Radar

Paraisópolis

Lorenzo Mammì Publicado em: 4 de dezembro de 2019

Tuca Vieira, Paraisópolis, 2004.

Em 2012, em seu terceiro número, a revista ZUM publicou uma foto famosa de Tuca Vieira, representando, à esquerda, o bairro de Paraisópolis e, à direita, um empreendimento imobiliário de luxo. A foto não era nova: já em 2007, fora utilizada como cartaz da exposição Cidades globais, da Tate Modern de Londres. Mas continuava (e continua) a circular pelas redes sociais, gerando milhares de comentários. Junto com a imagem, a ZUM publicou uma seleção destes comentários e um breve texto do próprio Tuca. Neste, o fotógrafo ressalta algumas escolhas que contribuíram para o sucesso da foto: especialmente, enquadrar de maneira a excluir o horizonte e tornar a imagem a mais chapada possível. Sem dúvida, são aspectos importantes, que contribuem para aquilo que, a meu ver, é o caráter mais marcante da foto: ela parece uma colagem.

As duas metades são igualmente desordenadas. Mas as duas desordens não combinam: à esquerda, um aglomerado denso de casas, sem nenhuma planificação; à direita, construções igualmente caprichosas, que não parecem muito preocupadas com uma articulação racional. E muito menos com uma integração com o território. Acumulação de um lado, desperdício de outro. Até as cores não batem: cinza do asfalto e bege amarelado dos tijolos à esquerda; verde da grama, azul das piscinas e ocre das quadras à direita. Realmente, parecem duas fotos diferentes recortadas e coladas. Mas a colagem não está na foto, está no lugar.

No meio, corre um muro fino, cujo trajeto irregular provavelmente responde a desníveis do terreno – no entanto, não conseguimos detectá-los, graças à bidimensionalidade da imagem. Assim como aparece, seu traçado soa totalmente arbitrário. Mas o que mais impressiona é o fato de ser tão fino e, ao mesmo tempo, tão impenetrável. Até a terra, repare-se, é mais clara no bairro do que no condomínio. Podemos apostar que não há portas nesse muro. Muros como esses não são cercados ou arrimos: são fronteiras. As fronteiras são finas, porque são muito mais do que físicas. O que as sustenta é a convicção de que o que está do outro lado é outro Estado, outra situação, outro lugar que não nos diz respeito. O muro de Berlim era alto, pouco mais de três metros. As cidades e os bairros do Brasil são crivados de fronteiras como essas.

Fico pensando se os jovens de Paraisópolis que morreram em 30 de novembro não ficaram prensados num muro como esse. Talvez não. Talvez a polícia viesse de uma rua como a que corre ao lado do muro, e eles morreram sufocados pela própria densidade do espaço que habitam entre muros. Depois de uma tragédia dessas, num país que não considerasse parte de seus habitantes como população de um território ocupado, o chefe da polícia e o secretário de segurança poriam seus cargos a disposição. Mas a experiência nos acostumou a pensar que nem os policiais diretamente envolvidos sofrerão sanções sérias. O governo do Estado informou que a operação “pancadão” (o nome é esse) continua sem alterações. O objetivo é combater o consumo de drogas e o barulho. Na foto, não há espaços públicos nem no lado direito nem no esquerdo. Mas no lado esquerdo também não há direitos. ///

 

Lorenzo Mammì (1957) é professor no departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).

 

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