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Rainhas das matas

Rafaela Kennedy & Rainha das Matas Publicado em: 27 de junho de 2025

Rafaela Kennedy, Simbiose, da série Rainha das Matas 2025.

O Festival Rainha das Matas é um evento anual que, desde o início de 2021, reúne em Soure (arquipélago do Marajó – PA) arte, moda, ativismo ambiental e afirmação LGBTQIAPN+. A ideia surgiu quando a performer e produtora cultural Ágata Felina e amigas encenaram, dentro da mata da comunidade do Pedral, uma paródia do concurso Rainha das Rainhas, tradição do carnaval de Belém. A diferença é que as candidatas a Rainha das Matas desfilam criações feitas só com elementos naturais (folhas, sementes, galhos) ou materiais recicláveis. No entanto, o que o Rainha das Matas representa para nós está além do concurso anual. E embora todas vocês amem imagens, não podemos ser resumidas ao espetáculo. A gente ama as imagens, mas o babado nasce e se reproduz a partir do que somos, onde estamos e como fazemos há séculos, milênios.

Rafaela Kennedy, Comunidade Espiralar I, da série Rainha das Matas 2025.

Rafaela Kennedy, Comunidade Espiralar II, da série Rainha das Matas 2025.
Rafaela Kennedy, Comunidade Espiralar II, da série Rainha das Matas 2025.
Rafaela Kennedy, Maria Claudia e Adria Savick finalizando as indumentárias no dia da apresentação de seus corpos-portais, da série Rainha das Matas 2025.
Rafaela Kennedy, Ágata Felina e Dona Bibi, sua mãe e rainha soberana no quintal de casa, da série Rainha das Matas 2025.

E para entender a natureza do que fazemos é preciso reconhecer o Marajó como um território com presença milenar de povos indígenas e que até hoje, após invasões, guerras coloniais e a escravização dos povos pretos, continuamos fincadas nas vilas, cidades, comunidades extrativistas e quilombolas. Aqui tecendo as liambas indígenas e africanas que nos entrelaçam. Então, quando entendemos que o Rainha das Matas precisava contar a nossa história, foi inevitável refletir sobre a importância do território para nós. E se o território é a base de nossas vidas, se nós somos o próprio território, precisamos preservá-lo.

Rafaela Kennedy, Xithara Sanchez levitando com sua indumentária, da série Rainha das Matas 2025.

Os nossos seres encantados são os guardiões de tudo e dependem do território



Rafaela Kennedy, Penelópe Charmosa convocando caruanas, da série Rainha das Matas 2025.

Somos Caruanas, Nanãs, Cobras-grandes, Guarás, Ararunas, Camaleoas, Caranguejas. Somos todas a nossa própria natureza. Evocamos a caranguejeira, o pescador, a marisqueira, as erveiras, pajés, mães e pais de santo, as pessoas que sabem como viver em comunhão com esse chão. Citando nossos próprios pais, avós e todos os parentes e vizinhança, os mestres e mestras dessa terra e do fundo do rio, do visível e do invisível.

Rafaela Kennedy, Layane Estefany, a mais nova entre as princesas, da série Rainha das Matas 2025.

Se os territórios somem, somem os encantados. E se os encantados fogem, morre uma comunidade. E não há performance, indumentária, fotografia, arte e nem possibilidades para uma Rainha sem a sua comunidade


Rafaela Kennedy, Layane, Julia e Yankah, da série Rainha das Matas 2025.

Nossas parcerias artísticas têm nos pintado como vanguarda (e sim, somos!), mas o Rainha das Matas é mais do que blefe. Nós realizamos um movimento social e artístico que propõe diálogos interespécies urgentes diante do descaso climático por grande parte da sociedade. E nós aprendemos tudo com quem veio antes e está ao redor. Toda princesa e toda rainha é uma afetação comunitária, um projeto de muitas vidas, uma luta por dignidade e respeito a todas as pessoas que nos acompanham. Quando a Ágata conta que aprendeu a respeitar a natureza com a sua mãe, existem séculos de manutenção dessa intimidade e de sensibilidades semeadas nessa fala. Romper com o silenciamento e a invisibilidade forçada a nós, levando o nosso movimento da Comunidade do Pedral para o maior palco da cidade, sendo aclamadas por pessoas de todas as idades, famílias inteiras emocionadas nas margens do Paracuari, é um ato grandioso para a sensibilização e respeito às nossas lutas.

Rafaela Kennedy, Nathally Vancarty, da série Rainha das Matas 2025.
Rafaela Kennedy, Samyra Vianna caranguejando no mangal para a comunidade encantada, da série Rainha das Matas 2025.
Rafaela Kennedy, Laís Menezes, da série Rainha das Matas 2025.
Rafaela Kennedy, Voyvick e Viktoria Klausberg, da série Rainha das Matas 2025.

Quando nos procuram para fazer imagens, nós reivindicamos as vidas que somos, as coroações de orgulho e dignidade às nossas famílias e nossas redes de apoio.  Os acessos a espaços íntimos de desenvolvimento de afetos, trabalho artístico e educação socioambiental. O palco também nos revela grandes artistas, mas reivindicamos sobretudo nossas pautas, autorias, territórios de visualidades e de existências. São essas as fotografias precisas para vegetar sites, galerias, cinemas, escolas e espaços de convivência do mundo inteiro. Enquanto nos veneram por um espetáculo, nós miramos na potencialização de nossas habilidades nas demais esferas sociais, para gerar melhores condições de formação, trabalho e representatividade na sociedade e dentro de instituições que possam nos representar. Nós resolvemos nos apoiar como movimento de arte e educação, político e socioambiental. Nós somos tecnologias criativas, simbioses, polinizadoras de saúde e vida para as nossas comunidades.

Rafaela Kennedy, Adria Savick, da série Rainha das Matas 2025.
Rafaela Kennedy, Adria Savick, da série Rainha das Matas 2025.
Rafaela Kennedy, Maria Claudia, nascida e criada na lama do do Cajú-Una, da série Rainha das Matas 2025.
Rafaela Kennedy, Xithara Sanchez, da série Rainha das Matas 2025.
Rafaela Kennedy, Brunessa Tavares e Samyra Vianna flutuando às margens do Paracuari, da série Rainha das Matas 2025.

Os nossos esplendores são as materializações de todo sentimento de orgulho e afetações. Cada erva, punhado de barro, carcaça, plumagem e gesto tem a força do visível e do invisível. Carregamos todas as Tybyras e Xicas Manicongo em pelo, penacho, maço, búzio, bicho.

As bichalidades e as travestilidades regeneram tudo o que tocam e se relacionam


Rafaela Kennedy, Samyra Vianna, a guardiã do manguezal, da série Rainha das Matas 2025.

Dançar coberta de folhas é um manifesto: a pele aprende com a clorofila a pulsar, e o cuidado ambiental irrompe o silêncio do Rio Paracuari numa explosão que nada consegue conter. O corpo-portal. Ao vestir-se de floresta para depois ser devorada por ela, o festival celebra anualmente quem nós somos. Nos (de)compomos e queremos atravessar essa existência. Cada traje que se desfaz em húmus fertiliza novas coreografias, onde nenhum corpo ou território precisa mais ser domado. Cada tronco tingido de urucum devolve à terra o erotismo que lhe foi amputado. No Marajó, barro, seiva e suor unem-se num mesmo perfume mineral, desobedecendo a fronteira entre carícia e ecologia. Contra o roteiro heteroecológico que ainda quer separar as nossas potências do mundo vivo, o Rainha das Matas faz germinar uma volúpia vegetante, trepadeira que escala troncos, brotando em tudo. Aqui, a floresta, os rios e os sedimentos do fundo revelam-se tão plurais quanto as travessias de gênero que a percorrem, provando que “natureza” nunca foi sinônimo de ordem, mas de expansão, de conexão com as nossas entidades, de diversidade e regeneração. ///

Rainha das Matas é um movimento de base comunitária que acontece em Soure e tem como princípio gerar visibilidade à comunidade LGBTQIAPN+ e às pautas socioambientais importantes para a sociedade, sobretudo para aquelas que mais afetam o Marajó. 

Rafaela Kennedy é artista visual e vice-presidenta do TRANSmoras. Amazonense, sua obra articula travestilidade, espiritualidade e as culturas negras e indígenas, transitando entre a arte, a moda e a performance.

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Ensaio visual: Rafaela Kennedy
Autorias: Ágata Felina, Paola Velard, Brunessa Tavares, Adria Savick, Layane Estefany, Nathally Vancarty, Penelópe Charmosa, Laís Menezes, Johanna Aguiar, Samyra Vianna, Yanka, Viktoria Klausberg, Xithara Sanchez e Maria Claudia.
Pesquisa, entrevistas e edição de texto: Brunno Apolonio

Agradecimentos especiais: Ampac – Associação dos Moradores do Pacoval (Soure/Marajó) e IMS Educação.



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