Revista ZUM 12

A luta do cinema indígena

Vincent Carelli, Fabiana Moraes & Ana Carvalho Publicado em: 30 de junho de 2017

Capitão Krohokrenhum encena a guerra no filme Adeus, capitão! Povo Gavião Parkatêjê. Imagens de Raimundo Gavião.

Criado há 30 anos, o projeto Vídeo nas Aldeias provocou uma pequena  revolução ao dar condições para que as populações indígenas do Brasil investigassem sua vida e seu entorno com uma câmera, algo que historicamente havia sido realizado por não índios. O projeto, iniciado pelo franco-brasileiro Vincent Carelli, teve seu embrião na ONG Centro de Trabalho Indigenista, e sua primeira oficina de formação, na aldeia Xavante de Sangradouro, em Mato Grosso, completa 20 anos. Chamado de “Alemão” nas ruas da Vila Mariana, bairro de São Paulo, Carelli nasceu em Paris e mudou-se para o Brasil com cinco anos. Em uma foto de 1959, aos seis anos, Carelli aparece brincando de arco e flecha. O instrumento de combate seria mais tarde substituído por outro instrumento, também de guerra: a câmera.

Aos 16 anos, Carelli viajou para o sul do Pará com frei José, um dominicano que mantinha contato com indígenas. A primeira visita foi aos índios Xikrin-Kayapó. Voltou de lá para dedicar-se à produção de imagens que desmontam os lugares-comuns associados aos índios, como os estereótipos de pureza e passividade. A ele se somaram outros não índios talentosos, como Tatiana Almeida (a “Tita”) e Ernesto Carvalho, codiretores do premiado documentário Martírio (2016), além de Ana Carvalho. Juntos, formam a equipe do Vídeo nas Aldeias, que produz e divulga filmes realizados por índios, além de hospedar um acervo significativo de documentários, reportagens e registros do cotidiano de várias aldeias brasileiras.

Corrida de toras em Eu já fui seu irmão (1993). Povo Gavião Parkatêjê. Imagens e direção de Vincent Carelli.

Há 30 anos, a câmera de vídeo era um aparelho pouco conhecido nas aldeias. Hoje é bastante popular. Como essa mudança se refletiu no trabalho do Vídeo nas Aldeias?

Vincent Carelli: Não só a câmera, mas a TV tampouco havia chegado às aldeias. Depois veio a parabólica, o VHS, a internet, o celular, o YouTube e as redes sociais. Hoje tem índio produzindo e postando imagem de tudo que é canto do Brasil. A produção de autoria indígena que fomentamos foi uma grande inspiração para muitos povos, e estimulou um interesse que viria naturalmente com o tempo.

Embora hoje todos tenham acesso aos equipamentos de produção de imagens, ainda é preciso estimular a produção de narrativas cinematográficas. O interesse que contagiou indígenas, tanto jovens quanto mais velhos, é maravilhoso. Quando sairmos do obscurantismo em que vivemos, será fundamental pensar numa política pública de estímulo ao cinema indígena. Numa civilização da comunicação, as minorias precisam garantir seu espaço no imaginário nacional; é uma estratégia de sobrevivência.

 

A recepção ao projeto mudou nesses anos?

VC: Não temos ido muito a novos grupos. A escola de cinema do Vídeo nas Aldeias está praticamente parada porque não temos financiamento. A situação é tão crítica que vamos fechar a sede [um casarão na rua de São Francisco, em Olinda, Pernambuco]. A oficina é cara porque cedemos equipamentos aos índios para dar continuidade ao processo de formação. Mas eles ainda ficam eufóricos quando veem os resultados de sua produção. Acho que hoje é a mesma reação de 30 anos atrás, quando comecei a fazer esse trabalho. Eles logo assumem o comando, sabem o que querem. Quando outros grupos assistem aos vídeos, ficam também interessados em mostrar sua vida: a primeira reação é sempre querer mostrar “quem somos nós”, e isso é o que nos interessa.

 

Você disse certa vez que a ida para a aldeia Xikrin-Kayapó, no Pará, na sua adolescência, foi uma aventura existencial. Quando essa aventura se tornou também política?

VC: Quando decidi morar sozinho com um grupo de índios pequeno, isolado. Passei a cumprir funções emergenciais, e virei enfermeiro aos 18 anos. Havia epidemias, e eu era o único que poderia desempenhar a função. Vivendo entre eles, você descobre que tem um papel, uma função, que pode ajudá-los. Você ocupa um lugar específico da relação.

 

A forma de trabalho do Vídeo nas Aldeias é a mesma de 30 anos atrás, com a participação quase exclusiva dos indígenas na captação das imagens e a colaboração de vocês no processo de edição?

Ana Carvalho: Ao longo desses 30 anos, o Vídeo nas Aldeias criou uma abordagem própria, que não é exatamente um método, mas um princípio. Não existe um modo indígena específico de fazer cinema, existe um conjunto de posturas e práticas de filmagem. São experiências que geram resultados diversos em relação aos povos e seus filmes, que revelam formas de ver, estar e sobreviver no mundo.

Em 1986, nas primeiras experiências, era apenas Vincent com uma câmera colocada a serviço dos índios; não era possível equipar as aldeias com câmeras, microfones e ilhas de edição. A câmera guiada pelo olhar e pelas demandas dos índios foi o embrião de um cinema que nasceu da colaboração entre brancos e índios e da apropriação de uma tecnologia não indígena na construção de um cinema indígena.

Os processos de formação são imersivos,  e longa duração, e neles orientamos in loco a construção do trabalho. Mas no campo são apenas eles, a câmera e seus personagens, seus espaços, suas questões. Eles filmam e, no fim do dia, vemos juntos o material.

A produção de um filme nasce do desejo da comunidade de fazer cinema, nunca de uma demanda externa. O processo começa com uma oficina de captação e produção audiovisual que dura de 20 a 40 dias, durante os quais os participantes filmam diariamente. No final de cada dia, vemos o material e discutimos as questões estéticas, éticas e técnicas que surgem. As aldeias são equipadas com câmeras e ilhas de edição para que o trabalho continue  a nossa ausência.

As oficinas de tradução e edição são a segunda parte do projeto. A tradução das falas e diálogos revela aos não índios a profundidade do material. É um processo coletivo, sempre realizado em espaço aberto, com toda a comunidade assistindo, uma alegria. Depois, iniciamos a edição. O primeiro corte é feito na aldeia. Os cineastas indígenas e a comunidade discutem e decidem o roteiro, o que vai ser mostrado, o que não vai etc. A montagem fina acontece na sede do Vídeo nas Aldeias, onde estão os equipamentos mais robustos para finalizar as produções, com a participação de cineastas que acompanharam o processo.

Chegada na aldeia em A arca dos Zo’é (1993). Povos Waiãpi e Zo’é. Imagens de Vincent Carelli. Direção de Vincent Carelli e Dominique Gallois.

De que forma essa estratégia contribui para a formação do olhar desses povos?

AC: Essa formação contínua, colaborativa e de longa duração permite que formas particulares de apropriação surjam ao longo do processo. Cada grupo se revela nos modos de produção dessas imagens. Esse aprendizado prático permite que as diferentes estratégias cinematográficas se manifestem.

VC: O processo ajuda a desconstruir a linguagem televisiva, a única que lhes é familiar hoje em dia; desenvolve a escuta, a observação e o respeito ao tempo próprio do mundo indígena. Mas é importante também que eles  ntrem em contato com outros repertórios, como os da videoarte, da animação e da ficção, o que permite a cada um encontrar sua linguagem e seus temas preferidos. No começo da formação, a autoria é coletiva, mas, aos poucos, alguns se destacam e resolvem realmente seguir na produção de registros e histórias, e a  autoria passa então a ser individual ou em parceria.

 

Quais questões surgem durante a produção dos filmes?

VC: Os povos mais presentes são aqueles com os quais construímos relações de formação continuada duradouras: os Mbya-Guarani do Rio Grande do Sul, os Ashaninka e os Huni Kuin, do Acre, os Xavante, e os Kuikuro, de Mato Grosso. Cada um traz questões específicas: os Guarani tratam do aspecto espiritual; os Ashaninka, do ambiental; os Huni Kuin, do mundo da Jiboia, dos seus ensinamentos de cantos e pinturas; os Xavante, dos grandes rituais de iniciação que estruturam sua sociedade. No caso dos Kuikuro, há também as grandes festas, mas, agora que o cineasta Takumã começou sua carreira solo, ele tem procurado novos assuntos, como os antropólogos, os missionários, a vida de sua família na cidade.

Em termos gerais, não é um cinema de questões abstratas, mas de imersão na vida cotidiana, principalmente dos jovens, ainda que, no caso das aldeias, haja sempre uma interação entre jovens e velhos. Eles não raciocinam com abstrações: é preciso entrar na vivência, principalmente se o objetivo for desenvolver uma linha de cinema direto, mostrar a realidade sem se impor a ela. Os primeiros filmes costumam registrar o cotidiano, os personagens, e só depois surgem as questões. Os Ashaninka gostam de ficção e das cerimônias de iniciação. Conforme a produção amadurece, aparecem os assuntos religiosos, as disputas políticas, e os filmes se tornam mais complexos. Já fizemos oficinas tentando impor temas, mas é difícil começar por recortes temáticos. É melhor deixar fluir, partir de uma ideia geral, “um dia na aldeia”, e ver o que acontece.

Pescaria em A gente luta mas come fruta (2006). Povo Ashaninka. Imagens e direção de Isaac e Wewito Piyãko.

Como os índios encaram os conceitos de ficção e não ficção? Na cultura indígena há tabus visuais, como as cenas de sexo, parto, doença ou morte para nós?

VC: Eles aprendem o que é ficção, e alguns gostam até mais que da linguagem documental, porque querem encenar histórias tradicionais. Há tabus, que variam de um povo para outro, principalmente resguardando áreas que são consideradas de conhecimento reservado. Alguns proíbem a filmagem de rituais xamânicos, mas no Xingu não há restrições quanto a isso. Para outros, a imagem é tabu, mas isso muda com o tempo e no convívio com integrantes de uma sociedade da imagem.

 

Vocês apresentam um repertório cinematográfico não indígena nas oficinas? Como é a reação?

AC: Exibimos desde clássicos do cinema mudo, como Charles Chaplin e Buster Keaton, até referências importantes do cinema documentário moderno, como Jean Rouch e Robert Flaherty. Mas a referência essencial são os filmes realizados por outros povos indígenas. Como disse certa vez o cineasta Ashaninka Isaac Piyãko, “você vê o mundo do outro e olha o seu”. Uma troca fundamental de pontos de vista e perspectivas acontece nesse intercâmbio de imagens, histórias e cosmologias. Agora, os filmes de artes marciais são imbatíveis, a meninada se diverte.

VC: O fascínio dos índios é ver e conhecer outros índios. É uma necessidade de se posicionar no mundo, mas da perspectiva de povo nativo.

 

Quais questões estéticas surgem na produção dos cineastas indígenas?

AC: Os filmes produzidos nas oficinas exibem diferentes usos e funções da imagem, revelando o projeto político e estético de cada povo. Nenhuma oficina é igual a outra. É uma produção absolutamente extensa e diversa que revela a singularidade, as lutas, cosmovisões, identidades e formas de apropriação dos recursos visuais.

Nos Mbya-Guarani vemos uma forma especial de expressar a questão da espiritualidade e da duração do tempo, os territórios de trânsito e de fronteira. Já com os Maxakali, a câmera é uma máquina de ver o invisível, um instrumento xamânico. Eles têm vida ritual intensa, cotidiana, ininterrupta. A câmera Maxakali é uma câmera ritual. Outro exemplo são os Xavante ou os Huni Kuin. O problema da origem do mundo, os rituais de iniciação e a transmissão de saberes aparecem nos filmes de todos eles, sempre inseridos no tempo atual.

Essas questões latentes emergem nas oficinas, não são predeterminadas. Fica evidente que existem diversos usos e funções da imagem; que cada grupo, ao fazer suas escolhas temáticas e esté- ticas, manifesta uma determinada crença nas imagens, seja como elemento de transformação da experiência no mundo, como no cinema militante, seja como forma de contato com o invisível, com o mundo dos sonhos, dos espíritos, do tempo, da pessoa, da palavra, como acontece entre os Guarani, por exemplo.

VC: Os sonhos são muito importantes para os índios, tanto para a condução da vida pessoal quanto da coletiva. O senso estético muito apurado de suas culturas transparece nos enquadramentos, no olhar, mas a estética nunca é discutida de maneira abstrata. O realizador Wewito Piyãko, por exemplo, é um grande desenhista, o enquadramento dele é clássico. Um dos filmes mais incríveis é Bicicletas de Nhanderu, sobre a espiritualidade na cultura dos Mbya-Guarani da aldeia Koenju, em São Miguel das Missões, no Rio Grande do Sul. Tudo o que acontece na aldeia tem um significado espiritual: chuva, trovão, raio. Tupã fica bravo com isso e aquilo, recolhe o pedaço de pau que é uma mandinga; as crianças pegam frutas na mata, a velha benze, faz uma reza, purifica; o espiritual está sempre presente. Isso não se ensina, isso se manifesta.

Inauguração da opy (casa de reza), em Bicicletas de Nhanderu (2011). Povo Mbya-Guarani. Imagens e direção do Coletivo Mbya-Guarani de Cinema.

As oficinas tratam de questões formais, como enquadramento?

VC: Tratamos de tudo, mas como orientação: “Está torto, olha o horizonte, só tem um pedaço do personagem na cena, tem outro no segundo plano”, para que tenham noção do recorte. Ensinamos a olhar no quadro, a prestar atenção e a escutar, mas a beleza do enquadramento é da pessoa.

 

A presença das câmeras nas aldeias já provocou conflitos internos entre os indígenas?

VC: Sempre provoca. O que queremos no nosso sonho do bom selvagem é uma sociedade igualitária, mas estruturada. A câmera pertence à aldeia, e o que é de todo mundo não é de ninguém, certo? Então quem cuida? Tem muito conflito no começo sobre quem quer ser filmado e quem não quer. Tem discriminação — os índios falam uns para os outros: “Você está filmando? Isso é coisa de branco, você não é branco, não tem competência para isso”, ou: “Mas você vai ficar ganhando dinheiro às minhas custas?”. Essas questões surgem no começo, principalmente. Depois, quando aparece o filme, cai a ficha, e todo mundo quer participar.

 

Como são escolhidos os participantes das oficinas?

VC: Por indicação. Em geral os mais jovens são indicados, é uma política interna. Em pouco tempo fica claro quem só queria desfilar com a câmera para as meninas… esses cansam logo, porque filmar dá trabalho.

 

Há poucos registros de povos mais urbanizados, como os nordestinos. Isso não reforça uma imagem idealizada dos indígenas?

VC: Boa provocação. Se você assistir com atenção aos filmes, vai ver que mesmo os povos mais tradicionais trazem marcas contemporâneas: o fato de estarem no limiar entre duas culturas, num processo de intensa transformação. O biculturalismo é uma condição irreversível, não os faz menos índios. Essa é uma questão recorrente nas oficinas: a função do autorretrato não é corresponder à imagem que o outro espera ver, mas assumir as coisas como são.

Para as novas gerações, que frequentam a universidade, a questão dos índios  rbanos será um tema central, como acontece hoje com a produção cinematográfica dos índios canadenses, dos aborígines da Austrália e dos Sami dos países nórdicos. Em Pernambuco, o Vídeo nas Aldeias trabalhou com os Truká de Cabrobó e implantou um núcleo de vídeo entre os Fulni-ô de Águas Belas. Trabalhamos muito com os Mbya-Guarani do sul do Brasil e da Argentina, com os Guarani Kaiowá do sul de Mato Grosso do Sul e com os Maxakali do interior de Minas Gerais. Também trabalhamos com os Ayoreo do Chaco paraguaio e na Guiana Francesa. Vamos aonde há interesse por parte das aldeias, parceiros e financiamento.


O Índio do Buraco em Corumbiara (2009). Imagens e direção de Vincent Carelli.

Quais são as diferenças fundamentais entre a produção indígena e a não indígena?

VC: A diferença fundamental é que o realizador indígena conhece seu universo e a língua de seu povo, além de ter uma relação pessoal com os personagens filmados. Mesmo em povos que hoje são bilíngues, a maioria dos mais velhos só é fluente na própria língua. O realizador indígena discute sua cultura com alguém que entende o que ele está falando.

 

De que maneira celulares e redes sociais transformaram o conteúdo e a forma da produção indígena?

VC: Os índios estão com tudo nas redes sociais. Há uma produção de imagens de consumo e compartilhamento rápido, seja pelo WhatsApp ou mesmo por Bluetooth, nos casos em que não há internet ou sinal de telefonia.

AC: A troca de imagens entre as aldeias é intensa. São produções curtas, normalmente sequências de material bruto ou com uma edição rápida. Os jovens estão conectados, tanto nas redes sociais como no compartilhamento off-line. Tudo é acessado, compartilhado e apagado em velocidade impressionante: danças, cantos tradicionais, músicas da moda, fotografias, vídeos curtos. Essa troca cria redes, desperta interesses e reflexões, revela contradições e transformações importantes em curso. A produção resultante é também um instrumento de guerrilha e resistência. Um celular em mãos no momento de um ataque violento ou de invasão a uma comunidade é um meio importante de denúncia e defesa. Não são poucos os vídeos produzidos e, em seguida, postados nas redes que revelam situações de urgência e geram uma mobilização imediata e necessária na defesa de seus territórios, de seus direitos e de sua vida. O uso da câmera escondida é uma estratégia adotada em Corumbiara, por exemplo.

 

Esse recurso é ensinado como estratégia no Vídeo nas Aldeias?

VC: Usei esse recurso exclusivamente em Corumbiara e achei incômodo. Era um caso extremo, envolvendo a produção de provas de um crime de genocídio num ambiente em que éramos monitorados pelos algozes. Não faria de novo e não ensinamos isso para os alunos, muito pelo contrário. No começo evitamos até que eles usem o zoom para capturar imagens “roubadas”. Tentamos fazer com que eles se aproximem de seus personagens e construam uma relação com eles.

 

O que é o videotranse?

VC: É quando quem está sendo filmado tem consciência disso. É esse o dispositivo da própria experiência, que é filmar e mostrar. Mostrar que aquilo estava sendo feito ali na hora, que a produção da imagem era possível e estava à mão. Isso gera uma sinergia entre quem filma e quem é filmado. Então, como a passagem radical da fotografia ao cinema direto, paro no videotranse. Hoje, por conta da TV, todo mundo tem consciência da imagem, mas antes não era assim. Nessa experiência, há essa interação, a câmera provoca mesmo, é frontal, é instigante. E aí começa um jogo de representação.

A divulgação de imagens de povos isolados pode ser libertadora, quando faz indivíduos ou grupos existirem publicamente, ou pode ser uma forma de violência, como na discussão sobre a remota aldeia indígena mostrada no sobrevoo do fotógrafo Ricardo Stuckert, em 2016, em ação criticada pela Fundação Nacional do Índio (Funai).

Invasão da Câmara dos Deputados pelo Movimento Nacional Indígena em Martírio (2016). Imagens de Kamikiã Kisêdjê. Direção de Vincent Carelli, codireção de Ernesto Carvalho e Tita.

Como lidar com essa ambiguidade?

VC: Essa contradição surge principalmente no caso de imagens de grupos isolados: a divulgação é libertadora para quem? As imagens do Índio do Buraco em Corumbiara, o índio isolado que localizamos durante a filmagem, fizeram com que ele passasse a existir para a Justiça e tivesse uma área reservada. Mas ele nunca soube disso, e não quis contato. O exemplo das fotos feitas por Stuckert é semelhante. Mesmo quando necessária, a imagem não deixa de ser agressiva. Em Corumbiara, uma única filmagem cumpriu a função de documentar sua existência, mas, como percebemos que nossa presença o levava a mudar de local, passamos a monitorá-lo à distância. É preciso dosar essa agressão de maneira que ela possa cumprir seu papel na política de reconhecimento dos índios isolados e, em seguida, resguardá-los até que tenham condições de entender a situação.

 

Assim como o cineasta Andrea Tonacci (1944-2016), o indigenista Marcelo dos Santos, o sertanista Altair Algayer (o “Alemão”, de Corumbiara), você é um homem branco, de origem europeia, fortemente envolvido em questões indígenas brasileiras. Como essa condição determina sua produção? Você é questionado sobre isso?

VC: Construí meu lugar de fala ao longo de uma vida. Mesmo assim, quem não conhece minha trajetória  pode estranhar. A ideia de “índio” remete a muita ficção na cabeça dos não índios: o bom selvagem, a pureza de alma e de raça, o isolamento. Os índios não são nada disso, são povos que sempre incorporaram traços de outras culturas com as quais faziam a paz ou a guerra. No caso de Martírio, que trata do embate de duas civilizações, era preciso colocar em cena os dois lados.  Mas não se deve ser maniqueísta: existe índio pelego e também existe não índio solidário com a causa indígena. Martírio não é um filme sobre o problema dos Kaiowá, mas sim sobre o problema de toda a sociedade brasileira. Eu faço o papel da parcela dessa sociedade que se incomoda com o abuso contra os índios.

 

A persistência da condição marginal do indígena em Martírio causa uma enorme sensação de impotência. Vemos os índios escravizados, trabalhando em plantações de chá; décadas depois, eles estão vivendo à beira da estrada, cuidando para não serem mortos e tentando arrumar um canto para morar. Como se manter firme diante dessa repetição cruel?

VC: Martírio foi um surto, e o surto virou uma obsessão, uma revolta, é visceral. Foram três, quatro anos muito difíceis. Tivemos uma primeira etapa de filmagem ao lado de um casal que trabalhou 30  anos com os Guarani Kaiowá. Foi um clima pesado, de ameaças. Na segunda etapa, fomos somente eu e Ernesto [Carvalho]. Não era mais aquele clima pesado, mas tinha que ser tudo muito rápido. Não podíamos comer no mesmo lugar duas vezes, por exemplo.

Quando voltei, tinha dirigido sete mil quilômetros em três semanas. Tive um piripaque, quase morri. Eu introjetei a tensão, somatizei. Quando acordei na UTI, chorava desesperadamente e só pensava no filme, não podia morrer antes de terminá-lo.

Fazer esse tipo de cinema é uma revanche. Durante anos você trabalha, luta por demarcação, mas é derrota atrás de derrota, e você tem que aprender a dar a volta por cima. Em Corumbiara nada deu certo — ninguém foi preso —, mas, pelo menos, quem assiste ao filme pode compartilhar dessa vergonha e dessa consciência pesada.

Festa do gavião em Quando os Yãmîy vêm dançar conosco (2011). Povo Maxakali. Imagens de Isael Maxakali. Direção de Renata Otto Diniz e Isael Maxakali.

Há uma cena no filme O sal da terra (2014), de Wim Wenders e Juliano  Ribeiro  Salgado, em que  vemos uma fotografia de Sebastião Salgado nos Andes acompanhado de um camponês indígena. O fotógrafo relata que esse homem uma vez disse que ele, Sebastião, era um enviado dos céus, uma espécie de Deus. Esse autoelogio no  filme  chamou minha atenção. Você falou que os índios gostam de você, o acolhem, lhe dão carinho, o elevam. Como fugir dessa heroicização?

VC: Isso depende do tamanho do seu ego. Aprendi algumas coisas na vida. Todas as civilizações colapsam algum dia, e acho que a nossa caminha para o fim. É difícil dizer isso quando se tem netos.

Há esperança, mas a idiotice impera; estamos longe de qualquer consciência real da encrenca na qual estamos metidos.

Tive um relacionamento difícil com Sebastião Salgado. Encontrei-o nos Kuikuro, no parque do Xingu. Eu ministrava uma oficina, e ele foi fotografar. Ele pedia que os índios tirassem a sandália, o calção, para, segundo ele, reconstituir um tempo passado. Para mim é o contrário, prefiro-os como são. Fomos nos banhar na lagoa, um cenário lindo. “Será que os índios têm consciência de que moram no paraíso?”, ele perguntou. Eu respondi que, para mim, todo grupo indígena é como o filme Dogville (2003), de Lars von Trier, no qual uma comunidade aparentemente pacífica e misericordiosa se revela justamente o oposto. Ele ficou chocado, acho que acabei com o paraíso dele (risos).

 

Quais cineastas indígenas se destacam hoje?

VC: Há vários índios desenvolvendo carreira solo, ou que começaram por iniciativa própria: Alberto Alvares Guarani, os Maxakali Isael e Suely, que têm uma linguagem própria, Takumã Kuikuro que, depois de trabalhar conosco, cursou a Escola Darcy Ribeiro de cinema, no Rio de Janeiro, e provavelmente muitos outros que não conheço. As primeiras oficinas com novos povos também geram filmes bem interessantes, feitos por gente com muita vontade de produzir e muita liberdade criativa.

AC: Eu citaria ainda o Morzaniel Yanomami, que trabalha com o seu povo a questão ritual, e o emergente cinema Kaiowá, que já no primeiro filme do coletivo traz a força de sua resistência política e espiritual. Acho importante também falar do trabalho do Kamikiã Kisêdjê, formado nas oficinas do Vídeo nas Aldeias, que construiu um caminho muito particular como repórter indígena. Kami é uma espécie de repórter ninja, com um canal na web, acompanha o movimento nacional indígena, manifestações políticas e também as questões que envolvem o seu e outros povos indígenas do Brasil. Assim como Takumã Kuikuro e Divino Tserewahú, Kamikiã tornou-se uma referência para diversos grupos e novos cineastas em formação, um agente multiplicador, sendo solicitado muitas vezes para participar das oficinas de produção de seus parentes.

VC: Tem também muita gente produzindo sem ter noção do processo. Nossa preocupação é entender esse novo momento e fazer investimentos em formação. De certa maneira, acho que o nosso tempo de liderar o processo passou. As coisas caminharão sozinhas. Muitos se propõem a colaborar com os índios com a finalidade de fazer seu próprio filme — pesquisadores que querem um cineasta indígena para instrumentalizar sua pesquisa. É bem mesclado. Estamos esperando os resultados, para ver quais obras sairão desse circuito.

Festa da onça em Mulheres Xavante sem nome (2009). Imagens de Vincent Carelli. Direção de Tiago Campos Torres e Divino Tserewahú.

Essa produção transformou o seu cinema?

VC: Hoje fazemos muitos filmes em parceria com os realizadores que formamos, em parte porque não há mais financiamento para formar novos. Juntamos nossa experiência com a intimidade do realizador indígena com seu povo. Acabo de dirigir um episódio de uma série de TV em parceria com Wewito Piyãko, realizador Ashaninka, totalmente observacional, cinco dias do cotidiano de uma família em seu sítio, no espírito dos filmes produzidos nas oficinas. Aprendi a usar essa abordagem dando aulas.

 

Há alguma produção fotográfica no Vídeo nas Aldeias?

AC: Há certos povos envolvidos com a produção fotográfica, mas são iniciativas isoladas. Os povos nativos parecem preferir a imagem em movimento. No entanto, com o acesso aos celulares, é notável uma crescente produção de fotografia, sobretudo no uso mais vernacular e cotidiano, característica que não é exclusiva dos indígenas.

Este ano tivemos uma primeira experiência de formação e produção em fotografia junto aos Mbya-Guarani. Passamos um mês, entre o Brasil e a Argentina, só fotografando (em formatos e suportes diversos). A tônica foi o intercâmbio de polaroides entre aldeias e parentes que há muito não se viam, imagens únicas ou reveladas instantaneamente, que se tornaram objetos raros e preciosos, guardados num caderno, colados numa parede ou postos cuidadosamente num canto da casa: são fotos de família, dos espaços domésticos e de convivência, de trânsito e de cultivo.

Havia também a preocupação em produzir imagens que dessem conta dessa sobreposição, desse conflito entre as paisagens tradicionais e o avanço implacável da monocultura da soja, com as narrativas que derivam desses espaços e tempos. Estamos agora olhando para essas imagens e pensando caminhos e relações possíveis para a forma como fazemos nossos filmes. Mas ainda é uma produção bastante específica e experimental.

 

Qual é a situação do Vídeo nas Aldeias hoje?

VC: O Vídeo nas Aldeias está encolhendo para não desaparecer. A escola de cinema, que foi nossa contribuição mais original, está praticamente  parada por falta de financiamento. Mas continuamos produzindo filmes em parceria com os realizadores que formamos nas duas últimas décadas. No ano passado, lançamos O mestre e o divino (Tiago Campos Torres, 2013) em sala de cinema, e este ano será Martírio.

AC: Outro ponto importante é o nosso arquivo de imagens. O Vídeo nas Aldeias construiu, ao longo de 30 anos de trajetória, um acervo de 8 mil horas de registro de 50 povos de todas as regiões do país e 70 filmes realizados, constituindo-se como o maior e mais importante acervo de imagens dos grupos indígenas no Brasil. Existe, acolhido num pequeno quartinho climatizado em nossa sede, um material riquíssimo, de inestimável valor cultural e histórico para os povos ali retratados. É um novo corpo de pensamento audiovisual, que oferece a possibilidade de construção de uma contranarrativa da história dos povos nativos do Brasil. Esses registros remontam às origens do projeto, em 1986, desde as primeiras experiências do uso da câmera como ferramenta de luta política e a troca de imagens entre os povos retratados até a formação dos cineastas indígenas e as produções colaborativas atuais.

Dada a importância desse acervo e sua vulnerabilidade, é urgente a implementação de um projeto de digitalização e preservação desse arquivo. Nosso desejo é assegurar não só a recuperação e a preservação do acervo a curto ou médio prazo, mas, sobretudo, garantir o acesso e a devolução das respectivas imagens aos grupos retratados. Ou seja, além de dar continuidade à escola de cinema e às produções em parceria com os coletivos e cineastas indígenas, buscamos hoje alternativas de financiamento para a digitalização de todo o acervo e mesmo seu acolhimento por outras instituições implicadas em sua preservação.

 

Como vocês veem o futuro do Vídeo nas Aldeias?

AC: Em 2015, fomos convidados pela Ancine para apresentar um programa de política pública voltada ao cinema indígena. Nos debruçamos por um ano sobre esse projeto, que chamamos de Olhares Indígenas. O sonho acabou com o impeachment da presidente Dilma Rousseff, o desmonte do Ministério da Cultura e a suspensão de muitos dos projetos aprovados. Uma articulação importante foi feita ainda em 2015 na mostra Olhar: um ato de resistência, com curadoria de Andrea Tonacci, em parceria com a Filmes de Quintal. O encontro reuniu uma série de coletivos e cineastas do Brasil, da América Latina e dos Estados Unidos. Foi nesse contexto que apresentamos e discutimos pela primeira vez o projeto com os cineastas indígenas. A partir daí, nas margens, nos encontros possíveis, nas articulações boca a boca, vamos tocando a implementação desse trabalho fundamental de mobilização, levantamento e reunião da diversa e intensa produção cinematográfica realizada pelos indígenas. ///

 

Dança em Kiarãsâ Yõ Sâty, o amendoim da cutia (2005). Povo Panará. Imagens e direção de Paturi e Komoi Panará.

 

Kamikiã Kisêdjê, cineasta

Quando criança, Kamikiã Kisêdjê (o sobrenome deriva do povo a que pertence) costumava brincar com uma câmera feita de lata de leite e osso, clicando a aldeia Ngôsoko, em Mato Grosso, onde vive até hoje. Mais de 20 anos depois, Kamikiã é um dos cineastas indígenas brasileiros mais profícuos, uma espécie de cinejornalista que registra eventos como reuniões, festas e outras manifestações culturais e políticas indígenas. Um dos registros mais conhecidos foi feito em abril de 2013 durante a ocupação da Câmara dos Deputados, em Brasília, no movimento que ajudou a encerrar a votação da Proposta de Emenda à Constituição no 215, que alterava o processo de demarcação de terras indígenas e quilombolas.

A maior intimidade com a captação de imagens começou em 2003, quando a equipe do Vídeo nas Aldeias realizou uma oficina na região. Kamikiã já conhecia os filmes realizados por cineastas indígenas com apoio do Vídeo nas Aldeias, em especial o elogiado documentário Shomõtsi (2001), de Wewito Piyãko, também conhecido como Valdete Pinhanta, professor na aldeia Apiwtxa, em Marechal Thaumaturgo, no Acre. “Com ele aprendi a fazer vários planos da aldeia e a registrar os acontecimentos no entorno das cenas.”

Para o cineasta, a diferença entre o olhar indígena e o olhar não indígena repousa nessa pluralidade. “O olhar é amplo, a gente percebe o que está por trás da cena, vemos vários planos, os galos, os papagaios, animais que estão em extinção pelo meio da aldeia, crianças brincando. As equipes de televisão que vêm à aldeia só mostram um aspecto. Também admiro muitos cineastas não indígenas, como Todd Southgate, André Vilela D’Elia, Fábio Nascimento e Vincent Carelli.”

Kamikiã não tem dúvida de que sua câmera é um instrumento de resistência e farol: sua produção é voltada para a defesa do meio ambiente, da educação, da saúde e da cultura. “Viajo bastante por conta do meu trabalho, realizando filmes para vários povos do Brasil”, conta ele, que faz parte da Associação Terra Indígena Xingu e reúne os vídeos em seu canal do YouTube. Kamikiã realiza esse projeto necessário e corajoso, e ainda trabalha na roça com os pais, que também se dedicam à produção de artesanato. “Quando alguns se espantam porque filmo, respondo que não sou menos índio por isso; ao contrário, usamos a tecnologia como arma nas lutas políticas.”///

 

 

Ana Carvalho (1977), escritora e membro do conselho diretor do projeto Vídeo nas Aldeias, é coautora do livro Vídeo nas Aldeias 25 anos e da coleção infanto-juvenil Um dia na aldeia. Criou, com Vincent Carelli e Tatiane Soares de Almeida, a Tita, a videoinstalação O Brasil dos índios: um arquivo aberto para a 32a Bienal de São Paulo – Incerteza viva (2016).

Fabiana Moraes (1974) é jornalista, documentarista, pesquisadora e professora do Núcleo de Design e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFP), campus Agreste, em Caruaru.

Vincent Carelli (1953), cineasta e indigenista, é fundador do projeto Vídeos nas Aldeias. Dirigiu, entre outros, os filmes Corumbiara (2009) e Martírio (2016).

 

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