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Michael Wolf e a arte de fotografar as megacidades do século 21

Tuca Vieira & Michael Wolf Publicado em: 24 de maio de 2019

Arquitetura da densidade #91, de Michael Wolf, Hong Kong, 2006. Cortesia da Galeria Blue Lotus, Hong Kong

Falecido recentemente em Hong Kong, aos 64 anos, o fotógrafo alemão Michael Wolf é conhecido por seu trabalho sobre a vida nas grandes metrópoles, Wolf morava na ilha de Cheung Chau, um vilarejo de vida simples que ele adorava pela atmosfera “no cars, good food” (sem carros, boa comida). A ilha fica a apenas quarenta minutos de ferry boat da movimentada região central da cidade – uma viagem curta, mas que separa dois mundos bem diferentes.

Pois para entender o trabalho de Michael Wolf é preciso justamente entender Hong Kong. Digo isso porque muitas vezes a grande decisão de um fotógrafo pode ser justamente o lugar onde morar. Afinal, lembremos, é preciso estar próximo daquilo que se quer fotografar.

A antiga colônia britânica na China foi sua grande paixão e lhe serviu de inspiração e base para a criação de seus trabalhos mais importantes. Wolf se estabeleceu ali nos anos 1990 como correspondente da revista alemã Stern. Por alguns anos, a cidade foi apenas uma base para explorar os países da região, numa época em que a China desfrutava de um crescimento econômico e urbano notável. Foi só quando terminou sua relação com a revista que ele despertou para o potencial fotográfico do lugar em que vivia. Resolveu então se estabelecer definitivamente na cidade, abandonou o fotojornalismo e passou a se dedicar a projetos pessoais. A partir daí, iniciou a sequência de trabalhos fotográficos que o tornou conhecido mundialmente.

Noite #3, de Michael Wolf, Hong Kong, 2005. Cortesia da Galeria Blue Lotus, Hong Kong

Hong Kong é uma cidade belíssima. O Victoria Harbour divide a cidade em duas partes importantes: de um lado, a Ilha de Hong Kong, onde estão o centro financeiro e os bairros mais ocidentalizados; do lado continental, o Kowloon, com sua atmosfera cantonesa, imigrantes e os bairros de trabalho pesado. É uma cidade com pessoas de pensamento rápido e comida de rua fumegante. É um lugar caro, de espaços disputados e muito trabalho. Como em toda grande metrópole, a vida não é fácil, mas traz recompensas.

Agora, este enclave capitalista em plena China vive um momento de transição histórica. O território foi formalmente devolvido à China em 1997, mas ainda poderá preservar a moeda, o sistema capitalista e a administração municipal até 2046 (ano que dá título ao filme do cineasta chinês Wong Kar-wai), quando será definitivamente incorporado ao império chinês. Por isso, há uma certa melancolia no ar, uma resignação diante da certeza de que aquele modo de vida bastante específico terá fim. A cena cultural independente já não encontra espaço, os turistas chineses tomam de assalto as ruas, já não há tantos mercados noturnos e as luzes de neon que fizeram a fama de Nathan Road estão desaparecendo.

Como há pouco espaço disponível para construção, a cidade cresceu dramaticamente para cima, com conjuntos residenciais altíssimos e próximos uns aos outros, resultando numa das cidades mais densas do mundo. Fora isso, montanhas, florestas, o porto e mais de duzentas ilhas compõem o resto da cidade, que se assenta numa topografia acidentada e surpreendente. Tudo isso na entrada da baía do rio Pérola, a região mais populosa do mundo, onde estão também as cidades de Shenzhen, Guangzhou e Macau. Para um fotógrafo como Michael Wolf, é um prato cheio.

Sempre me impressionou a maneira com que Wolf transitava do grandioso ao particular, do jornalismo à arte contemporânea, do grande formato ao celular, do analógico ao digital, do épico à ironia, do retrato à arquitetura. Era capaz de realizar panoramas urbanos sublimes e logo depois se focar em pequenos detalhes esquecidos, num salto de escala impressionante. Sabia retratar edifícios com técnica precisa e pessoas com uma empatia evidente. Utilizou como poucos as mais diversas técnicas fotográficas disponíveis, mas nunca colocou isso acima das exigências de seu tema.

Arquitetura da densidade, de Michael Wolf, Hong Kong, 2006. Cortesia da Galeria Blue Lotus, Hong Kong

Wolf trabalhava sobretudo em séries. A mais conhecida é sem dúvida Arquitetura da densidade. São imensos edifícios de Hong Kong fotografados frontalmente, eliminando do quadro o céu e o chão. A repetição de janelas cria um efeito hipnótico, acentuado pela angústia de se desconhecer o contexto em que foram feitas. Mesmo sem retratar pessoas, é uma série que fala diretamente da vida uniformizada e mecânica nas grandes cidades da Ásia, modelo urbano agora exportado para o resto do mundo. É uma ilustração espetacular e assustadora da humanidade reduzida a um código digital.

Este é um trabalho que imediatamente levanta a questão: quem são as pessoas que moram ali? Como vivem? Na série 100 x 100, Wolf entra num desses prédios para retratar as pessoas que vivem por detrás daquelas janelas, em espaços inacreditavelmente pequenos, rodeadas por seus objetos mais essenciais. Uma série que poderia ter como subtítulo “o mínimo que um ser humano precisa para sobreviver”. Os trabalhos foram reunidos no livro Hong Kong dentro fora.

Depois, desce às ruas da cidade e mostra sua habilidade como fotógrafo de arquitetura. A série Casas de esquina é uma tipologia de prédios de esquina de Hong Kong, sobretudo no bairro comercial de Sham Shui Po. São construções modernistas dos anos 1950 e 1960 que foram se modificando com o tempo, de acordo com as necessidades. Carregam na pele a própria história de Hong Kong, em camadas, incrustando na superfície a pátina do tempo. São testemunhas de um processo cultural oposto ao princípio ocidental de preservação e restauro, mas que, à sua maneira, mantém a cidade como um organismo vivo. Infelizmente, estão desaparecendo, no processo irrefreável de gentrificação da cidade.

Indo mais a fundo, como se agora penetrasse nas entranhas da cidade, Wolf realizou diversas séries nos becos de serviço de Hong Kong. Fotografou roupas caídas na fiação, pequenos altares, guarda-chuvas, cabides, vassouras, cadeiras improvisadas, tampas de mesa, bitucas de cigarro e toda sorte de gambiarras criativas. Nesses trabalhos, se comportava como um botânico, coletando objetos e usando da fotografia como método de realizar uma espécie de taxonomia da vida urbana. São indícios que podem dizer mais sobre aqueles que criaram tais objetos do que seus próprios retratos.

Mas o trabalho de Wolf não se limitava a Hong Kong. Fotografou também arranha-céus de Chicago, bicicletas abandonadas em Berlim, telhados de Paris, tipos humanos na China profunda, fábricas de brinquedos, entre outros assuntos.

Compressão de Tóquio #2, de Michael Wolf, Tóquio, Japão, 2009. Cortesia da Galeria Blue Lotus, Hong Kong

Em Compressão de Tóquio, por exemplo, retratou passageiros espremidos no metrô da capital japonesa. Aqui ele fotografa de fora para dentro do vagão, de modo que o embaçamento do vidro cria uma atmosfera sufocante e abstrata. Mesmo num país desenvolvido e numa cidade eficiente, a série mostra o alto preço que pagamos para vivermos juntos e desfrutarmos das seduções da vida urbana.

Já em Visão da rua, investiga não só a vida nas grandes cidades, mas também a própria natureza da matéria fotográfica e seus meios de produção contemporâneos. Sem sair de casa, se comporta como um fotógrafo de rua virtual, capturando pedaços de imagens realizadas automaticamente pelo Google nas grandes cidades. São flagrantes, retratos e cenas de rua “recortados” diretamente da tela do computador, numa irônica referência a fotógrafos como Cartier-Bresson e André Kertész, cujo trabalho também consistia em enquadrar cenas de rua. Wolf foi um dos primeiros artistas a investigar esse tipo de fotografia remota, que questiona a substituição da experiência direta pela virtual.

Éramos amigos. Nos conhecemos quando ele veio ao Brasil para a X Bienal de Arquitetura de São Paulo. Aqui, fez algumas palestras e participamos da exposição coletiva no CCSP. Ele esteve em casa, saímos para comer e beber algumas vezes e conversamos sobre fotografia, cidades e projetos.

Embora fosse alemão, e possuidor de um olhar rigoroso, Wolf em nada se parecia com seus compatriotas da escola de Düsseldorf. Nada tinha daquela pretensa neutralidade do olhar ou da necessidade de se afirmar como artista inserido no mercado. Guardava a espontaneidade do fotojornalista e se orientava por um hedonismo fotográfico, fazendo do prazer a verdadeira matéria-prima de sua fotografia. Olhando suas fotos, é fácil perceber o quanto se divertia fazendo retratos e coletando objetos largados nas ruas.

Nossa afinidade se dava pela maneira de enxergar o mundo, como se falássemos um mesmo idioma visual. Numa dessas conversas, me pediu para ajudá-lo a realizar um projeto fotográfico em São Paulo, fazendo uma pesquisa de locações interessantes. Estava encantado com o potencial fotográfico da cidade, com sua massa disforme e anônima, praticamente desconhecida no resto do mundo. Em tom de brincadeira, disse a ele que procurasse outra pessoa, pois, se eu fizesse essa pesquisa, fotografaria eu mesmo a cidade. Ele disse algo como: “então está esperado o quê? Se você, que mora aqui, não fizer, quem vai fazer… eu?”. Fiquei com aquela provocação na cabeça. Tempos depois escrevo a ele: “Michael, estou iniciando um projeto novo e devo muito a você”. Foi assim que começou uma longa série que realizei chamada Atlas Fotográfico.

Recentemente lamentamos juntos a perda de um grande amigo em comum, o adorável editor Hannes Wanderer, dono da Peperoni Books, que editou quase todos os livros de Michael Wolf. Wanderer foi uma pessoa muito importante no mundo dos livros de fotografia, com seu método artesanal e caótico, sua paixão pela fotografia bem apresentada e sua lojinha-galeria anacrônica em Berlim.

Telhado de Paris #1, de Michael Wolf, Paris, 2014. Cortesia da Galeria Blue Lotus, Hong Kong

A última vez que vi os dois foi justamente na loja de Wanderer, por ocasião do lançamento de mais um livro de Wolf. Encontrava ali uma espécie de pequena comunidade, que compartilhava ideias e projetos como talvez nunca mais encontre. Sempre enxerguei na fotografia uma atividade muito solitária, sendo raros os encontros permeados por tamanha afinidade. Levamos anos para estabelecer essa relação, tínhamos projetos juntos, e de repente tudo se esvai. Não posso expressar por completo a tristeza que sinto diante da perda dessas duas figuras, num espaço tão curto de tempo.

Nos últimos tempos Wolf estava muito feliz com as retrospectivas que realizou em Hamburgo, Haia e, sobretudo, com a lindíssima exposição no festival de Arles, quando ocupou toda uma igreja do século 15. Estava também muito contente com o lançamento dos últimos livros, um deles (Trabalhos) com o conjunto de seus trabalhos. Mesmo tendo morrido relativamente jovem, pôde revisitar sua própria obra nos últimos anos a tempo de receber o reconhecimento devido. Sem dúvida, um dos mais contundentes retratos da vida urbana nesse início de século 21.///

 

Michael Wolf (1954-2019) nasceu em Munique, Alemanha. Estudou na UC Berkeley (EUA) e na Folkwang School (Alemanha). Ganhou três vezes o prêmio da World Press Photo (2005, 2010 e 2011) e publicou mais de sete livros.

Tuca Vieira (1974) é formado em Letras e mestre em arquitetura e urbanismo pela USP. Fez parte da equipe de fotografia do jornal Folha de S. Paulo de 2002 a 2009 e, atualmente, é fotógrafo independente, desenvolvendo projetos que envolvem cidade, arquitetura e urbanismo. É  vencedor do Prêmio Porto Seguro de Fotografia (2010) e do Prêmio APCA de Arquitetura (2016).

 

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