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O enigma da “negra da Bahia”

Hanayrá Negreiros Publicado em: 16 de março de 2021

Negra da Bahia, de Marc Ferrez, Bahia, c. 1885. Coleção Gilberto Ferrez / Acervo IMS

Quando vi essa imagem pela primeira vez indaguei: o que estaria pensando tão bela jovem?

O ano era 2014 e eu era uma das alunas em um curso orientado pelo Renato Araújo, professor e pesquisador em artes africanas e afro-brasileiras. As aulas tinham o intuito de elaborar ideias sobre o histórico das estéticas e contextos culturais das produções de joalheria africana, tema ainda pouco conhecido por muitas pessoas aqui no Brasil. Um dos elementos que mais me causou interesse foi a profusão de joias e ornamentos que essa mulher vestia. E o que mais me intrigou foi pensar que esse registro havia sido feito ainda no período imperial, por volta de 1885, ou seja, antes da abolição da escravatura.

De alguma maneira, aquela mulher, vestida com tantos elementos, havia mudado a antiga ideia de falta de referências negras para se estudar moda no Brasil. E aqui vale ressaltar que o nosso país ainda dá os seus primeiros passos em direção a elaborações de um campo de estudos mais plural, começando a se interessar tardiamente, diga-se de passagem, por outras culturas e maneiras de vestir que se afastam do conceito de Europa como centro.

Lembro-me de um artigo escrito em meados de 2015 pela pesquisadora Wanessa Yano em seu blog de moda sobre as histórias e indagações que surgiam a respeito da figura de mulheres negras vestidas com suntuosidade: “que papo é esse que crioula tem ouro?” Nesse contexto, uma pergunta tomou conta dos meus pensamentos: quem seria ela? Este artigo, de maneira inicial e curiosa, ora avançando, ora retrocedendo no tempo, se propõe a investigar as histórias do vestir que envolvem tal imagem e mulher.

O enigma, as possíveis imagens de moda e o “dar-se a ver”

O enigma que este artigo sugere tem relação com a identidade da mulher retratada. Qual seria o seu nome? Onde morava e o que a teria levado ao estúdio do fotógrafo Marc Ferrez, o autor da imagem? O olhar para o vestir de tal moça nos possibilita refletir sobre as relações de cotidiano, poder, comércio e trabalho feminino e negro em tempos de escravidão, alçando o estudo das roupas e adornos usados a dispositivos reveladores das muitas histórias das mulheres brasileiras e os seus universos pessoais e coletivos.

Poderíamos pensar então em imagens de moda (coloniais) a partir dessas fotografias e vestimentas? Talvez a moça em questão fosse uma dama comerciante, que buscava nas imagens da época uma maneira de registrar a prosperidade oriunda de suas atividades comerciais, quem sabe querendo ser retratada com as suas melhores roupas e adornos.

Ouso pensar que ao participarem da fotografia não só com os seus corpos, mas também com as suas visualidades, tais mulheres poderiam ser consideradas cocriadoras desses registros fotográficos, alternando silenciosamente a relação entre retratada e fotógrafo e, munidas dos artifícios do vestir, negociando também as suas imagens registradas. Também acredito ser difícil imaginar que fotógrafos brancos da época tivessem habilidades para fazer complexas amarrações de turbantes ou nas elaboradas peças vestidas por mulheres negras.

Sabemos de toda a mise-en-scène criada nos estúdios fotográficos, da necessidade de peças específicas de vestuário e mobiliário para se estabelecer o que seria a imagem ideal e comercializável da mulher negra e baiana dessa época. Mas suponho que, ao prepararem as suas roupas e adornos nos momentos que antecediam tais registros, essas mulheres participaram ativamente da atividade. Mesmo sujeitas aos apagamentos dos seus nomes e identidades, (parafraseando Manuela Carneiro da Cunha) elas deram-se a ver.

Modas de mulheres negras na Bahia oitocentista

Na imagem de Ferrez, a Negra da Bahia, assim como cantou Caymmi em O que é que a Baiana tem?, possui turbante elegante feito em um tecido escuro e levemente brilhante, arrematado com o que parece ser um tipo fino de bordado em renda branca, assemelhando-se a uma dobradura em um jogo de detalhes que dá o toque final à peça. O colo da mulher é coberto por uma blusa alvamente bordada, destacando as suas joias, que pendem do pescoço. Na verdade, parecem rosários e santinhos, que muito provavelmente devem contar sobre a confraria religiosa a qual ela poderia pertencer.

Sobre confrarias religiosas formadas por pessoas negras, a historiadora Lucilene Reginaldo, ao pesquisar irmandades de africanos e crioulos (negros nascidos no Brasil) na Bahia setecentista, identifica tais espaços como importantes lugares de resistência negra, sobretudo durante os séculos 18 e 19, e não só na Bahia, como também em outros cantos do Brasil. Era nos interiores das irmandades que negras e negros articulavam relações, reconstituíam laços comunitários e se ajudavam financeiramente.

Relacionando o vestir da moça da foto com as religiosidades afro-católicas é interessante pensar também na permanência histórica do traje usado nas imagens. Conhecido como traje de crioula ou traje de baiana, tais composições vestimentares resistem até hoje nos vestires femininos dos terreiros de religiosidades de matrizes africanas e em irmandades. Como é o caso da Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte, confraria composta por mulheres negras que desde o século 19 se encontra no Recôncavo Baiano, na cidade de Cachoeira.

Para além dos outros adornos, como os pequenos brincos que combinam com os pares de pulseiras e os muitos anéis, não podemos deixar de notar o que ela carrega à cintura: uma reluzente penca de balangandã, famoso tipo de “joia-amuleto” composto por uma estrutura maior, chamada de nave, que abarca variados tipos de berloques. Lembro da onomatopeia “balangandã, barangandan, berenguendem” apresentada pelo professor Renato na aula que marcou o meu encontro com tal imagem. O som indica o farfalhar dos muitos penduricalhos que mulheres como ela usavam para indicar poder, riqueza e religiosidade, pois, além de adornar, a joia também tinha a função de proteger a sua portadora.

A sua indumentária é composta ainda por uma ampla saia rodada feita em tecido estruturado, e é finalizada por um pano da costa que repousa propositalmente no encosto da cadeira. Um importante item que compõe alguns vestires africanos e afro-brasileiros até os dias atuais, o pano da costa foi difundido por mulheres africanas, sobretudo as que tinham ligação étnica e/ou comercial com a chamada Costa da África, expressão que designa de maneira genérica a região que abarca atualmente países como Cabo Verde, Gana, Benin e Nigéria.

 

Negras da Bahia, de Marc Ferrez, Bahia, c. 1885. Coleção Gilberto Ferrez / Acervo IMS

Uma só mulher, alguns registros

Continuando a exploração do acervo do IMS encontro mais uma imagem com a mesma mulher, reforçando a ideia de que ela foi uma modelo bastante requisitada por fotógrafos da época. Uma mulher vivendo em condições livres e que talvez vivesse de posar para retratos feitos para fins de circulação das imagens criadas no Brasil escravista. Para esta perspectiva encontrei nos estudos de Sandra Koutsoukos, intitulados Negros no estúdio do fotógrafo, a informação da possibilidade de pessoas negras exercerem o trabalho de modelo, recebendo pouco ou, em muitas vezes, nada como remuneração.

Na imagem acima a personagem principal deste enigma aparece pareada com outra foto em que uma mãe negra carrega o seu filho em um pano da costa, enquanto leva na cabeça uma gamela com bananas apoiada em um “turbante-rodilha”, à moda das quitandeiras que trabalhavam nas ruas dos principais centros urbanos da época. Mulheres que, segundo a historiadora Cecilia Soares, eram importantíssimas para a vida urbana, ao articular política e comércio de diversas maneiras. Dessa vez, a mulher que se repete nas imagens aparece vestida de maneira semelhante à primeira foto, mudando apenas as cores do tecido de sua saia, que parece ser feita em tecido plissado, ornando com o pano da costa também escuro e levemente brilhoso. É interessante notar que o turbante que adorna a sua cabeça parece o mesmo da primeira imagem.

As joias também respondem ao mesmo padrão, com poucos colares, algumas pulseiras e o expressivo balangandã. Agora a mulher está de pé e carrega em uma das mãos o que parece ser um pequeno banquinho feito em madeira e palha trançada. No livro Moda e história: as indumentárias das mulheres de fé, o antropólogo Raul Lody se dedica a contar algumas das histórias do universo do vestir de mulheres negras da Bahia, tendo como ponto de partida as fotografias de Pierre Fatumbi Verger, fotógrafo de origem francesa que pela Bahia se apaixonou e fez de lá a sua morada, documentando os muitos cotidianos negros baianos e de outras partes do país e do continente. Em uma das passagens do livro, Lody comenta sobre o mocho, banquinho de madeira que algumas “baianas de beca” – mulheres negras vestidas com roupas especiais para os dias de festejos religiosos – levavam na procissão para se sentarem durante o andar da festa.

 

J. Creoula, cartão postal de Rodolpho Lindemann, Bahia, c. 1880-1900. Acervo Fundação Gregório de Mattos.

Extrapolando os limites do acervo do IMS e realizando buscas na internet sobre mulheres negras na Bahia do século 19, foi possível encontrar, através da pesquisa de Isis Freitas dos Santos, intitulada Gosta dessa baiana?: crioulas e outras baianas nos cartões postais de Lindemann (1880-1920), mais um registro da mulher em questão, desta vez atribuído ao fotógrafo francês Rodolpho Lindemann. Neste caso,  a mesma mulher, talvez um pouco mais jovem, é agora apresentada como J. Creoula.

O papel dos acervos fotográficos, os estudos de moda e as atualizações e apropriações de uma imagem

Pouco se sabe sobre a retratada. Mas sabemos que a foto faz parte da coleção de Marc Ferrez, do acervo do IMS, reconhecido como um dos mais importantes do país no século 19. Autor este que inclusive possui a própria trajetória confundida com o desenvolvimento do método fotográfico no Brasil, como nos conta o antropólogo Hélio Menezes no artigo Olhos de Sangue, escrito para a ZUM #17 no início de 2020. No texto, Hélio nos apresenta informações da história da fotografia no país ao mesmo tempo em que alinhava a caminhada de Ferrez e costura a presença do sistema escravista junto ao avanço do “moderno” registrado por este e outros fotógrafos na segunda metade dos oitocentos.

O ato de registrar pessoas negras em estúdios fotográficos em diversos contextos, representando de maneira estereotipada os seus ofícios cotidianos, não só cristalizava a imagem de uma terra escravista, porém cordial, como também “vendia”, por meio das narrativas visuais produzidas, o imaginário de um paraíso tropical, retirando a ideia de humanidade e subjetividade das pessoas ali retratadas. Um fato decorrente disso é que na maioria dos registros, sejam eles feitos na Bahia ou em outras províncias brasileiras, não era costume documentar os nomes das pessoas retratadas nas fotografias, dificultando consideravelmente a possibilidade de se resgatar tais memórias e identidades. Como nos elucida a historiadora Ana Maria Mauad, as fotografias nos servem como documentos para atestar a existência de um passado vivido. Mas o fazem por meio de certa linguagem e por ações codificadas. E é aqui que o enigma da “negra da Bahia” se faz de maneira mais pungente.

Não é só a “negra da Bahia” estudada neste artigo que permanece envolta em mistérios, nos indicando algumas possibilidades para sua existência por meio de suas vestes e adornos. Existem muitas outras mulheres com histórias e nomes a serem descobertos pelos acervos de imagens coloniais.

Entende-se que a fotografia, enquanto linguagem, nunca esteve no campo da neutralidade. E que tal advento teve participação fundamental para produzir e disseminar imagens de um território embebido em paradoxos, ansioso para compartilhar os progressos urbanísticos e tecnológicos do último país da América a abolir a escravidão (em um tardio 1888) a partir das imagens produzidas por fotógrafos como Ferrez. Atualmente, repensar de maneira crítica o papel dos acervos de imagens como essas, assim como elaborar novas narrativas a partir de tais registros, se torna urgente, necessário e uma bela oportunidade para entender alguns dos meandros do tecido social brasileiro escravista, além de conseguirmos estudar a história da moda  a partir de tais retratos. Uma moda afro-brasileira, diga-se de passagem.

 

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Saltando no tempo, agora já no século 21, é possível notar as apropriações e as reelaborações da imagem da mulher retratada. No projeto Ebó Animado, do Estúdio Roncó, os pesquisadores Adriano Cipriano e Nathalia Grilo Cipriano, munidos de tecnologia de motion design, deram vida à “negra da Bahia” originalmente retratada por Ferrez. Nathalia também desenvolve pesquisas sobre mercados africanos, sobretudo os de origem iorubá, costurando a presença de mulheres negras nos comércios e sociabilidades africanas e afro-brasileiras.

 

Résistance I, de Carolina Vidal Alves, da série Afrofuturista, 2013. Cortesia da artista.

A artista visual Carolina Vidal Alves, no desenho intitulado Résistance I (parte dos estudos de sua série Afrofuturista), reproduz um detalhe da fotografia de Ferrez, atribuindo ao punho fechado e aos adornos compostos por elementos de religiões afro-brasileiras símbolos e formas de resistência.

Para além de uma produção artística é interessante debater as contribuições para a construção de um campo que privilegie os estudos em história da moda no Brasil, levando em consideração as expressivas pesquisas (acadêmicas e independentes) que se fazem nas brechas e se dedicam a estudar tais figuras e as suas negras maneiras de vestir. A pesquisadora e estilista Cynthia Mariah atua como professora independente ensinando história de moda a partir das estéticas das “Negras Crioulas”, tema do seu primeiro livro (no prelo), que abordará a moda de mulheres negras no Brasil dos séculos 18 e 19.

As indumentárias das mulheres negras baianas e de outras localidades do Brasil oitocentista cada vez mais se tornam objeto de estudo de pesquisadores, sobretudo mulheres negras – mas não só – que vislumbram as potencialidades de tais estudos para pensarmos outras possibilidades de leituras apresentadas pelo vestir. Renata Bittencourt, em sua pesquisa de mestrado intitulada Modos de negra, modos de branca: o retrato “Baiana” e a imagem da mulher na arte do século XIX, interessa-se por pensar a figura de uma outra mulher negra, anônima, vestida de veludo azul marinho, voltas e mais voltas de um colar de ouro brilhante e luvinhas brancas, indicando poderio e elegância que entrelaça estéticas negras e brancas. A identidade da mulher retratada nessa pintura de autoria também anônima permanece um mistério.

Fica cada vez mais evidente que alçar essas imagens como documentos relevantes para se pensar moda se torna um caminho interessante para costurarmos outras histórias das mulheres negras no Brasil. Descentralizando o olhar das narrativas europeias e coloniais, podemos entender as modas e costumes dessas mulheres como sofisticados códigos estéticos africanos e afro-brasileiros que se desenvolveram e continuam a se formar nos fazeres das diásporas.

Passados mais de 130 anos da realização das fotografias escolhidas para este artigo, algumas perguntas foram respondidas por meio do estudo do seu vestir, mas outras ainda se fazem presentes. Mas a pergunta inicial continua aqui e diz respeito principalmente à identidade da moça retratada. Quem seria essa mulher chiquérrima? ///

 

Hanayrá Negreiros é pesquisadora e professora de moda, mestre em Ciência da Religião pela PUC-SP e colunista na ELLE Brasil.

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“Olhar escravo e ser olhado” de Manuela Carneiro da Cunha, em Escravos brasileiros do século XIX na fotografia de Christiano Junior (Ex Libris, 1988)

As Ganhadeiras: mulher e resistência negra em Salvador no século XIX de Cecilia Soares, em Revista Afro-Ásia, número 17, (Centro de Estudos Afro-Orientais, UFBA, 1996)

Os Rosários dos Angolas: irmandades de africanos e crioulos na Bahia setecentista de Lucilene Reginaldo (Alameda, 2011)

Fotografias com corpo e alma… de Ana Maria Mauad, em Revista Afro-Ásia, número 48 (Centro de Estudos Afro-Orientais, UFBA, 2013)

Que papo é esse louco que crioula tem ouro? Parte I de Wanessa Yano, em seu blog Esse é só mais um blog de moda, 2015

Balangandãs, Barangandã, Berenguendens, de Renato Araújo da Silva em Escritos Afro-Brasileiros. Vol.1. (Ferreavox, 2016)

 

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