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A muralha esquecida, em ensaio de Stephan Vanfleteren

Dorrit Harazim Publicado em: 11 de junho de 2015

AW_FRANCE_QUIBERVILLE©StephanVanfleteren

 

Dificilmente alguém chegará ao fim deste ano sem ter visto alguma imagem nova relacionada à longínqua Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Isso porque ao longo de 2015 o mundo comemora o 70º aniversário da vitória dos Aliados sobre o nazismo. São festas, homenagens, cerimônias, monumentos, palestras, rezas, exposições,  desfiles, eventos sem fim – tudo com pompa ou recato em memória dos estimados 50  a 60 milhões de mortos daquela que foi a mais letal de todas as guerras.

O ano começou com a impactante comemoração do aniversário da libertação de Auschwitz-Birkenau pelo Exército Vermelho, que rendeu um ainda inédito baú de imagens e memórias. No  Dia da Vitória do 8 de maio,  data em que um preposto de Hitler assinou  em Reims e Berlim a rendição aos Aliados, Paris se veste de gala, Londres  tem festa por três dias e Moscou arremata com um imponente desfile militar. Agosto e setembro são reservados para  os Estados Unidos comemorarem a rendição do Japão. E eventos paralelos estão agendados para o ano inteiro nos cinco continentes.

É nesse contexto que vale destacar o surpreendente ensaio fotográfico Muralha do Atlântico do belga Stephan Vanfleteren, transformado em livro homônimo. Vanfleteren nasceu na região de Flandres Ocidental 45 anos atrás. Desde criança conviveu com estranhas estruturas de concreto e aço espalhadas na paisagem à sua volta. Aprendeu que eram fortalezas construídas para os soldados alemães durante a II Guerra e não pensou mais no assunto. Foi se formar em fotografia na Academia de Artes Sint-Lukas de Bruxelas e cuidou da carreira, iniciada como repórter fotográfico do matutino progressista de língua holandesa De Morgen .

 

AW_CHANNELISLANDS_Guernsey©StephanVanfleteren

 

Em pouco tempo Vanfleteren saltou do noticiário local para o nacional e dali para o cenário global. Publicações de prestígio como o New York Times , Paris Match e Die Zeit lhe encomendaram ensaios, ele   passou a fazer coberturas em zonas de conflito, a colecionar prêmios (cinco World Press Photo Awards, entre outros), publicou nove livros e teve obras expostas em mostras. Mas nunca deixou de olhar para casa.

Enquanto o imortal Jacques Brel cantou “Le Plat Pays como ninguém e conseguiu dar alma à melancolia belga, Vanfleteren esquadrinhou a Bélgica profunda: ao longo de 20 anos, dedicou-se a retratar suas  gentes, paisagens e cotidiano uma geração depois.  Encontrou a mesma melancolia na nação de 177 anos que ainda busca uma identidade.

Batizou esse interessante projeto de “Belgicum”. Como em toda sua obra, imprimiu-lhe a marca autoral das imagens em preto e branco intenso, e alto contraste. A galeria de pessoas comuns que integram o ensaio deixam impressão memorável – elas foram retratadas não como tediosas figuras intercambiáveis, mas como desconhecidos que talvez valha a pena conhecer.

Dois anos atrás Vanfleteren  recebeu a proposta talvez mais instigante de sua carreira. O contratante era um museu e a tarefa, quase arqueológica: fazer o registro fotográfico das estruturas abandonadas pelas tropas nazistas em terras belgas. Por ser uma instituição militar, o Atlantikwall Museum de Raversijde tinha interesse no que restava dos mais de 60 bunkers e quatro quilômetros de trincheiras que no passado haviam formado o trecho belga de uma grandiosa fantasia bélica de Hitler – a chamada Muralha do Atlântico.

Fora esse o nome dado pelo Führer a um vasto sistema defensivo construído ao longo da costa ocidental europeia com brevidade germânica. Entre 1943 e 1945, ou seja, em pleno auge do conflito mundial, 2,7 mil quilômetros de costa marítima foram transformados em território “intransponível”. Temerosos de que os Aliados lançassem um ataque anfíbio pelo flanco atlântico, os estrategistas do Terceiro Reich decidiram imunizar suas novas fronteiras imperiais construindo a maior defesa bélica do século 20. Ela se estendia do norte da Noruega até os Pirineus na fronteira sul da França com a Espanha, e fincava garras no solo da Dinamarca, Holanda, Alemanha e Bélgica.

 

Atlantic Wall, Berck-Plage,France

 

Tudo em tempo relâmpago. Graças à utilização da mão de obra alemã somada à de prisioneiros de guerra e ao trabalho escravo francês, foram espetados  bunkers de concreto e aço no alto de penhascos, fincadas fortalezas de artilharia em enseadas, semeados campos de minas na areia, plantados obstáculos  de aço na terra. Construída pela firma de engenharia Fritz Todt, a mesma que dotara a Alemanha nazista de suas invejáveis autoestradas, a Atlantische Wand sob responsabilidade do marechal de campo Erwin Rommel receberia o inimigo a ferro e fogo.

Só que o inimigo não veio. Como se sabe, as tropas Aliadas fizeram o seu decisivo contra-ataque por outro flanco europeu: a Normandia, roubando a imponente muralha de qualquer serventia. Ao fim da guerra inúmeras de suas estruturas foram desmontadas pelas populações locais enquanto outras foram sendo engolidas  pela natureza ou incorporando à paisagem suas formas de outro mundo.

Foi essa história a céu aberto que Stephen Vanfleteren revisitou com olhos de fotógrafo após ter cruzado com ela distraidamente quando criança. Ao longo de um ano ele fincou o tripé no mar, escalou rochedos, navegou entre fiordes. Admirou-se com as linhas elegantes de algumas estruturas, espantou-se com a modernidade da arquitetura de outras, surpreendeu-se com as dimensões de tudo. Sobretudo, ficou estarrecido com a megalomania de um projeto do qual a Bélgica era apenas um dos elos.

Habituado a câmeras de formato grande e a trabalhar com vagar, chegando a levar uma hora para bater uma única chapa no projeto “Belgicum”, Vanfleteren não se sente à vontade com câmeras que cabem numa mão. “O mundo anda depressa demais e por isso costumo puxar o freio”, declarou na abertura de uma mostra em Hamburgo. “Talvez seja a razão pela qual me tornei fotógrafo.”

Se a fotografia é a representação física do tempo, como teorizou  em 1927 o pensador cultural alemão Siegfried Kracauer, Muralha do Atlântico  é uma obra que retrata essa materialização da memória.///

 

ATLANTIC_WALL_FRANKRIJK_HUEQUEVILLE01

AW_DANMARK_lokken©StephanVanfleteren

Atlantic Wall, Vigo,  Danmark

AW_FRANCE_Zuydcoate©StephanVanfleteren AW_NORWAY_skallev©StephanVanfleteren

 

Dorrit Harazim é jornalista e documentarista brasileira. Nascida na Croácia durante a II Guerra Mundial, talvez venha daí seu interesse pelo papel da fotografia na história e pela história da fotografia como meio de comunicação.

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IMAGENS: © StephanVanfleteren