Claudia Andujar – no lugar do outro

Imagens de um tempo em transe

Fred Coelho Publicado em: 22 de outubro de 2015

Sala “Natureza” (c. 1970-72) na exposição “Claudia Andujar, no lugar do outro”, IMS-RJ

Em um belo ensaio intitulado O Brasil não é longe daqui, a crítica Flora Süssekind nos apresenta as principais linhas de força para a formação do narrador moderno na literatura brasileira no século XIX. Dentre essas linhas de força (ou de sombra, se usarmos o termo da autora), ela destaca aquela que alimenta um narrador cujo deslocamento, a viagem, a solidão da aventura e o embate com a vida selvagem tanto resulta no modelo do conquistador que traz a razão, quanto no modelo do estrangeiro que sucumbe ao poder devorador da natureza. Os primeiros dominam, civilizam, impõem o progresso. Os segundos sucumbem, naufragam, se perdem, animalizam seus atos, desaparecem.

A exposição No Lugar do Outro, da fotógrafa Claudia Andujar (curadoria de Thyago Nogueira), nos apresenta um trânsito entre dois mundos de um país em plena e eterna transformação. Um país que ora devora o outro, ora é devorado por si mesmo. Como os narradores do estudo de Flora, vemos as fotos de Andujar e ficamos a oscilar entre o progresso que civiliza e a vastidão que engole tudo e nos mostra o limite de nossa sociedade industrial. De certa forma, concreto e natureza, progresso e miséria, casa e rua, família e solidão, amor e castração, realidade e delírio, nos arremessam em um jogo de dentros e foras. Tanto podemos deitar no chão de uma rua em São Paulo quanto flutuarmos sobre cachoeiras monumentais da Amazônia.

A narrativa da montagem nos localiza imediatamente nessas contradições complementares, pois o olho da viajante (Andujar faz da viagem um dos componentes centrais em seu trabalho) nos embrenha em uma floresta edênica, mágica, multicor, aquífera, em que cada foto é a metonímia de um paraíso. São as imagens do rio Jari em 1972, nas bordas da drástica intervenção que a Transamazônica e outros projetos desse porte causariam na floresta e em toda a região. Logo depois desse mergulho sagrado na natureza, porém, nos deparamos com fotos de diversos tamanhos, dedicadas a famílias brasileiras espalhadas por todo país. Uma sequência de imagens em preto e branco retratando casas e pessoas em cidades de Minas, Bahia e São Paulo. Suas cenas atravessam interior, litoral, ricos, pobres, negros, brancos, religiões, rituais, todos enredados na rotina mais comezinha da vida local. De uma sala para a outra, mudamos radicalmente a lente: saímos do espaço infinito da imaginação tropical e entramos nos detalhes realistas de casas em claro-escuros. O sublime atemporal da floresta se choca com o tempo recortado e monótono das famílias.

Essa narrativa em trânsito segue suas linhas de sombra. A história solitária de Sônia, modelo que vem da Bahia tentar a sorte em São Paulo durante o ano de 1970, é contraposta aos estudos sobre o crescimento urbano descontrolado da cidade. Nas fotos do corpo da modelo e dos prédios e ruas paulistanas, vemos uma vontade de rasurar aquilo que se apresenta como óbvio. Apesar de serem bem diferentes, compõem uma série plena de efeitos, cores, experimentos e sobreposições. Em todas há o mesmo desejo construtivo de manipular as formas, sejam elas do corpo feminino, sejam da cidade. São curvas interrompidas, retas sobrepostas, cores e camadas que criam aspectos espectrais para os temas em questão.

O Brasil de Andujar (país em que ela, de origem húngaro-suíça, virou fotógrafa), porém, vai muito além dos dualismos e das manipulações com a forma. Na sessão “Histórias reais”, testemunhamos seu olhar generoso a eleger o outro como espaço de invenção e de expansão de possibilidades estéticas. Parte fundamental de uma das maiores realizações brasileiras do século XX – a criação de um fotojornalismo de massa, com profissionais nacionais e internacionais de qualidade produzindo reportagens para revistas de tiragens altas e distribuição nacional – Andujar pôde ir fundo nas utopias e nas neuroses do país de seu tempo. Drogas, homossexualismo, loucura, degradação social, partos, espiritualismo, milagres, morte, vida, são temas cujas fotos expostas nos apresentam um período de progressos e misérias, de libertações e solidões.

Além da força das imagens em sua qualidade estética, o trabalho fotográfico de Andujar para a revista Realidade (entre 1966 e 1971 ela realizou mais de trinta reportagens) traz a marca de uma fotografia tanto documental quanto sensorial. Como retratar uma viagem de drogas, a emoção de um parto natural, a solidão de sua orientação sexual marginalizada, a realização de um milagre, pesadelos ou uma sessão de psicodrama e fazer com que cada foto ganhe o peso das sensações presentes na cena? Alterar cores, granular imagens, explorar a força da luz, registrar detalhes potentes, dar crueza aos eventos foram algumas das estratégias desconcertantes de Andujar.

Mas é em uma sessão em especial da série “Histórias reais” que a narrativa da exposição ganha força fatal. Em “É o trem do diabo”, a fotógrafa viajou por sete dias em um trem que ligava a parte central de São Paulo até cidades no interior de Minas Gerais e da Bahia. Era um trem cuja função era “devolver” os imigrantes que chegavam desses estados até a capital paulista. Segundo texto da reportagem, de Patrício Renato, “com uma trouxa de roupa e um passe de favor, embarcam nos vagões de madeira vermelha do ‘trem baiano’. Criaturas maltratadas pelo destino, retornam já sem esperanças. A viagem é longa, sofrida”. Aqui, a viagem como extensão do olhar ganha contornos dramáticos. Pois nos rostos que aparecem nas fortes fotos de Andujar, vemos toda a exposição. Em uma espiral, temos no trem os homens, mulheres e crianças que não conseguiram virar empregados domésticos nas casas das famílias fotografadas. Temos as expressões agudas daqueles que, assim como Sônia, não conseguiram ser bem sucedidos e tiveram de retornar – e que, caso não retornassem, poderiam terminar loucos no Juqueri, presos ou abandonados à própria sorte na cidade imensa da rua Direita e do labirinto de prédios. São rostos que escancaram um projeto de modernização cuja destruição da floresta exuberante para construir uma hidrelétrica era atado ao abandono de sua população em “trens do diabo” que os conduziam de volta a sua origem e sua miséria.

O olho da fotógrafa-viajante narra a quimera do paraíso com a mesma força e inventividade que expõe os recônditos de sujeitos em conflito. Usa a casa com a mesma maestria que a rua para captar olhos e gestos. Deforma, transforma, informa seus temas e personagens, “penetra nas pessoas” e faz delas sínteses de mundos e histórias. Não é fácil estar sempre no lugar do outro. Mas Andujar não só aprofunda sua política da alteridade radical como, principalmente, permanece reverberando-a em imagens cuja ética de um olhar constrói uma narrativa de um país que vive, até hoje, oscilando entre luzes e sombras.///

 

Fred Coelho é professor de Literatura e Artes Cênicas da PUC-Rio, colunista de O Globo e mantém o blog objetosimobjetonao.blogspot.com.

 

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Claudia Andujar, no lugar do outro

Catálogo da exposição
Organização de Thyago Nogueira
Formato: 21 x 26 x 2cm
Número de páginas: 268
ISBN: 978-85-8346-025-1
Preço: R$ 129,90
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Leia trecho da entrevista publicada no catálogo

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