetura. Coordenou o Laboratório de Recursos Audiovisuais da FAU-USP por 15 anos. Fez mestrado e doutorado nessa área. Quando comenta seu trabalho, cita com propriedade arquitetos históricos e contemporâneos. Mas o que faz não é exatamente fotografia de arquitetura. Ele prefere dizer “fotografia de paisagem urbana”. Não é ao projeto arquitetônico que suas fotos estão dedicadas, como aquelas que encontramos, por exemplo, em revistas especializadas. Ao contrário de uma obra de arquitetura, a paisagem nunca está totalmente sob o domínio de uma assinatura autoral. Ela é o lugar de diálogo entre a natureza e a cultura. E, mesmo naquilo que ela tem de artifício, ela é o resultado de vivências coletivas e de intervenções construtivas ou destrutivas que se sobrepõem e se acumulam no tempo. A fotografia é um desses agenciamentos que permite a existência da paisagem.

Place du Trocadéro, de Cristiano Mascaro, Paris, França, 2011

Fotografia contemporânea

Em 2015, participei com Mascaro do júri de um prêmio cujo regulamento estimulava a presença de trabalhos experimentais realizados por autores em formação. Quando a produção contemporânea é colocada sob a perspectiva de 50 anos de experiência, ficamos especialmente atentos ao que podem ser os dogmas de uma fotografia que consideramos clássica.

Mascaro tem suas preferências, e não as esconde. Lemos no texto curatorial da exposição que trabalhos históricos como Images à la Sauvette, de Henri Cartier-Bresson, e Les Americans, de Robert Frank, foram decisivos em sua formação. A exposição dá conta dessa influência, assim como da distância que Mascaro acabou por tomar desses autores. Nas conversas, ele não deixa de mencionar fotógrafos de gerações e tendências diversas que admira. A lista é extensa e muito variada.

Em sua atitude, vemos o exercício de uma sutileza chave para o campo da crítica: a diferença entre o gosto e o julgamento estético. O trabalho que realiza, os trabalhos que admira e aqueles em que vê coerência e profundidade podem, perfeitamente, apontar em direções distintas.

Naquele júri, o modo como Mascaro dialogava com a diversidade de projetos apresentados ajudou a expor algumas fissuras daquilo que definimos como fotografia contemporânea.  Primeiro, o termo “contemporâneo” exige achatar uma temporalidade indefinida, um suposto presente que, no entanto, já tem uma história relativamente longa, repleta de releituras da tradição e muitas contradições internas. Segundo, a fotografia contemporânea tende a assumir em nossos discursos uma identidade negativa: uma vez que ela se pretende muito aberta e inclusiva, só conseguimos definir o que ela é tomando como referência aquilo que excluímos de seu campo. Ou seja, é preciso eleger oponentes para dar a ela o aspecto de uma causa pela qual precisamos lutar. Nessas horas, nosso olhar se enche de resistências.

Fortaleza de Sagres, de Cristiano Mascaro, Algarve, Portugal, 2016

Como dissemos, aparecem na exposição os nomes de Cartier-Bresson e Robert Frank. O que vemos são fotografias P&B com um claro-escuro surpreendente, todas muito bem compostas, impressas de forma impecável, bem situadas dentro do gênero documental e, mais pontualmente, em subcategorias que sabemos nomear: o fotojornalismo, o retrato, a fotografia de rua, a fotografia de arquitetura… Esbarramos em termos técnicos como 35mm, 6×6 e 4×5, e também em algumas anedotas sobre a passagem para o digital, “essa máquina cheia de botõezinhos que o nariz aperta sem querer quando olhamos pelo visor”. Destacar essas coisas para vestir no autor um estereótipo de clássico seria tão improdutivo quanto destacar as fotos de celular presentes na exposição para situá-lo num estereótipo de contemporâneo.

A exposição demonstra que Mascaro se manteve produtivo e irrequieto ao longo desses 50 anos. Demonstra também que, mesmo que cada imagem tenha força para ser vista isoladamente, em conjunto, elas constituem uma pesquisa extensa e consistente. Por fim, sugerem que essa relação entre fotografia e paisagem urbana, mesmo que consolidada na trajetória do fotógrafo e na história da fotografia, está longe de seu esgotamento.

Carregadores de sacos de farinha, de Cristiano Mascaro, Brás, SP, 1977

Públicos

Na cronologia dos nossos encontros, o último deles aconteceu agora, dentro de sua exposição. Foram três horas de uma prosa que se desviou por assuntos variados. Mascaro foi ao Sesc naquele dia para receber um grupo de crianças de uma escola, dentre elas, sua neta de quatro anos. Já no meio de nossa conversa, uma barulheira nos interrompe. Mascaro explica que os educadores do Sesc farão alguma atividade relacionada ao teatro, interagindo com sua exposição. Vamos, então, para uma sala anexa à exposição. Ali, um casal de adolescentes se aproxima lentamente com o catálogo em mãos. Eles pedem, nessa ordem, um abraço, um autógrafo e uma foto com o autor. Dizem conhecer o trabalho dele por um documentário veiculado na TV, e estão visivelmente emocionados. Enquanto dedica o livro ao jovem de nome Noel, Mascaro engata uma conversa sobre Noel Rosa, que o rapaz conhece bem dos vinis que ainda ouve com o pai. Por fim, quando já estávamos perto de nos despedir, ele recebe a visita da fotógrafa Claudia Jaguaribe. Com ela, os assuntos são um pouco mais técnicos: Mascaro fala da curadoria, da montagem, do processo de impressão das fotos, do mercado da arte. E conta histórias sobre imagens pontuais.

Como é possível dar conta de públicos tão diversos, com idades e interesses tão diferentes? Rubens Fernandes lembra num debate que realizou com o autor que, entre outras motivações, a exposição se constrói em torno de uma intenção educativa. Não é simples criar um percurso amigável com 180 imagens. A solução da curadoria foi dividir a exposição em 15 eixos definidos por conceitos ou temáticas que, por um lado, são facilmente identificáveis nas imagens e, por outro, são discutidos em linguagem acessível pelos textos que acompanham a exposição.

Basílica de San Petronho , de Cristiano Mascaro, Bolonha, Itália, 2016

Mas é preciso destacar, sobretudo neste momento de tanto desinvestimento em cultura, o acolhimento que o Sesc oferece tanto aos artistas quanto ao público. Por mais que estivesse ali para receber sua neta, Mascaro não deixa de se surpreender com o arsenal de recursos que os educadores tinham em mãos para engajar uma classe do ensino infantil numa exposição de arte.

Mas a capacidade de falar com tantos públicos é garantida também pelas imagens: para profissionais e leigos, é sempre interessante descobrir como formas reconhecíveis de uma experiência cotidiana podem ser reconfiguradas de maneira às vezes radical pela fotografia. Isso garante não apenas a fruição das imagens, mas uma reativação mais duradoura dos sentidos: é bem provável que as pessoas deixem a exposição um pouco mais atentas à cidade que as cerca.

Homem-placa, de Cristiano Mascaro, São Paulo, SP, 1991

Política 

Retrocedendo um pouco no tempo, o mais rápido e inesperado dos encontros aconteceu numa rua do bairro de Pinheiros, em setembro de 2018, tendo ao redor a multidão que descia em direção ao Largo da Batata para gritar “ele não”. Parei sozinho num café onde, cinco minutos depois, entra Mascaro, acompanhado da família e da fotógrafa Elza Lima. Ali, pela primeira vez, o assunto não foi a fotografia, mas a perplexidade em torno de um risco que se desenhava, e que viria a se confirmar.

A distância entre aquele largo abarrotado de manifestantes e as muitas ruas vazias e silenciosas que vemos na exposição é menor do que podemos imaginar. Não há no trabalho de Mascaro um conteúdo panfletário. Mas é preciso entender os diversos modos de um artista ter uma existência política. É preciso também entender a potência da forma.

A polaridade que vivemos hoje é mais radical do que nunca: não se trata apenas do embate – ainda saudável – entre uma sensibilidade de esquerda e outra de direita, uma sensibilidade progressista e outra conservadora. A polaridade que nos move agora se dá entre aqueles que reconhecem e os que não reconhecem as sensibilidades como um valor. Enquanto uns se interrogam sobre a adequação de certos meios a certos objetivos, outros priorizam suas metas com um pragmatismo inabalável, mesmo que ao custo de umas tantas violências. Neste último caso, já não interessa debater critérios estéticos e metodologias educacionais. Arte e educação se tornam inimigas, porque emperram os números da economia, a construção de condomínios, a produção da soja e o enfrentamento do criminoso. Uma característica marcante do fascismo é sua obsessão pela eficácia (cujo exemplo limite é justamente um projeto chamado de “solução final”).

Sem dúvida, é preciso ocupar o espaço, gritar, medir forças e oferecer resistência. Mascaro estava lá. Enquanto isso, é preciso também insistir em ações de longo prazo que invistam na reconstrução das sensibilidades. Ensinar a perceber a forma, a interrogar-se sobre os meios, os modos de dizer e de fazer as coisas, ensinar o olho a conviver com os contrastes é uma missão igualmente necessária. Além disso, dada a radicalidade da situação que vivemos, manter-se produtivo no campo da arte e levar um público grande e diverso a uma exposição já é um forte gesto de resistência.

Vaso com copos de leite, de Cristiano Mascaro, Ouro Preto, MG, 1991

Mascaro começou seus estudos em arquitetura no ano do golpe militar e tinha acabado de ingressar no fotojornalismo quando o AI-5 foi anunciado. Chegou a ser detido simplesmente porque portar uma câmera era um ato suspeito. Ele lembra que, em meio à repressão desse período, coube aos artistas inventar formas sutis e poéticas de dizer o que precisava ser dito. Reativar os sentidos pela força das imagens e das narrativas é uma forma de aguçar a leitura crítica do presente, mas também de trazer para a linha de frente uma memória e uma herança cultural que muitas pessoas desaprenderam a ler.

Não é pouca coisa demonstrar que as cidades devem produzir uma paisagem, que devem responder à sensibilidade do olhar, e não apenas à produtividade da indústria, à velocidade dos deslocamentos, à otimização das moradias, à circulação das informações, à assepsia dos costumes. As imagens de Mascaro trabalham silenciosamente para recolocar diante do olhar alguma dose de utopia sem a qual toda esperança se desfaz.///

 

A exposição O que os olhos alcançam está em cartaz no Sesc Pinheiros até 23 de junho. Mais informações aqui.

 

Ronaldo Entler é pesquisador, crítico de fotografia, professor e coordenador de pós-graduação da Faculdade de Comunicação e Marketing da FAAP (SP). Edita o site Icônica (www.iconica.com.br).

 

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