Revista ZUM 9

Os trabalhos e os dias

Eduardo Viveiros de Castro Publicado em: 23 de novembro de 2015
Tomadas nas horas vagas durante pesquisa etnográfica entre os índios Araweté no começo da década de 1980, as fotografias do antropólogo EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO, reunidas na exposição Variações do corpo selvagem e editadas por MIGUEL RIO BRANCO para a edição impressa da ZUM, registram um cotidiano marcado pela intimidade corporal e pela austeridade material. [Matéria publicada na revista ZUM #9, outubro de 2015]

Todas as imagens aqui mostradas registram situações e expressões da vida cotidiana de uma só gente indígena, junto à qual passei 11 meses entre 1981-83 e à qual retornei algumas vezes desde então: os Araweté, povo de língua tupi-guarani que habita a bacia do Igarapé Ipixuna, na margem direita do Médio Xingu. As terras do Ipixuna e seu povo não estão muito longe do gigantesco, inútil e devastador complexo hidrelétrico de Belo Monte, a menina dos olhos de nossa atual comandante em chefe, que vai erguendo implacavelmente barragens por toda a bacia amazônica, em conformidade com um projeto ecocida e etnocida sem precedentes na história da América do Sul. O impacto desse projeto já se faz sentir de múltiplas maneiras na vida atual dos Araweté.

Estas imagens pertencem a minha primeira estadia na região. Os Araweté estavam então diminuídos em número, após seu “contato” com a chamada sociedade envolvente, em 1976, uma catástrofe que reduziu, por força de epidemias de origem “branca”, sua população original de cerca de 350 pessoas, dispersas em várias aldeias na margem direita do Xingu, a uma só aldeia de 135 pessoas em 1981. Hoje eles são cerca de 400, divididos em seis aldeias.

As fotografias foram tomadas durante uma pesquisa etnográfica, por um antropólogo de profissão e fotógrafo apenas nas (e, sobretudo, das) horas vagas. Antes de enveredar pela antropologia, andei às voltas com a fotografia em um contexto muito diferente, fazendo a fotografia de cena dos filmes de outro velho amigo, Ivan Cardoso, em uma época especialmente significativa da cena artística, política e cultural do Rio de Janeiro, os anos 1970. Essa minha atividade prévia, e a convivência com Ivan Cardoso, Hélio Oiticica, Júlio Bressane, Waly Salomão, Carlos Vergara e outros (entre os quais, last but not least, o editor da presente seleção de fotos), somadas ao que se poderia chamar de intenso experimentalismo existencial que marcou a contracultura carioca no período, certamente tiveram influência formativa em minha maneira de fotografar. Tudo isso está, de modos ainda um tanto obscuros para mim, na origem da decisão de fugir do Brasil para dentro e procurar um país o mais diferente possível daquele que nos cercava nos anos de chumbo. Foi assim que acabei achando esse outro país, nos mundos indígenas da Amazônia, que então começava a sofrer a violenta ofensiva colonialista dirigida pelos militares da ditadura e seus financiadores civis, muitos dos quais continuam financiando o projeto de poder do governo atual de desindianizar de uma vez o Brasil e convertê-lo em uma caricatura grotesca da civilização europeia e norte-americana (o “Ocidente”), cuja decadência vertiginosa, neste século que se inicia, não parece desanimar seus imitadores tropicais.

Estas fotos dos Araweté não fazem parte da pesquisa, não foram usadas por mim como instrumento – nem sequer como documento – etnográfico. Não sou praticante do que se chama hoje de antropologia visual. Ao contrário, as fotos se dispõem, por assim dizer, à parte da pesquisa; foram feitas naquelas horas em que eu largava do pé das pessoas com minhas perguntas, gravações e anotações irritantes e parava para olhar o mundo ao redor. Elas registram o miúdo da vida, os trabalhos e os dias de um povo cuja beleza, delicadeza e alegria só faziam aumentar o contraste com sua grande austeridade material e com a ausência daquela teatralidade que caracteriza a cultura de outros povos amazônicos, onde abundam a plumária suntuosa, a decoração corporal meticulosa, o cerimonialismo espetacular e a elaborada etiqueta interpessoal.

As imagens escolhidas por Miguel cobrem a paleta de ambientes e momentos recorrentes na vida araweté – a aldeia e a floresta, o rio e a roça, a caça e a pesca, a fabricação de seus poucos mas belos, eficazes e suficientes utensílios, a intensa intimidade corporal entre as pessoas, a comensalidade cotidiana (extensiva às araras), a discreta elegância dos pequenos gestos, a centralidade do xamanismo como modo de comunicação com os deuses e os mortos. E a onipresença do vermelho, esse vermelho do urucum (do encarnado profundo do urucum fresco ao marrom-amarelado da tintura esmaecida pelo uso) aplicado nos corpos, nos objetos, nas roupas tradicionais femininas, o vermelho que marca tudo que é araweté e que lhes deu seu nome – kuben-kamrek-ti, “os inimigos muito vermelhos” – entre os Xikrin, seus vizinhos de língua jê.

A primeira vez que os Araweté me pediram para ver uma foto colorida que eu trouxera de uma viagem anterior, em lugar da série em preto e branco que eu estava mostrando, disseram: “Queremos ver uma foto vermelha”. O vermelho – a cor da cor, sob a qual servem de fundo o verde da mata, o branco da palha seca, o marrom-cinzento do barro e da terra, o negro da água e das pedras do Ipixuna. (O vermelho, não esqueçamos, é também a cor de segurança dos bons tempos da fotografia analógica, a luz feita antiluz sob a qual trabalhamos todos em nossos laboratórios por horas infinitas.)

Só me resta esperar que os Araweté consigam, apesar dos brancos, de seus cimentos e de seus metais, de sua estupidez e de sua cupidez, continuar livres, vermelhos e felizes. (EVC) ///

 

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A exposição Variações do corpo selvagem, com curadoria de Eduardo Sterzi e Veronica Stigger, fica em cartaz no Sesc Ipiranga, em São Paulo, até 29 de novembro de 2015.

Eduardo Viveiros de Castro (1951) é professor titular do Museu Nacional de Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro . É autor de A inconstância da alma selvagem (Cosac Naify, 2002) e Metafísicas canibais (Cosac Naify, 2015), entre outras publicações.

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