Rainhas das matas
Publicado em: 27 de junho de 2025O Festival Rainha das Matas é um evento anual que, desde o início de 2021, reúne em Soure (arquipélago do Marajó – PA) arte, moda, ativismo ambiental e afirmação LGBTQIAPN+. A ideia surgiu quando a performer e produtora cultural Ágata Felina e amigas encenaram, dentro da mata da comunidade do Pedral, uma paródia do concurso Rainha das Rainhas, tradição do carnaval de Belém. A diferença é que as candidatas a Rainha das Matas desfilam criações feitas só com elementos naturais (folhas, sementes, galhos) ou materiais recicláveis. No entanto, o que o Rainha das Matas representa para nós está além do concurso anual. E embora todas vocês amem imagens, não podemos ser resumidas ao espetáculo. A gente ama as imagens, mas o babado nasce e se reproduz a partir do que somos, onde estamos e como fazemos há séculos, milênios.



E para entender a natureza do que fazemos é preciso reconhecer o Marajó como um território com presença milenar de povos indígenas e que até hoje, após invasões, guerras coloniais e a escravização dos povos pretos, continuamos fincadas nas vilas, cidades, comunidades extrativistas e quilombolas. Aqui tecendo as liambas indígenas e africanas que nos entrelaçam. Então, quando entendemos que o Rainha das Matas precisava contar a nossa história, foi inevitável refletir sobre a importância do território para nós. E se o território é a base de nossas vidas, se nós somos o próprio território, precisamos preservá-lo.

Somos Caruanas, Nanãs, Cobras-grandes, Guarás, Ararunas, Camaleoas, Caranguejas. Somos todas a nossa própria natureza. Evocamos a caranguejeira, o pescador, a marisqueira, as erveiras, pajés, mães e pais de santo, as pessoas que sabem como viver em comunhão com esse chão. Citando nossos próprios pais, avós e todos os parentes e vizinhança, os mestres e mestras dessa terra e do fundo do rio, do visível e do invisível.


Nossas parcerias artísticas têm nos pintado como vanguarda (e sim, somos!), mas o Rainha das Matas é mais do que blefe. Nós realizamos um movimento social e artístico que propõe diálogos interespécies urgentes diante do descaso climático por grande parte da sociedade. E nós aprendemos tudo com quem veio antes e está ao redor. Toda princesa e toda rainha é uma afetação comunitária, um projeto de muitas vidas, uma luta por dignidade e respeito a todas as pessoas que nos acompanham. Quando a Ágata conta que aprendeu a respeitar a natureza com a sua mãe, existem séculos de manutenção dessa intimidade e de sensibilidades semeadas nessa fala. Romper com o silenciamento e a invisibilidade forçada a nós, levando o nosso movimento da Comunidade do Pedral para o maior palco da cidade, sendo aclamadas por pessoas de todas as idades, famílias inteiras emocionadas nas margens do Paracuari, é um ato grandioso para a sensibilização e respeito às nossas lutas.

Quando nos procuram para fazer imagens, nós reivindicamos as vidas que somos, as coroações de orgulho e dignidade às nossas famílias e nossas redes de apoio. Os acessos a espaços íntimos de desenvolvimento de afetos, trabalho artístico e educação socioambiental. O palco também nos revela grandes artistas, mas reivindicamos sobretudo nossas pautas, autorias, territórios de visualidades e de existências. São essas as fotografias precisas para vegetar sites, galerias, cinemas, escolas e espaços de convivência do mundo inteiro. Enquanto nos veneram por um espetáculo, nós miramos na potencialização de nossas habilidades nas demais esferas sociais, para gerar melhores condições de formação, trabalho e representatividade na sociedade e dentro de instituições que possam nos representar. Nós resolvemos nos apoiar como movimento de arte e educação, político e socioambiental. Nós somos tecnologias criativas, simbioses, polinizadoras de saúde e vida para as nossas comunidades.


Os nossos esplendores são as materializações de todo sentimento de orgulho e afetações. Cada erva, punhado de barro, carcaça, plumagem e gesto tem a força do visível e do invisível. Carregamos todas as Tybyras e Xicas Manicongo em pelo, penacho, maço, búzio, bicho.



Dançar coberta de folhas é um manifesto: a pele aprende com a clorofila a pulsar, e o cuidado ambiental irrompe o silêncio do Rio Paracuari numa explosão que nada consegue conter. O corpo-portal. Ao vestir-se de floresta para depois ser devorada por ela, o festival celebra anualmente quem nós somos. Nos (de)compomos e queremos atravessar essa existência. Cada traje que se desfaz em húmus fertiliza novas coreografias, onde nenhum corpo ou território precisa mais ser domado. Cada tronco tingido de urucum devolve à terra o erotismo que lhe foi amputado. No Marajó, barro, seiva e suor unem-se num mesmo perfume mineral, desobedecendo a fronteira entre carícia e ecologia. Contra o roteiro heteroecológico que ainda quer separar as nossas potências do mundo vivo, o Rainha das Matas faz germinar uma volúpia vegetante, trepadeira que escala troncos, brotando em tudo. Aqui, a floresta, os rios e os sedimentos do fundo revelam-se tão plurais quanto as travessias de gênero que a percorrem, provando que “natureza” nunca foi sinônimo de ordem, mas de expansão, de conexão com as nossas entidades, de diversidade e regeneração. ///
Rainha das Matas é um movimento de base comunitária que acontece em Soure e tem como princípio gerar visibilidade à comunidade LGBTQIAPN+ e às pautas socioambientais importantes para a sociedade, sobretudo para aquelas que mais afetam o Marajó.
Rafaela Kennedy é artista visual e vice-presidenta do TRANSmoras. Amazonense, sua obra articula travestilidade, espiritualidade e as culturas negras e indígenas, transitando entre a arte, a moda e a performance.
+
Ensaio visual: Rafaela Kennedy
Autorias: Ágata Felina, Paola Velard, Brunessa Tavares, Adria Savick, Layane Estefany, Nathally Vancarty, Penelópe Charmosa, Laís Menezes, Johanna Aguiar, Samyra Vianna, Yanka, Viktoria Klausberg, Xithara Sanchez e Maria Claudia.
Pesquisa, entrevistas e edição de texto: Brunno Apolonio
Agradecimentos especiais: Ampac – Associação dos Moradores do Pacoval (Soure/Marajó) e IMS Educação.