ZUM Quarentena

Cidade de dor, por Teju Cole

Teju Cole Publicado em: 9 de abril de 2020

Foto de Teju Cole

E depois de uma dessas viagens que envolviam o desenho de uma linha imaginária que cruzasse a Terra, de um voo que a conduziu ao cintilante nada de um aeroporto nas primeiras horas da manhã, ali pelo meio-dia a viajante embarcou em outro voo e prosseguiu viagem. Passou seis horas nesse segundo avião, ou quem sabe fossem 16; difícil perceber a diferença entre as duas, naquela suspensão típica das viagens aéreas. O relógio de pulso da viajante afirmava uma coisa, sua agenda outra, e seu corpo castigado pelo jet lag uma terceira. Por fim, pela metade do dia, o avião deu início à aproximação para a aterrissagem e a viajante pôde ver do alto o que parecia, em praticamente todos os aspectos, uma metrópole conhecida: o mesmo labirinto de vias, os mesmos parques alongados, os mesmos arranha-céus repetidos. A vista aérea a fez lembrar, como sempre, do que sua mãe lhe dissera uma vez sobre o colapso de enormes estrelas, capazes de encolher até ficarem com uma dimensão não maior que a de uma cidade. A julgar apenas pela distância percorrida, era até possível que a viajante tivesse simplesmente dado a volta no globo e voltado ao ponto de onde havia partido. Mas alguma coisa naquela vista a convencia do contrário: a imensa cidade era circular, e o emaranhado de vias em seu centro acabava se definindo no traçado nítido de diversas vias maiores que avançavam para fora, como os aros de uma roda. Foi essa regularidade cartográfica que a fez perceber que havia chegado, pela primeira vez, à cidade de Reggiana.

No terminal, viu um cartaz representando o brasão da cidade, com a imagem de três golfinhos. Chegava no fim do inverno e o tempo estava instável. Num momento havia rajadas de neve e no momento seguinte o dia era de sol ameno; mesmo assim, como logo perceberia, fosse qual fosse o tempo neste ou naquele dia, a temperatura era sempre mais elevada que o esperado. Ela, que sabia o quanto as cidades podem se parecer entre si, agora só estava interessada nas diferenças. Quando ficou sabendo que todos os moradores de Reggiana eram refugiados vindos recentemente de algum outro lugar, concluiu que havia chegado ao lugar certo. A cidade fora construída depressa, com todo mundo chegando quase ao mesmo tempo; segundo o mito fundador, entre a criação da cidade e seu pico populacional dificilmente transcorrera uma estação completa. Esse “novo” coletivo significava que aprender a cultura de Reggiana era, em si, um elemento central da cultura de Reggiana. Tal como Qom ou Touba, Reggiana era uma cidade sagrada. Assim como em Jerusalém, Lassa, Meca e Ifé, a experiência do sobrenatural era onipresente em todas as suas ruas e em todas as suas paredes. Em Reggiana, encostar a mão numa grade ou abrir um portão era ser lembrado da mortalidade humana. Não havia interação que não estivesse imbuída de um peso tremendo; cada uma delas era uma espécie de cubo de açúcar tão pesado quanto o Everest. Tudo isso era verdade, mas a atmosfera da cidade não era ascética nem dramática. Em vez disso, os cidadãos eram dotados de um sentimento sóbrio, de viver num mundo enfeitiçado no qual o conflito era com aquilo que não eram capazes de ver. Sabiam que o que era invisível nem por isso era imaginário. Estavam submetidos ao flagelo de uma Visitação, e era por isso que todos os reggianitas tinham um toque de recolher na cabeça e nos corações um nó.

Na época da visita da viajante, a mão da Morte pesava sobre aquela cidade cautelosa. Como em todos os lugares da Terra, pessoas nasciam e pessoas morriam, mas além disso todos os dias Reggiana precisava passar por inúmeras outras perdas. Aquele era um flagelo tão disseminado que, para muitos dos cidadãos, a primeira atividade do dia era conferir os obituários. Como disse o condutor de uma carriola à viajante, ao ir com ela retirar suas rações: “Todos nós conferimos os obituários não só para ver quem morreu durante a noite mas também para ter certeza de que não estamos entre eles”. Em sua carriola estava pintado o brasão da cidade, que exibia uma maçaneta. “Reggiana é uma das poucas democracias autênticas do mundo”, acrescentou o condutor. “Qualquer um, a qualquer momento, pode sucumbir à Visitação: os ricos, os pobres, os cultos e os humildes, os famosos e os anônimos. A população atual da cidade é imprecisa, pois nós, teimosamente, contamos os mortos em nossos recenseamentos.” O condutor disse à viajante que um dos primeiros a morrer durante a Visitação fora um de seus fregueses, um dos arquitetos mais importantes da cidade. O homem, disse ele, continuava sendo mencionado com o verbo no presente.

Foto de Teju Cole

Os reggianitas trocavam histórias como os comerciantes de outras cidades negociavam condimentos, artigos de couro, perfumes, tapetes e esculturas. Em Reggiana todas as histórias eram diferentes umas das outras, e só na memória, só quando a viajante tentava contar para si mesma a história que havia ouvido, ficava evidente que todas as histórias eram uma só, variações em torno de uma única narrativa que, de uma ou de outra maneira, se conectavam à Visitação. Mas ela logo esquecia essa descoberta, e no dia seguinte, ao tomar conhecimento de novas histórias, cada uma delas tinha a seus ouvidos o frescor que possuía ao ser contada por quem a contava. Uma tarde, ao anotar o relato de alguém que se recuperara da Visitação, ela ouviu soar o sino da igreja chamando ninguém, e o azan tocar no bairro ao lado sem que pés apressados atendessem a seu apelo. Ninguém se reunia nas igrejas ou sinagogas, ninguém se aglomerava nos templos ou nas mesquitas, as escolas estavam vazias, as lojas permaneciam fechadas, as pessoas ficavam em casa. Mas os habitantes de Reggiana estavam profundamente conectados uns com os outros, e toda a sua vida cívica e social acontecia no interior das paredes domésticas. Em todas as casas da cidade havia um meio de comunicação. Famílias da cidade inteira se comunicavam entre si a partir desses modestos recintos; grandes e pequenos negócios eram realizados a partir de mesas de cozinha, de quartos de dormir; amantes, ex-amantes e futuros amantes praticavam todos os estratagemas que permitissem que seu desejo fosse cultivado na ausência do corpo do ser amado.

Há formas específicas de conhecimento que pertencem àqueles que foram obrigados a reconstruir suas realidades. Os reggianitas eram grandes apreciadores da boa mesa, cozinhando com flagrante menosprezo por fronteiras, com óleo de palma, molho de peixe, garri, beterrabas, iogurte, harissa, anchovas, mandioca; mas o que realmente caracterizava a cozinha de Reggiana era o gosto pela concentração em todas as suas formas: no momento de optar, optavam por demi-glaces em vez de caldos básicos, destilados em vez de cerveja, vinho em vez de água, massa de tomate em vez  de tomate, concentrado de pimenta em lugar de pimenta fresca. Juntamente com essa paixão por tudo o que fosse reduzido, conservado, desidratado, temperado e em conserva, havia um pendor para a frugalidade e uma rejeição ao desperdício desnecessário, tanto culinário como outro qualquer. Nenhuma cidade com dimensão comparável produzia menos lixo. Eram costumes adotados naturalmente por todos os que chegavam à cidade. A viajante só estava por lá havia uns poucos dias quando percebeu que vinha fazendo suas anotações dia após dia com o mesmo lápis, apontando-o toda vez que o grafite perdia a ponta. Não estava inclinada a sair para comprar outro lápis nem teria podido fazê-lo, já que as papelarias estavam fechadas. O lápis foi ficando cada vez mais curto, até chegar ao tamanho de um lápis de golfe. A viajante, escrevendo, achava isso assombroso, não só porque desde a infância não insistia em usar sempre o mesmo lápis, como também por estar encantada em partilhar a parcimônia dos cidadãos da cidade desse modo, mesmo sendo apenas uma moradora temporária.

Foto de Teju Cole

Na casa em frente vivia uma família de quatro pessoas: a mãe, o pai e seus dois filhos. O filho mais velho, único membro da família que saía da casa, trabalhava para a cidade como coletor, recolhendo o lixo das pessoas e limpando prédios infectados. A viajante gostava da voz dele. A rua era tão silenciosa que dava para falar em voz normal e ser perfeitamente compreendido pela pessoa do outro lado da rua, e essa conversa a distância convinha aos hábitos de Reggiana. Uma noite, no calor atípico de meados de março, conversando com o rapaz, ela ficou sabendo que ele era um estudante do céu. “Meu emprego é de coletor, mas sou astrólogo por inclinação”, disse ele.

Não havia lei que determinasse que os cidadãos de Reggiana devessem possuir globos cartográficos ou pendurar mapas-múndi em suas casas. Mesmo assim, todos eles faziam isso e se orgulhavam em dizer: “Reggiana é o mundo”, ou “o mundo é Reggiana”. Para eles, o “antigo país” se referia a toda e qualquer cidade da Terra. Para os reggianitas, por mais leais que fossem ao novo lar, os mapas evocavam seus anseios e desejos mais profundos, as cidades que traziam dentro de si. A viajante nunca encontrara um lugar tão imerso nas operações da memória. Não era simplesmente saudade, mas uma avidez por formas de pensamento que estivessem prestes a empalidecer ou se esforçando por nascer. Reggiana era uma cidade da memória do tato, uma cidade cujos cidadãos às vezes declaravam não sentir interesse pelo passado. Diziam que não se importavam com a relativa ausência de contato físico entre eles e os outros, mas em seguida, simplesmente por avistar uma cortina apoiada no peitoril da janela, rompiam em lágrimas.

“Com as janelas abertas, a viajante encontrava inúmeros fragmentos de pessoas e individualidades como esses. Dizem que nenhum homem é uma ilha, mas em Reggiana todos os homens e todas as mulheres eram ilhas.”

Na cidade, os profissionais de enfermagem, os médicos, os condutores de carriola, os merceeiros e os coletores eram supostos trabalhar fora de casa. Eram reverenciados como heróis do povo e, em alguns casos, venerados como santos. Eram os que tinham vidas públicas. Mas a maioria das pessoas em Reggiana era ouvida, não vista. A convenção, em Reggiana, era cada um ficar em sua casa, uma convenção para eles tão natural quanto usar roupa. Havia exceções, mas somente por boas razões. No tocante a política do corpo, tudo aquilo que fosse excessivamente direto irritava os reggianitas. Para oferecer alguma coisa a alguém, a coisa dada era largada no chão pelo presenteador e, depois de um intervalo adequado, recolhida pelo presenteado. A boa vizinhança nunca se dava de muito perto. Muitas vezes o que era entreouvido era mais vital do que o que era declarado.

Uma tarde em que a viajante estava sentada junto a sua escrivaninha, uma voz de mulher cortou o ar. A mulher gritava de prazer, no gozo inconfundível de alguém que está fazendo sexo. Sem distinguir as palavras exatas, a viajante reconheceu o que o grito da mulher significava, traduzido para não importa que língua: “Por favor, não pare!”. Mais ou menos ao mesmo tempo, vindo de uma direção diferente, ouviu-se o som de alguém tocando violoncelo. Os fragmentos de melodia eram escandidos por longos intervalos, como se a pessoa que estava tocando o violoncelo estivesse conversando com um interlocutor inaudível. Com as janelas abertas, a viajante percebia inúmeros fragmentos de pessoas e individualidades como esses. Dizem que nenhum homem é uma ilha, mas em Reggiana todos os homens e todas as mulheres eram ilhas. Todas as crianças e todos aqueles que não eram nem homens nem mulheres eram ilhas. Essas ilhas eram capazes de ouvir umas às outras, mas continuavam separadas, sem tocar-se, um arquipélago humano.

Os museus de arte de Reggiana estavam lotados de pinturas preciosas, mas permaneciam fechados; suas bibliotecas, lotadas de livros, estavam às escuras; as alfaiatarias eram uma desolação, e nem um único bar oferecia uma bebida aos sedentos. Tudo isso era triste, porém mais triste ainda era a sala de concertos acusticamente perfeita do centro da cidade, com seus painéis, suas fileiras semicirculares de assentos forrados de pelúcia vermelha, seu magnífico mural das muitas nações de onde haviam vindo os refugiados e, por cima de tudo, lá no alto, o domo, com o interior folheado a ouro. A sala de concertos se mantinha dia e noite em silêncio. Os engenhosos músicos de Reggiana encontraram uma maneira de suportar essa situação insuportável: tocavam ininterruptamente, sem entrar na sala de concertos. O solitário tocador de violoncelo não passava de um filamento no interior de uma vasta trama, era um entre 12 violoncelistas, sendo que os violoncelistas eram um subconjunto do naipe de cordas, e o naipe de cordas ecoava no interior de uma grande orquestra, ao lado dos metais, das madeiras, da percussão e de uma única harpa. Esses músicos tocavam juntos todos os dias, na realidade e em suas imaginações, e todos os dias os cidadãos, em cada casa da cidade, se esforçavam para ouvi-los. Os músicos tocavam uns para os outros e para seus concidadãos e até para a sala de concertos, na esperança de algum dia voltar a enchê-la, inteira, até seu domo dourado, de som.

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Uma noite a viajante chamou o jovem astrólogo do outro lado da rua: “Olá!”. Em resposta, ouviu o cumprimento: “Olá!”. Cada um imaginou o outro no interior daquela escuridão. “Seu trabalho é perigoso?”, perguntou a viajante, que ouvira dizer que os coletores, assim como os vigias, os médicos, os coveiros e os condutores de carriola eram especialmente vulneráveis à Visitação. “Todo trabalho é perigoso”, respondeu o jovem astrólogo, sem altear muito a voz. “Você tem muita coragem”, disse a viajante. Nenhuma lua brilhava acima deles. “Sou obrigado a concordar”, respondeu o astrólogo. “Nove meses antes de virmos para cá”, continuou, “menos de um ano antes de nossa chegada aqui, antes de nós quatro – meu pai, minha mãe, meu irmão e eu – deixarmos nosso antigo país, Urano entrou em Touro. É onde está agora – e onde ficará por um total de sete anos. Urano é o planeta da rebelião, e o que você quer saber é o que acontece quando um planeta como Urano entra no signo terrestre de Touro.” A viajante, para sua própria surpresa, disse: “Exato. É isso mesmo que eu quero saber.” A resposta saiu do escuro, vinda do outro lado da rua, do rosto que ela não podia ver. “Touro se comunica com a natureza em sua forma intocada, antes da intervenção humana”, disse a voz. “Com a natureza selvagem. Pense no Minotauro em seu labirinto. Os céus se dirigem a nossa cidade: Reggiana é o mundo. A Visitação é o que vincula o microcosmo ao macrocosmo, o que não podemos ver ao que não podemos sentir. Nós interrompemos a natureza dessa forma, e agora a natureza está nos interrompendo.” “Ou não”, disse a viajante. “Ou não”, disse o astrólogo, rindo. “Se cuide!”, disse a viajante. “Você também”, disse o astrólogo.

Havia uma questão simples para a qual a viajante deveria ter encontrado uma pronta resposta, mas nenhuma resposta se apresentava. O mistério era o seguinte: Reggiana estava localizada junto ao mar ou se aninhava às margens de um lago ou era nutrida por um rio largo? A viajante, lendo tudo o que encontrava, não conseguia achar uma resposta. Depois de consultar os regulamentos da cidade, concluiu que nada a impedia de dar caminhadas curtas duas ou três vezes por semana. Uma vez fora de casa, andando pela cidade, tentou desvendar o mistério, mas se confundiu uma e outra vez, como se o terreno estivesse tratando de enganá-la, como se ele fosse dotado de inteligência própria. Incapaz de encontrar uma praia ou uma margem de rio, em vez disso ela foi parar num bairro distante, coberto de magnólias. Lá encontrou uma velha professora de física, especialista em estrelas de nêutrons. “Aqui é Reggiana?”, indagou a viajante. “Eu é que deveria lhe fazer essa pergunta”, respondeu a astrônoma. A astrônoma não contribuiu em nada para a solução do enigma da localização da cidade, nem tampouco os livros que a viajante consultou mais tarde, que lhe forneciam respostas contraditórias. Em busca de alguma pista, procurou o brasão da cidade numa enciclopédia. O brasão ostentava um periscópio. Naquela noite, como em todas as outras noites, os cidadãos de Reggiana estavam cozinhando. A viajante abriu a janela, e o ar estava repleto de aromas. Nesse exato momento ela ouviu o violoncelista tocando e, bem baixinho, mais longe, alguém tossindo.

Em suas caminhadas, a viajante começou a deslindar o mapa das ruas. Ao voltar, consultava o mapa-múndi da casa, que era estranhamente comunicativo, tornando-se tanto mais detalhado quanto mais ela olhasse para ele de perto. O mapa-múndi não revelou nenhuma informação confiável sobre massas hídricas nas proximidades, mas mostrou-lhe que a cidade era, entre outras coisas, uma cidade de erudição. Os reggianitas valorizavam geólogos, antropólogos, historiadores, etólogos, cosmólogos, botânicos e alquimistas, e haviam batizado os locais importantes de sua cidade – as praças, largos e cruzamentos – com os nomes desses estimados melancólicos profissionais. As ruas da cidade, sempre que ela as percorria durante suas caminhadas, só exibiam placas com coordenadas geográficas. No mapa, porém, aquelas mesmas ruas haviam recebido nomes inspirados por outras cidades de erudição: rua Cairo, rua Berkeley, rua Pádua, avenida Pushpagiri, rua Oxford, beco Sevilha, rua Esmeralda, passagem Timbuktu, bulevar Octavia, avenida Gaegyeong, rua Bolonha. A viajante anotou esses nomes e, ao lado, as coordenadas corretas de latitude e longitude, como se estivesse criando uma consonância. O levantamento foi ficando mais detalhado a cada dia, e as caminhadas da viajante cada vez mais prolongadas, com o uso eventual do bonde. Ao tocar as barras brilhantes, ao sentar-se naqueles assentos de madeira, ela se perguntava se estaria pondo a si mesma em risco. Na primeira página de seu levantamento desenhou o brasão da cidade, que copiou de uma estampa impressa na sacola de papel utilizada para levar suas razões para casa. O emblema central do brasão era uma única mão enluvada. “Isto é como aquelas viagens descritas nos velhos livros”, refletiu a viajante consigo mesma. “Viagens difíceis de realizar com mapas convencionais, mas que chegam a lugares reais, lugares não menos reais que outros lugares. A essência dessas viagens não está na distância percorrida, e sim na percepção de que os perigos da viagem não desaparecem com a chegada.”

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No bairro das magnólias, encontrou de novo a astrônoma. A conversa das duas ocorria no começo da tarde, pois a astrônoma gostava de passar as noites sozinha e em silêncio em seu observatório no telhado. As duas conversavam de longe. “Entre nós há sonâmbulos que acreditam ser imunes à Visitação”, disse a astrônoma. “Quem são os sonâmbulos?” “Não os que estão dormindo, mas aqueles que em breve estarão acordados.” “Isso a enfurece?”, quis saber a viajante. “Ao contrário”, disse a astrônoma. “Lembre-se: todos nós já fomos sonâmbulos.” Era um dia quente, mais quente até que o costumeiro. As folhas dos olmos estavam começando a brotar, e as magnólias a florescer. “Você está querendo dizer que é só questão de tempo”, disse a viajante. “Só o tempo dirá. Mas o tempo dirá”, disse a astrônoma. Ouviu-se um coro de trinados de passarinhos e as flores da magnólia ficaram rosadas. O afro da astrônoma era branco. “Posso lhe perguntar uma coisa que sempre me intrigou?” quis saber a viajante. “Você quer saber se eu tenho medo da Morte”, disse a astrônoma. “É”, disse a viajante. “Não, não tenho medo da Morte”, disse a astrônoma. “Posso fazer outra pergunta?”, disse a viajante, e fez uma pausa para ver se a astrônoma adivinhava também aquela, mas a astrônoma ficou simplesmente esperando que ela continuasse. “Ouvi falar em universos paralelos, mundos paralelos. Na sua opinião, como cientista, você acredita que exista outra Reggiana em algum lugar do espaço? Uma Reggiana que é como esta aqui em tudo, inclusive com essas magnólias, inclusive com esse bordo vermelho flamejante e com esta tarde e com esse canto de passarinho e com nós duas e esta conversa que estamos tendo, uma Reggiana com uma única diferença em relação a esta: que nessa outra Reggiana, neste exato momento, a Visitação chegou ao fim?” A astrônoma falou: “A ideia de um mundo alternativo está baseada na convenção matemática, não na física observacional. Considerando o número limitado de modos como a matéria poderia se organizar num infinito multiverso, as coincidências são um fato, assim como as quase coincidências são igualmente um fato.” “Por exemplo, uma Reggiana sem a dor da Visitação?” “É, teria de ser. Para você, essa ideia é um consolo?”, perguntou a astrônoma. Uma aragem passou entre as árvores. O canto do passarinho caiu uma oitava. “Mãe”, disse a viajante. Era noite, e a astrônoma não estava mais ali. “Você viajou tanto; ficou tanto tempo fora”, disse a astrônoma.

Não foi muito depois disso que a viajante resolveu que estava na hora de voltar para casa. Na manhã do dia que escolhera para viajar, recebeu notícias perturbadoras. Era cedo, e antes de fazer qualquer outra coisa naquela manhã, como se fosse uma cidadã de Reggiana, ela leu os obituários. Imobilizou-se, num sobressalto de descrença: o jovem astrólogo havia morrido. Reggiana no mar, Reggiana no lago, Reggiana no rio. Naquela tarde, cheia de dor e incerteza, a viajante foi para o aeroporto. Não havia aeroporto: o aeroporto fora cuidadosamente desmontado, cada elemento estava na pilha que correspondia a seu tipo – das enormes vigas aos painéis de vidro e aos menores parafusos. Quando voltou para a cidade, levada por um condutor mascarado, foi com o alívio de quem volta para casa.

Em Reggiana os minutos se espichavam como vastas catedrais, enquanto algumas semanas transcorriam no tempo que leva uma libélula para abrir as asas. “Ontem”, dizia alguém, mas para outra pessoa talvez parecesse que essa palavra significava “no mês passado”. Havia uma fissura, pequena, mas perceptível, entre falar e ser entendido. A viajante finalmente concluiu: ali o tempo não fazia sentido. Ela não conseguia entender como era possível que numa cidade nova como aquela houvesse sepulturas tão antigas. Ou quem sabe fosse essa a sensação de o tempo finalmente ter adquirido um sentido: lento quando não era necessário, veloz sempre que relacionado às preocupações humanas. Os estádios, empórios e piscinas vazios nada sabiam sobre a passagem do tempo, mas os hospitais estavam cheios, e neles o tempo se movia mais depressa do que os humanos eram capazes de tolerar.

Os cidadãos saudáveis, para não serem consumidos pela tristeza e pela preocupação, ficavam em casa e cultivavam seu amor por quebra-cabeças e jogos de estratégia. Passavam horas jogando ayo, xadrez, go e majongue. Nas noites de clima agradável, quando não precisavam cuidar dos doentes ou não os tomava alguma perda recente, assistiam ao teatro de sombras transmitido para cada casa por um complexo sistema de espelhos. As histórias contadas no teatro de sombras, sobre os hábitos e as crenças do antigo país, eram sempre diferentes, mas, ao contrário das novas histórias da própria Reggiana, mantinham essa diferença e não se esfarelavam na mesmice pela manhã.

Foto de Teju Cole

A viajante escrevia sem parar, como se quisesse correr atrás do tempo e, com suas frases, fazer dele uma trouxa bem amarrada. Certa manhã foi anunciado que a Visitação levara o principal médico da cidade. No dia seguinte, soube-se que sete condutores haviam morrido. Morreram 20, morreram 100, morreram mil, 10 mil, naquela cidade de dor sobre a qual, como um sudário negro, fora jogada a depressão. Os que passavam fome e penúria eram incontáveis. Sentada à escrivaninha, a viajante abafou uma tosse seca. Apontou o lápis e escreveu: “Virá o tempo em que sairemos de Reggiana e pela segunda vez, nos tornaremos refugiados. Nem todos nós, apenas os que sobreviverem a isto. O aeroporto nunca será reconstruído, mas os bloqueios nas estradas serão removidos. A população irá embora e a cidade abandonada cairá em ruínas tão depressa quanto se ergueu. Um dia Reggiana não será mais que uma lembrança. Nossa nova cidade será edificada de acordo com o que aprendemos aqui. Onde houve a Visitação haverá algo que não é a Visitação.” Interrompeu-se. Ouvia o som de uma clarineta? Não podia confiar nos próprios ouvidos. “Mas essa futura Reggiana já existe, o futuro no qual isto tudo já é passado. As duas Reggianas vivem juntas, uma dentro da outra, duas almas num só corpo.” Inspirou profundamente a brisa que entrava pela janela aberta. A brisa não tinha cheiro de nada. De tão pequeno, seu lápis estava quase sumindo, e suas mãos estavam manchadas de grafite. Sentiu um arrepio.

Naquela noite, acordou soluçando. Seu corpo estava cheio de dores e sua garganta ardia. Via com a clareza que só a escuridão é capaz de proporcionar. O brasão da cidade, não importa o aspecto que adquirisse quando ela olhava diretamente para ele, nunca se alterava quando visto a partir de sua visão periférica ou quando evocado na memória. Era sempre a mesma coisa: uma coroa emitindo raios, uma cidade circular vista do alto. ///

Tradução do inglês de Heloisa Jahn

 

Teju Cole (1975), escritor, crítico e fotógrafo americano, publicou o romance Cidade aberta e colabora para periódicos como The New York TimesThe New Yorker The Guardian.

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