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A luta de uma comunidade por sua história e cultura nas imagens do fotógrafo piauiense Maurício Pokemon

Publicado em: 27 de setembro de 2019

Foto da série Inventário Verde da Boa Esperança, de Maurício Pokemon, 2018-19. Cortesia do autor.

A partir de encontros com residentes de uma comunidade ribeirinha ameaçada de despejo para dar lugar a um projeto de turismo na cidade de Teresina (PI) que desconsidera os moradores, o fotógrafo piauiense Maurício Pokemon (1989) vem desenvolvendo um projeto que vai além do mero registro de imagens da vida cotidiana dessas pessoas.

“Meu trabalho dentro da comunidade sempre se deu de uma forma muito natural. Nunca foi sobre executar algo, e sim estar lá com as pessoas, acompanhá-las nos seus afazeres, no seu dia-a-dia. Ir para a vazante do Seu Valdir e passar o dia com ele conversando e entendendo como era sua rotina junto aos filhos. Ir conversar com Dona Paruca e entender um pouco sobre plantas medicinais. Ver a Dona Davina dar comida para os pássaros soltos no seu quintal”, comenta Pokemon.

Assim surgiu o projeto verdeVEZ, um guarda-chuva de ações que teve como um de seus resultados o Inventário Verde da Boa Esperança, trabalho premiado pelo Rumos Itaú Cultural e atualmente em exposição em São Paulo. Outro desdobramento, a série Existência, também está em cartaz na capital paulistana, no Sesc Santana.

Leia abaixo entrevista com Maurício Pokemon sobre o projeto verdeVEZ, ativações artísticas e a importância da luta das comunidades por uma vida em harmonia com a natureza.

 

Foto da série Inventário Verde da Boa Esperança, de Maurício Pokemon, 2018-19. Cortesia do autor.

O que levou você à comunidade ribeirinha de Boa Esperança, na zona norte de Teresina? Como surgiu o projeto verdeVEZ?

Maurício Pokemon: Em 2015 eu estava num momento pessoal de mudança no meu trabalho. Até então, ainda fazia muito freelance para jornalismo e publicidade. E cada vez menos acreditando na importância dessa minha atuação pro mundo. Certo dia, passando por Boa Esperança, vi frases pichadas e faixas em muitas casas no corredor da avenida. Isso chamou minha atenção e me fez voltar lá. Foi quando conheci a Fran, moradora da comunidade, e disse a ela que queria entender mais sobre o que estava acontecendo.

Ela me levou em algumas casas, me apresentou moradores, e todos me relataram o quão violento era o projeto Lagoas do Norte, em contradição com sua propaganda que anunciava um grande projeto de modernização e progresso para aquela região.

Continuei indo mais alguns dias e me veio uma constatação: o quintal deles era um local de muita energia ligada à terra, às águas, às matas, aos animais. As pessoas conversavam muito comigo lá. Me contavam histórias. Me falavam de sonhos. De sua luta por continuar vivendo.

Então, depois de pensar muito sobre como eu poderia me aliar a essas histórias, percebi que estava construindo um trabalho: a série Existência. Fotografei muitos moradores nos seus quintais e fui colando essas imagens em outras áreas da cidade, o que estabeleceu uma relação de identificação e estranhamento. Isso chamou a atenção da mídia local, que logo me procurou para entrevistas. Mas eu sempre a redirecionava para a comunidade, para as pessoas de Boa Esperança falarem sobre o que estava acontecendo.

Essa convivência se fez pesquisa artística (e vice-versa). Desde então nunca parou. O verdeVEZ foi um projeto específico proposto ao edital 2017-2018 do Rumos Itaú Cultural, que nasceu da necessidade de conquistar condições para realização de um projeto maior. Eu me questionava sobre como realizar um trabalho que fosse para além do meu, abrindo espaços de discussão em Teresina, através de uma relação entre o CAMPO Arte Contemporânea (espaço cultural onde sou residente) e a comunidade da Boa Esperança. Juntamente com a Regina Veloso, produtora cultural e gestora do CAMPO, criamos um projeto de pesquisa com muitas ações de atravessamento entre os dois lugares e as pessoas que por eles transitam. Convidamos [o fotógrafo paraense] Alexandre Sequeira para ser um colaborador na pesquisa, abrimos convocatória pública nacional para uma residência artística, convidamos Raimundo Novinho [historiador da comunidade da Boa Esperança], fizemos uma ação de colagem na comunidade, fizemos leitura de portfólio. Enfim, o verdeVEZ virou um guarda-chuva de ações, onde, em paralelo a isso tudo, eu estava criando o Inventário Verde da Boa Esperança, meu trabalho mais recente.

 

Sua abordagem para esse projeto leva em conta os habitantes do território não apenas como retratados, mas também como atores participativos a partir de residências artísticas, ativações e exposições abertas. O que essas trocas trouxeram para o trabalho apresentado?

MP: Falei um pouco disso na resposta anterior. Meu trabalho dentro da comunidade sempre se deu de uma forma muito natural. Nunca foi sobre executar algo. E sim estar lá com as pessoas, acompanhá-las nos seus afazeres, no seu dia a dia. Ir para a vazante do Seu Valdir e passar o dia com ele conversando e entendendo como era sua rotina junto aos filhos. Ir conversar com Dona Paruca e entender um pouco sobre plantas medicinais. Ver a Dona Davina dar comida para os pássaros soltos no seu quintal. Falar do trabalho do artista, conversar com Chico sobre imagens, sobre o rio, ouvir Lúcia sobre as forças que atuam ali. Eu via muita potência de vida real nessas convivências e aprendi/aprendo muito com todos eles.

Essas trocas trouxeram uma narrativa de continuidade, pela frequência dentro da comunidade. Foi muito interessante ver esse intercâmbio acontecendo. Moradores indo para as reuniões sobre o projeto, participando de ações junto aos artistas, vendo a exposição acontecendo no CAMPO, abrindo suas casas para os artistas pesquisarem a partir da Boa Esperança. Foi muito importante ter o Raimundo Novinho, historiador que nasceu e mora na comunidade, no processo de trabalho e de troca, participando de uma residência artística e trazendo pro CAMPO uma amostra do que pensa com a comunidade sobre um futuro Museu da Boa Esperança. É uma prática que me engrandece muito como ser humano. Pensar numa quebra de linguagens, numa transdisciplinaridade e no encontro de pessoas de diferentes áreas. E é nesta etapa de desdobramento para outras geografias que os projetos Existência e Inventário estão em exposição em São Paulo. Fico feliz de estarmos conseguindo viabilizar a ida de moradores da comunidade para ver o trabalho lá. Com seu próprio lugar de fala, vão contar sua história para equipes dos educativos das instituições, participar de rodas de conversa e dar workshops sobre o direito à cidade.

A cor verde é uma presença forte no seu trabalho. Como se deu a construção dessa cor no projeto?

MP: Durante o convívio com a Boa Esperança nos períodos de criação do Existência e do Quintal, fui percebendo aquelas vidas muito pela cor verde. Eu enxergava essa cor em tudo: nas paredes, nos tapetes, nos carros, nas estampas das roupas, para além da pujança natural do entorno das casas. Mas com o passar do tempo entendi que o que me movia de antemão não era a questão estética e sim os aspectos culturais e antropológicos que aquelas características de imagem me informavam. Meu desejo era falar sobre a relação dessas pessoas com o mundo, vindo de uma sabedoria ancestral e descendente da cosmologia indígena: de um vida em coletividade e que se coloca como parte da natureza. Diferente do que fomos acostumados, de separar natureza/ser humano.

Fotografia da exposição Inventário Verde da Boa Esperança, em cartaz no Itaú Cultural, em São Paulo. Crédito: Maurício Pokemon.

Na exposição em cartaz no Itaú Cultural, imagens e formato expositivo se organizam para dar conta de uma narrativa visual mais ampla e inclusiva para a história que você quer contar, algo mais próximo de um filme ou de um fotolivro. Como foi chegar a esta solução?

MP: A comunidade da Boa Esperança é muito plural, tem muita vida por lá. Talvez por isso eu sempre tenha pensado esse trabalho com muitas imagens. O assumi como um inventário por entender essa infinitude, algo que sempre se reinventa. Que tem essa característica de ser aberto para a inserção de novas imagens ou a retirada de outras já presentes.

Consequentemente, nessas centenas de imagens que estamos falando são muitas as possibilidades de relações. Acho isso muito bom e, ao mesmo tempo, delicado. Tenho visto as exposições cada vez mais como possibilidades de narrativas, que serão sempre múltiplas para mim e para quem as vê. Um processo de testes.

Sobre a organização das fotografias, isso aconteceu no processo do trabalho. Pensando muito nos dias em que eu estava completamente imerso, a partir das memórias, das histórias, da minha relação com as pessoas,  com os lugares, com o verde presente na vida delas.

Foto da série Inventário Verde da Boa Esperança, de Maurício Pokemon, 2018-19. Cortesia do autor.

O fato de pessoas estarem sendo efetivamente retiradas de um território cria uma caráter de urgência para seu projeto? Existe algum impacto dessa urgência no seu trabalho?

MP: Foi a partir dessa urgência que se estabeleceu minha relação com tudo ali – pessoas, lugar, seus modos de existência. E penso que o impacto segue inevitável.

O que vejo, não só no Piauí, mas em todo o mundo, é o capital a todo instante querendo decidir quem pode e quem não pode. Quem fica e quem não fica, até quando fica, por critérios meramente econômicos, sem qualquer respeito à história, cultura, meio ambiente. Isso toca em questões que considero universalmente urgentes e primordiais.

Especificamente na Boa Esperança vejo profissionais de várias áreas se aliando à causa, fortalecendo várias frentes de luta. E entendo que meu trabalho fortalece uma delas, a partir do sensível, do artístico – sem qualquer pretensão de ser assistencialista ou panfletário.

Estou aqui com a Boa Esperança e com o CAMPO como ser humano-cidadão-artista, numa escolha política de continuar a produzir arte a partir do Piauí, o que em si traz outras camadas de urgência.

Esse projeto foi pensado para criar contextos de trocas entre artistas e comunidade durante um processo de pesquisa, de pensamento, de criação e isso é urgente. Entender outros elementos da vida cotidiana mais simples que podem estar acionando e atravessando ativamente projetos artísticos, para além da academia e da arte em si (ainda que as tendo como aliadas).

É dialogando com a estética da gambiarra, da reinvenção das coisas, que meus trabalhos existem.///

 

Maurício Pokemon (1989) é fotógrafo e artista visual piauiense. Graduado em jornalismo, trabalhou em veículos da grande mídia e segue como fotógrafo e editor de fotografia da Revista Revestrés. É artista residente do CAMPO Arte Contemporânea.

 

 

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