Entrevistas

Falso brilhante

Publicado em: 10 de janeiro de 2020

Foto da série Para um jovem de brilhante futuro, de Carlos Zílio, 1973/74. Cortesia do artista.

No início dos anos 1960, tão logo ingressou no Instituto de Belas Artes do Rio de Janeiro, Carlos Zílio fundou sua produção artística na pintura. Com o golpe militar, ele e outros nomes da chamada Nova Figuração Brasileira, como Antonio Dias e Rubens Gerchman, voltaram suas criações para a tensão política do regime. Embora a pintura tenha sido seu principal meio desde então, foi um objeto que se tornou a mais célebre obra de Zílio: Lute (1967), uma máscara com um rosto anônimo dentro de uma marmita. Talvez sua mais evidente busca por integrar arte e política.

Para ele, no entanto, não bastou. Zílio, hoje com 75 anos, trocou o embate no campo da arte pela militância de fato. Entre 1968 e 1970, não pintou, nem criou objetos ou desenhos. Participava ativamente de comícios, panfletagens em fábricas e trabalhos de organizações contra a ditadura. Acabou preso em 1970 e, durante dois anos, encarcerado, recebia da família materiais para desenhar. Na saída da prisão, Zílio se viu acometido pelo que chama de “ansiedade exploratória” de linguagens. Foi então que criou a obra fotográfica Para um jovem de futuro brilhante, exposta pela primeira vez em 1974, numa galeria do Rio de Janeiro [publicada na ZUM #17 com uma apresentação escrita pela historiadora da arte Paula Braga].

O projeto nasceu de um objeto – uma mala recheada de pregos –, que o artista decidiu levar para um passeio pelo centro da capital fluminense, carregando-a ele próprio, vestido como os jovens executivos da época. Pediu a um amigo que o fotografasse e, assim, surgiu a série de fotografias, única em sua obra majoritariamente pictórica. Para um jovem de futuro brilhante é, como define Zílio, uma crítica irônica ao que chama de “caricatura de existência” de um “pré-yuppie”, figura criada pelo chamado milagre econômico e que, logo, provou-se um falso brilhante. ZUM conversou com o artista em seu ateliê, no Rio.

 

Foto da série Para um jovem de brilhante futuro, de Carlos Zílio, 1973/74. Cortesia do artista.

Sua obra é sobretudo composta de pinturas. A produção de fotografias em sua trajetória é restrita à série Para um jovem de futuro brilhante, além de outras duas fotografias apenas. Como se deu a entrada da fotografia em sua carreira?

Carlos Zílio: A escolha da fotografia, por volta dos anos 1970, está dentro de um desejo de exploração de linguagens. Na mesma época das fotografias, por exemplo, eu fiz um trabalho em super 8, que tem como título: Mamãe, eu fiz um Super 8 nas calças.  Era, bem como a fotografia, um campo de exploração de linguagens, em suma. Isso se dá muito entre 1972 e 1977. Nesse período, eu faço essas poucas fotos, esse super 8, mas predomina ainda a pintura. O uso da fotografia, portanto, tem a ver com uma espécie de ansiedade exploratória minha. Uma necessidade de pensar em linguagens e possibilidades. O que unia isso tudo era uma coisa conceitual, que tinha a ver com questões políticas. O elo era a política, ela estava tanto no desenho e na pintura, quanto na fotografia e no super 8.

Paisagem, de Carlos Zílio, 1973. Cortesia do artista.

Essa exploração de linguagens também está no início de sua trajetória, não? Já havia uma busca por novos meios, por exemplo, com a criação de objetos. A própria obra Para um jovem de futuro brilhante nasce de um objeto.

CZ: Sim, eu pensei primeiramente o objeto, a mala recheada de pregos. E, na verdade, eu já havia criado, naquela mesma época, outro objeto com pregos, chamado Fragmentos de Paisagem (de 1974, mesmo ano da primeira exposição da obra fotográfica Para um jovem de futuro brilhante). Trata-se de um vidrinho, como um vidro de laboratório transparente ou de remédio, algo assim, recheado com centenas de pregos. Dessa mesma série, Fragmentos de paisagem, há desenhos que representam campos de pregos, feitos à mão sobre o papel branco. Eu era maluco, desenhava cada preguinho à mão. Tem que ter tido uma experiência de cadeia para fazer isso. Pede muita paciência. Possivelmente a mala de pregos que usei nas fotografias de Para um jovem de futuro brilhante veio em seguida, logo depois desses desenhos. Os campos de pregos eram uma metáfora da paisagem brasileira na época.

A mala é também um elemento dessa paisagem, mas talvez de outra forma, porque estava muito ligada a um certo comportamento de época, no contexto do milagre econômico. Essa mala era um acessório necessário e inseparável do yuppie, ou melhor, do pré-yuppie, porque ainda não existia esse termo na época. Aquele universo todo contido dentro da mala, o mundo dos negócios, na verdade, o que ele produz é uma aridez. Aquele era um momento de intensa especulação na vida econômica brasileira. Fizeram-se e perderam-se fortunas. Havia esse universo dos negócios e uma satisfação muito grande de setores sociais que de uma certa forma se beneficiavam disso, a alta classe média, por exemplo. As pessoas então estavam muito felizes. Isso durou uns dois anos, até que a bolha estourou. A mala de pregos, enfim, é um pouco a contradição dessa paisagem.

A mala funcionava como um objeto, uma obra, por si só. Por que decidiu fazer as fotografias?

CZ: Veio o desejo de colocar a mala no mundo, de fazer essas fotos, naquele contexto de experimentação de linguagens.

Foto da série Para um jovem de brilhante futuro, de Carlos Zílio, 1973/74. Cortesia do artista.

Além da fotografia, no caso específico desta obra, o senhor experimenta também a performance, não?

CZ: Sim, é a única obra em que atuo, em que sou protagonista das fotos. Eu sou uma pessoa, como se diz… Veja, eu até hoje não tenho um terno, acredita? O que eu quero dizer é que essa performance fotográfica foi uma necessidade de criar um relato em torno da mala, de ambientá-la no real. Minha tentativa era de produzir, mimetizar o estereótipo de um executivo. Como eu tinha recebido um terno para o meu casamento, o único que eu tive na vida, fiz essa espécie de fantasia de executivo. Fomos ao centro do Rio, um centro que não era tão degradado e tinha vida financeira. Nós saímos, e fui improvisando ali no centro. Entramos no Ministério da Fazenda, imitando um roteiro de negócios no centro do Rio. Na imagem em que estou sentado à mesa, é o escritório do meu sogro. Numa das fotos, a mulher que aparece era a secretária dele. E eu faço esse gesto com a mão para cima, um gesto de prepotência. O título da obra é uma ironia, claro, porque era o que se desejava para um jovem naquela época: um brilhante futuro. A meu ver, era uma opção perversa, esta do brilhante futuro. O que pode ser uma pessoa dessas que eu represento como ator naquela foto? Os ideais dessa pessoa não me interessam, esse homem é uma caricatura de existência.

E sua escolha foi registrar essa caricatura usando a fotografia em preto e branco, numa chave jornalística, certo?

CZ: Sim. Eu queria ampliar as possibilidades de relação com o público. E acho que é um outro tipo de fotografia ali. Não é mais aquela fotografia chamada artística. Meu produto final não é a qualidade fotográfica, embora ela tenha sido muito bem realizada por um amigo meu, que era fotógrafo profissional [Paulo Rubens Fonseca]. Fizemos essa escolha pela fotografia de reportagem, jornalística, documental. Não era uma fotografia de arte, no sentido de que cada foto deveria ser uma obra. Era uma relação mais conceitual mesmo, de fazer uma espécie de reportagem artística. As imagens têm esse tom de flagrante, essa dinâmica de reportagem de rua. E o personagem é algo anônimo, ele nunca encara a câmera.

Cartaz de Para um jovem de brilhante futuro, de Carlos Zílio, 1973/74. Cortesia do artista.

Para um Jovem de Futuro Brilhante foi sempre exposta com a mala de pregos no mesmo espaço?

CZ: Na maioria das vezes. Eu me lembro de o trabalho todo ser exibido numa Bienal de São Paulo, com a mala ao lado, a convite do curador Agnaldo Farias [em 2010]. Na primeira exibição das fotos, na galeria Luiz Buarque de Hollanda e Paulo Bittencourt, em 1974, foi assim também.  Mais recentemente, na Caixa Cultural do Rio, as fotos foram mostradas sozinhas (sem a mala de pregos), com outras duas fotos que fiz na época, entre elas, Identidade Ignorada [de 1973, em que se vê apenas os pés de um corpo deitado numa maca no que seria um necrotério; vê-se apenas os pés e uma etiqueta com as palavras que dão título ao trabalho].

Mas eu me lembro muito bem de quando Para um jovem de futuro brilhante foi exposta na 29ª Bienal de São Paulo. Lá, as fotos foram ampliadas em tamanho de cartaz ou de pôster, e foram  expostas em volta da mala com pregos, localizada no centro da sala. Fez-se uma instalação com as fotos e a mala. Com as fotos ampliadas naquele cubo branco, criou-se uma espécie de ambiente. Geralmente as fotos são mostradas menores, pequenas, e cria-se um distanciamento de visão, a forma de se observar é diferente.

Esse trabalho foi feito depois da sua saída da prisão. Na época, o senhor era um dos artistas da chamada Nova Figuração Brasileira, da qual faziam parte também Rubens Gerchman e Antonio Dias, entre outros. Mas o senhor fez um movimento distinto daqueles artistas: trocou a arte pela militância, até ser preso. Como isso interferiu na sua criação à época?

CZ: Tem uma interrupção na produção de cerca de um ano e meio, quando eu fazia militância mesmo. Depois, na prisão, eu retomo o trabalho, mas aí com o desenho. Antes eu fazia muitos objetos, e alguns eram colocados na parede, mas eram tridimensionais. Na prisão, claro, por uma escassez de materiais, fiz só desenhos. Eles eram a continuidade planar dos objetos, tinham a mesma linguagem que eu usava antes, a mesma tensão arte e política também.

Foto da obra Lute, de Carlos Zílio, 1967. Cortesia do artista.

Essa tensão arte e política estava na sua obra antes de ser preso, e me parece que o corte da produção artística para a militância de fato não a interrompe, certo?

CZ: Sempre tem um fato que eu uso para ilustrar isso, que é a marmita Lute. Ela foi pensada como um panfleto. Eu imaginava aquele trabalho reproduzido aos milhares, ou melhor, centenas. Milhares seria um exagero, afinal. Mas a ideia era fazer centenas delas e distribuir em portas de fábricas. Este era o destino da marmita como objeto de arte. Quando eu percebi o alcance disso, pensei: “Pulei o muro, não estou mais fazendo arte, isso é política direta”. Estava já buscando uma coisa que tivesse grande funcionalidade, e, então, era melhor fazer política de uma vez. Eu não iria mais me utilizar da arte. Já estava dentro de uma dinâmica de atuação, em grupos de militância. A marmita nem chegou a ser produzida também em grande escala, chegou a nove exemplares. Era mais um protótipo, uma ideia. Veio daí a decisão de focar na política mesmo, em 1968. Então eu começo no movimento estudantil, e isso vai ganhando uma força maior, até que me torno militante.

Foto da obra Fragmentos de paisagem, de Carlos Zílio, 1973. Cortesia do artista.É nesse contexto que acontece sua prisão?

CZ: Sim, eu pertencia, como militante, a uma organização política. E nós fazíamos muitas ações como propaganda e, num contexto de ditadura, tudo era proibido, clandestino. A gente ia para portas de fábricas, para bairros mais retirados, e nós fazíamos uma espécie de ocupação, com distribuição de panfletos, comícios, esse tipo de coisa. Numa dessas, por uma circunstância qualquer, em 1970, chegou a polícia e fui levado. Eu fui preso e pedi para minha família que me levasse objetos de trabalho. Os materiais eram rudimentares, lápis de cera, papel e, depois, caneta hidrográfica, que passei a usar predominantemente nos trabalhos. Os desenhos saíam da prisão com as visitas. Minha mulher levava os trabalhos para fora da cadeia, e eles acabaram mostrados muito depois, já nos anos 1990, porque eu temia uma certa glamourização da minha atuação política. Mas aquilo era minha obra, não tinha razão para esconder, e, enfim, esses desenhos foram mostrados em 1996 nos museus de Arte Moderna do Rio, de São Paulo e da Bahia.

O senhor deixou a prisão em julho de 1972 e logo voltou ao campo artístico de fato?

CZ: Sim, quase que imediatamente depois da saída eu volto a produzir, mas meu foco então não era mais nem o objeto, nem o desenho. Era uma reflexão em termos de pintura sobre esses desenhos. A partir daí, meu compromisso é com o suporte da pintura. Um compromisso um pouco demarcado pela Nova Figuração, pela arte pop, pela política, com alguma coisa já de conceitual. A obra Para um jovem de futuro brilhante e o uso da fotografia em minha trajetória, isso está no campo da experimentação de linguagens. ///

 

Carlos Zílio (Rio de Janeiro, 1944) é artista visual.

 

 

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