Livros

Obra-prima de Fukase sobre a solidão e o luto, Corvos é reeditado

Daniel Salum & Masahisa Fukase Publicado em: 24 de maio de 2017

A palavra angústia vem do verbo latino angere, que significa estreitar, oprimir, apertar, afogar. A conhecida expressão “aperto no peito” cai como uma luva para definir o livro Corvos (Karasu, em japonês), a soturna obra do fotógrafo Masahisa Fukase (1934-2012). É o tipo de projeto que mistura de forma quase indissociável a vida do artista e seu trabalho. Trata-se da forte reação a um mundo que despenca e vira de ponta-cabeça, tanto no sentido pessoal, para o fotógrafo, quanto para a nação japonesa como um todo. Esgotado e raro, uma reedição de Corvos chega este mês às livrarias pela editora britânica Mack. Novamente teremos a chance de mergulhar na obra desse mestre da narrativa sentimental.

Masahisa Fukase, juntamente a outros grandes nomes da fotografia japonesa, como Shomei Tomatsu (1930-2012), Daido Moriyama (1938), Eikoh Hosoe (1933) e Takuma Nakahira (1938-2015), é um dos representantes da chamada Geração Perdida japonesa. Nascidos antes do início da Segunda Guerra Mundial, cresceram em uma nação derrotada e humilhada, mas ao mesmo tempo vivenciaram a abertura para uma liberdade de expressão única na história do Japão. Pela primeira vez, não era mais exigido das crianças japonesas o comportamento de autocontrole que era a imagem do estado cívico ideal.

Nascido na província de Hokkaido (norte do Japão), Fukase mudou-se para Tóquio em meados da década de 1950 para estudar fotografia, desenvolvendo trabalhos comerciais e autorais, publicados na importante revista Camera Mainichi. Na capital, vivenciou de perto a explosão da cena avant-garde nas décadas de 1960 e 1970. Surgia ali um estilo inovador, arrojado e agressivo de fotografar, refletindo os sentimentos contraditórios de fascínio e raiva, medo e descoberta, que a ocupação norte-americana no pós-guerra trouxe para os japoneses.

Em um país onde a demonstração pública de sentimentos não é vista com bons olhos até hoje, nos seus trabalhos Fukase vai contra a corrente e extrapola sua própria intimidade e a de suas parceiras para compreender a si mesmo e a seus anseios. Com o nome de suas primeiras esposas, Yugi (1971) e Yoko (1978), seus dois primeiros livros abordam de forma direta sua vida amorosa e a autorrepresentação na fotografia. Embora Fukase não apareça em quase nenhuma das imagens, fica evidente que elas representam acima de tudo o estado de espírito do autor, misturando vida e obra numa trama densa e difícil de separar.

Segundo Yoko, o fotógrafo tinha um caráter intenso e obsessivo, com relacionamentos demasiado controladores e, muitas vezes, violentos. O sentido de congelar, de parar e apreender o tempo, ganha, na fotografia de Fukase, um significado ainda maior. Para ele, fotografar era também uma forma de controlar o mundo ao seu redor. De certo modo, esse recurso acabou se tornando uma ferramenta de dominação dentro do próprio casamento, com Yoko fotografada compulsivamente por treze anos, até o término da relação, em 1975.

Corvos, de Masahisa Fukase, 1986/2017. Cortesia do Arquivo Masahisa e Mack.

Com o divórcio, Fukase se sente desorientado e entra em depressão, bebendo pesadamente. Decide, então, retornar à Hokkaido.  Em uma das paradas do trem, sai do vagão para fotografar alguns corvos que estavam pousados ali perto. E assim, com ares de lenda, começa o seu mais significativo e pungente trabalho. Pelos próximos sete anos, Fukase “caça” corvos, configurando nessa busca a necessidade de preencher o vazio e a perda de Yoko, musa e figura central de sua vida. Além disso, procura entender a si mesmo, agora na aparência antropomórfica da ave.

O que antes era obsessão pela imagem de sua companheira, se transforma na procura incessante por essa figura sombria e solitária do corvo, dona de uma mitologia particular e complexa. Animal de hábitos necrófagos (que come cadáveres), o corvo é associado a vários significados na cultura oriental e ocidental, remetendo a má sorte, ao infortúnio, à infelicidade; e visto também como um intruso, um ladrão, um pressagiador de momentos turbulentos e difíceis. Em algumas mitologias antigas, no entanto, sua imagem é ligada ao poder de transformação, regeneração e cura.  O corvo é reconhecido também como um excelente navegador, com grande capacidade de orientação, mesmo em terras desconhecidas. Inevitável associar essa imagem do corvo ao fotógrafo, marcado pela angústia existencial, traumatizado, perdido em busca de um (novo) norte e da possibilidade de se reinventar frente ao mundo inóspito que construiu para si. Corvos, portanto, é um livro de luto, de pranto, um lamento pessoal em 80 imagens.

Normalmente, a construção narrativa de um trabalho fotográfico editado em fotolivro contém algumas imagens mais fracas, momentos altos e baixos em sua condução. Mas em Corvos, praticamente todas as fotos se sustentam sozinhas, constituindo metáforas potentes dos sentimentos da perda de um grande amor. A vulnerabilidade desse momento vivido traz também uma honestidade ímpar e uma dureza rara em um discurso fotográfico. Mesmo sem conhecer previamente a história do artista ou os motivos que o levaram às fotografias, o livro impressiona por seu clima denso. As fotos são apresentadas (ou quase impostas) ao observador de forma instável e impulsiva. O isolamento e a iminência de uma tragédia pairam por todo o trabalho.

Embora não tenha participado diretamente do movimento Provoke [organizado em torno da revista e do manifesto Provoke, editada por Takuma Nakahira, Yutaka Takanashi, Takahiko Okada e Koji Taki entre 1968 e 1969], que tornou célebre o lema “are-bure-boke” (granulado, tremido e fora de foco), é clara a influência de tal proposta estética no seu trabalho. Na essência, os fotógrafos desse movimento queriam desconstruir a ideia de que a imagem é indissociavelmente um documento, separando a fotografia de sua função social como registro objetivo da realidade. A partir dessa premissa, a geração Provoke aos poucos passou a eliminar a carga informativa de seus trabalhos, buscando imagens “puras”, mais intuitivas e cruas, livres de convenções e das regras do “fotograficamente correto”.

Imagens escuras, granuladas e de estilo quase impressionista, muito mais do que uma possível associação a um formalismo estético, enfatizam sentimentos. Podemos constatar os experimentos de Fukase no laboratório fotográfico, ao ampliar partes específicas dos negativos e muitas vezes superexpor as cópias, priorizando sempre a criação de uma atmosfera em detrimento a um apuro técnico. Corvos é, talvez, a grande obra-prima do lamento já realizada na fotografia.

Daisuke Yokota, da série Taratine, 2015.

Sua influência no trabalho de fotógrafos contemporâneos, tanto japoneses como ocidentais, é nítida e muito presente. Daisuke Yokota (1983) é um grande exemplo de como o experimentalismo de Fukase – na técnica, mas, sobretudo, na construção de um imaginário e clima próprios – se mostra atual e pertinente. Yokota é um fotógrafo jovem, que segue a tradição japonesa na arte da construção narrativa por meio de fotolivros. Seu trabalho remete ao de Fukase pelas imagens ruidosas e pela ressonância direta das experimentações viscerais da geração Provoke. Testa os limites da fotografia de modo subversivo, ao usar várias técnicas, entre elas a de refotografar múltiplas vezes a mesma imagem. Seus livros Demorar (Linger – 2014) e Vertigem (Vertigo – 2014) trazem algo desse imaginário nascido no pós-guerra, ainda influente e importante nos dias atuais.

Kazuma Obara, da série Exposição, 2016.

Kazuma Obara (1985), outro jovem fotógrafo japonês, também dialoga com Fukase em termos estéticos. Mas é, novamente, no tema e na atmosfera criada que os seus trabalhos realmente conversam. Os dois, de alguma forma, falam do invisível, do que paira sobre nós sem conseguirmos realmente materializar ou controlar. Para Fukase, o corvo formaliza a perda, a dissolução do seu relacionamento, a agonia e aflição que ocupa tudo a sua volta. Já em Obara, em seu projeto Exposição (Exposure – 2016), vemos tal invisibilidade tomar a forma da radiação que se alastrou por parte do leste europeu no acidente da usina de Chernobyl, na antiga União Soviética. Ao utilizar filmes vencidos, encontrados na cidade de Prypiat, próxima ao local da tragédia, Obara transforma a própria radiação em protagonista de suas imagens.

A influência de Fukase não se restringe somente ao Japão. Percebemos também fotógrafos ocidentais influenciados pelo artista japonês. É o caso do trabalho do dinamarquês Jacob Aue Sobol (1976) – que morou em Tóquio – com imagens íntimas e ao mesmo tempo duras e ruidosas. Ou da obra do francês Antoine D’Agata (1961), que mistura experiências autobiográficas com personagens encontrados nos submundos de grandes metrópoles.

Masahisa Fukase teve um fim trágico, compatível com sua vida de drama e inadequação: em 1992 cai das escadas de um bar e entra em coma, permanecendo assim por 20 anos, até falecer em 2012. Corvos foi seu último livro editado em vida, mas vários outros saíram postumamente. Quando termina sua caçada aos corvos e para de fotografar, Fukase afirma: “Tornei-me um corvo”.///

 

Daniel Salum (São Paulo, 1978) é fotógrafo, bacharel em fotografia pelo Senac – SP. Foi também professor de fotografia do Senac – SP, MIS e SESC. Atualmente ministra aulas no MAM – SP, com o curso A fotografia japonesa no pós-guerra, e na Escola Panamericana de Arte e Design. Integra o coletivo fotográfico Oficina da Luz e participou de diversas exposições coletivas e individuais no Brasil e no exterior.

 


Corvos (Ravens)

Masahisa Fukase
Editora Mack
136 pp., 26,3 × 26,3 cm

 

 

 

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