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A crise do fotojornalismo e o caso do falso fotógrafo de guerra Eduardo Martins

Ignacio Aronovich Publicado em: 6 de setembro de 2017

Instagram do falso fotógrafo Eduardo Martins. O perfil foi roubado do surfista britânico Max Hepworth-Povey, surpreendido pela história. Reprodução do News.com.au

 

A essa altura, todo mundo com algum envolvimento com a fotografia (e curiosos em geral) já ouviu a história de Eduardo Martins, o fotógrafo que enganou todos passando-se por um surfista bonitão que apoiava causas humanitárias e documentava conflitos globais. No entanto, o caso do fotógrafo fake expõe questões importantes que devem ser discutidas, principalmente por profissionais reais do meio jornalístico.

Aparentemente, mais do que serem enganadas, as pessoas queriam de fato acreditar na figura heróica do sobrevivente de leucemia que descobre uma súbita consciência e quer “ajudar as pessoas em zona de conflito.” O fato de ser branco, loiro, de olhos azuis e surfista ajudou a conquistar parte dos seus 127 mil seguidores no Instagram.  E abriu o caminho para ter o seu perfil publicado em veículos renomados como Vice, BBC e algumas outras publicações internacionais.

Estamos diante da fragilidade do modelo de negócios da fotografia jornalística em tempos digitais, em que sites de notícias e publicações acham normal não pagar pelo conteúdo editorial que veiculam (ou não suspeitam da oferta de material gratuito) de um fotógrafo ficcional como Eduardo Martins, sem preencher um cadastro de colaborador, pode passar totalmente despercebido. Se os veículos tivessem oferecido pagamento pelo material, como deveria ser o padrão, a mentira não iria tão longe. Uma analogia básica: nenhum jogador de futebol aparece jogando na seleção sem passar pela terceira divisão, segunda etc. O mesmo vale para o fotojornalismo. Uma trajetória sem rastro, sem um começo ou evolução, deveria ser suspeita.

Reprodução do site da agência Getty com fotografia de Daniel C. Britt creditada a Eduardo Martins. Reprodução do Sputnik News.

 

Apesar de alguns veículos reconhecerem o erro, segue embaraçoso para a credibilidade deles que tenham publicado o conteúdo de um fotógrafo que sequer se deram ao trabalho de verificar se existia. Seguir alguém fake no Instagram é muito diferente de publicar um perfil em um veículo de comunicação de grande alcance.

Outro ponto importante a ser levantado sobre o caso é o desaparecimento da figura do editor de fotografia das redações, algo que aumenta a chance de abusos e fraudes. A grande maioria das publicações não tem pessoas com memória alguma, nem do que foi publicado no próprio veículo. A cultura visual dos editores mostra-se limitada. E fotógrafos com imagens visualmente dissonantes como as de Daniel C. Britt (Iraque e Síria) e Nir Alon (Congo) são publicadas com o nome de “Eduardo Martins”, sem que ninguém repare a diferença na linguagem e no estilo. Querer acreditar no “Rodrigo Hilbert da fotografia de conflito” ajudou.

As agências Getty Images, Zuma Press e NurPhoto também merecem crítica. A NurPhoto por aceitar a colaboração de um fotógrafo sem checagem rigorosa de quem era. E a Getty e Zuma por redistribuirem esse conteúdo sem questionar sua origem. Em uma pesquisa rápida, encontrei várias fotos de Daniel C. Britt publicadas em nome de Eduardo Martins. O artifício utilizado por Martins para roubar as imagens foi simples: basta “flipar” a imagem horizontalmente e o Google entende se tratar de uma nova fotografia. Simplesmente reverti o “flip” horizontal para encontrar o verdadeiro dono da foto.

Fotos de Daniel C. Britt (dir.) que foram “flipadas” e vendidas por Eduardo Martins (esq.). O método utilizado pelo falso fotógrafo impedia que o Google Images não detectasse o verdadeiro autor das imagens. Montagem de Ignacio Aronovich a partir de reproduções de tela da internet.

 

O fato de as imagens terem sido roubadas da internet também cria uma dúvida adicional: como as agências aceitaram imagens que não estavam em alta resolução, em tamanhos reduzidos? Como o aceitaram como colaborador? Isso diz muito sobre o negócio da fotografia e da voracidade incessante do mercado. E, finalmente, se a NurPhotos repassou ao “colaborador” o pagamento pela veiculação destas imagens, com certeza há dados bancários e algum rastro de transação financeira.

Minha intenção aqui não é apontar culpados ou julgar quem foi enganado. Mas refletir sobre como isso pode acontecer. Cento e vinte e sete mil pessoas seguiam um personagem no Instagram. Agências, curadores e jornalistas profissionais também acreditaram sem questionar (ou apurar melhor a linda história).

Saber que o usurpado Daniel Britt está fazendo bicos como bartender para bancar seu próximo projeto, enquanto suas fotografias eram usadas por três agências internacionais, demonstra a fragilidade do sistema e como a internet e a imagem digital permitem que cada vez mais abusos sejam cometidos. Britt reagiu de maneira educada e profissional ao ser contatado pela agência Sputnik: “Se a Getty gostou das imagens do Eduardo Martins, vai gostar do meu próximo projeto”. Respeito máximo.

Instagram do falso fotógrafo Eduardo Martins. O perfil foi roubado do surfista britânico Max Hepworth-Povey, surpreendido pela história. Reprodução do News.com.au

Afinal, quem é Eduardo Martins? Possivelmente saberemos em breve, pois há uma investigação internacional em curso para prender o responsável por fraude e crime de falsidade ideológica. Existem também algumas teorias circulando: a primeira é de que a pessoa por trás do personagem Eduardo Martins seria um mitômano, fascinado pela fantasia de ser um fotógrafo de guerra bonitão. A segunda é de que se trata de um projeto de arte, criado para expor os defeitos do sistema, a facilidade de manipular a mídia e testar até onde as relações virtuais podem ir. Seria brilhante se fosse o segundo caso. Mas pelo histórico de manipular as mulheres com quem interagiu (várias revelaram ter sido namoradas virtuais do surfista), e pelo abuso que isso representa, pode ser a primeira opção. Até onde isso poderia ter ido?

O caso provoca reflexão e debate. Não há dúvida de que convivemos com muitos outros fotógrafos fakes. E é cada vez mais importante discutir os rumos da fotografia, a criação de falsos heróis, o protagonismo dos fotógrafos de guerra, o privilégio branco e o modelo de negócios que permite que Eduardo Martins consiga ir tão longe sem ser detectado.///

 

Ignacio Aronovich é fotógrafo com base em São Paulo. Com Louise Chin é um dos criadores do coletivo Lost Art e, desde 2000, produzem trabalhos fotográficos, audiovisuais e exposições.

 

Em notas, BBC Brasil, NurPhoto, Getty Images e Vice comentaram o caso.

BBC Brasil: “Em 7 de julho de 2017, a BBC Brasil publicou um texto apresentando fotos e vídeos que seriam de autoria de um brasileiro que se apresentava para seus mais de 100 mil seguidores no Instagram como Eduardo Martins, fotógrafo da ONU. Após a publicação do conteúdo, surgiram suspeitas não apenas sobre a autoria das imagens enviadas como também sobre a verdadeira identidade de Martins. A BBC Brasil começou a investigar o caso há um mês e, pouco a pouco, os elementos de uma história construída por dois anos começaram a ruir. Diante das suspeitas e do risco de violação de direitos autorais, o conteúdo original foi retirado do ar. Pedimos desculpas a nossos leitores pelo engano. O caso servirá para reforçar nossos procedimentos de verificação.”

Getty Images: “A integridade editorial é de grande importância para a Getty Images e nossos fotógrafos são apaixonados em documentar o calendário global de notícias de um ponto de vista objetivo e imparcial. A manipulação e o uso de má fé da fotografia violam completamente a integridade editorial e a Getty Images leva muito a sério os usos não autorizados e manipulações de conteúdo, inclusive aqueles que infringem os direitos autorais. Eduardo Martins, a pessoa em questão, foi identificado como um colaborador e fornecedor de conteúdo de um de nossos parceiros que já foi notificado sobre esta infração. Enquanto trabalhamos em conjunto com todos os nossos departamentos internos para esclarecer urgentemente esta questão, estamos retirando do ar todo o material envolvido.”

NurPhoto: “Com referência a notícia publicada no dia 1 de setembro de 2017 pela BBC Brasil, Brasil247.com e outros jornais online a respeito de uma potencial violação de direitos autorais cometido por uma pessoa chamada Sr. Eduardo Martins, a agência NurPhoto vem esclarecer que imediatamente removeu todo conteúdo, imagens e fotos que foram fornecidas por Eduardo Martins e alertou todos seus clientes e parceiros a fazer o mesmo. A NurPhoto sempre trabalhou para demonstrar um forte profissionalismo, comprometimento e total dedicação para garantir que as leis de direito autoral sejam cumpridas. No primeiro contato com a NurPhoto por meio de seu website em 2015, Sr. Martins apresentou-se como fotógrafo reinvindicando ser o autor de um portfólio completo de fotografias e imagens profissionais. Além disso, tais imagens estavam disponíveis em suas redes sociais e site oficial. Após cuidadosa consideração de todos os fatos reportados no noticiário e considerando que, no momento, parece impossível contatar o Sr. Eduardo Martins e ao vermos que seu site e perfis nas redes sociais estão fora do ar, tememos que nossa agência tenha sido vítima de fraude feita por alguém que não é autor de suas fotos e cuja conduta está causando sérios danos de reputação para nossa companhia. Dito isso, no dia 2 de setembro de 2017, a NurPhoto abriu um processo criminal junto à polícia italiana contra o Eduardo Martins de modo a prevenir que o mesmo continue com essa conduta.”

Vice publicou em seu site matéria intitulada O fotógrafo que não existia comentando o ocorrido.

 

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