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Januário Garcia: um olhar com 50 anos de fotoescrevivências

Vilma Neres & Januário Garcia Publicado em: 23 de julho de 2021

Retrato de Januário Garcia em entrevista realizada por Vilma Neres em 09 de setembro de 2014. Gravação e direção de fotografia de Antonio Terra.

Em uma tarde de inverno do ano de 2013, nas escadarias do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, avista-se um homem negro de sorriso largo, com olhar e ouvidos atentos diante de uma manifestação popular. Ele vestia um colete abarrotado de bolsos, sobrepondo uma camisa social, calça jeans e tênis, usava um bracelete com búzios naturais, óculos e uma boina de crochê. Em meio àquela multidão, refletia a imagem de um griot, por transmitir generosidade, sensatez e ternura ao empunhar uma câmera fotográfica. Foi quase sempre assim que se observava a presença em ação de Januário Garcia, um dos mestres da fotografia brasileira.

Esse visual de Januário Garcia revela autoafirmação de pertencimento identitário. Ele tinha uma coleção de boinas de crochê, que eram confeccionadas com linhas nas cores verde, vermelho, preto e amarelo. Essas quatro cores eram escolhidas por ele porque, juntas, fazem referência ao pan-africanismo, como também à liberdade e à resistência negra diante das opressões.

Registro da sessão de fotos com o artista Belchior. Autor da foto não identificado.

Januário Garcia gostava de ser anfitrião. Não se importava com o motivo da visita, e sim com o bem-estar das pessoas. Toda pessoa em sua casa se sentia acolhida, com mesa farta e assuntos impulsionados por seu riso e entusiasmo pela vida, ainda que os temas tratados nessas conversas não fossem agradáveis. Era desse jeito afetuoso que Januário Garcia apreciava visitas, desde que não houvesse atraso.

Isso porque ele resistiu à ditadura militar. Durante esse regime, uma das regras para a sobrevivência de ativistas era respeitar o horário combinado. À época, segundo Januário, uma missão precisava ser cumprida no exato horário e local indicado. Do contrário, criava-se uma tensão em torno da possibilidade de que a outra pessoa pudesse ter sido presa pelas forças militares.

Uma fotografia tem que conter os livros que o fotógrafo costuma ler, as músicas que ele ouve, os filmes que ele assiste e as exposições que ele frequenta”

A casa de Januário Garcia abrigava quadros com suas fotografias nas paredes, esculturas em madeiras e plantas naturais. Um dos cômodos servia de escritório de trabalho, onde fica um acervo com, aproximadamente, 100 mil fotografias em películas e impressas, correspondentes a 50 anos de fotoescrevivências. Além de estantes repletas de livros. Dentre os temas que chamam a atenção na sua biblioteca, é o seu gosto por literatura. E, entre esses, destaca-se o romance Um defeito de cor, da escritora mineira Ana Maria Gonçalves. Esse livro, apesar de ficcional, é considerado por Januário uma biografia coletiva da ancestralidade de pessoas negras no Brasil.

 

Fotografia da Marcha – Nada Mudou Vamos Mudar, de Januário Garcia, Rio de Janeiro, 1988.

Fotógrafo e ativista antirracista

Antes de se consolidar como fotógrafo profissional, Januário Garcia foi militar por 18 meses. Até pedir exoneração da função de paraquedista do Exército Brasileiro, para ter uma vida dedicada à fotografia e à luta antirracista por direitos humanos. Participou da construção de diversos movimentos sociais negros, a exemplo do Instituto de Pesquisa de Culturas Negras (IPCN), do qual foi presidente por uma década. Tornou-se um dos protagonistas da história social recente deste país, seja cofundando e dirigindo instituições como também realizando ações no campo da produção simbólica, agregando para a luta antirracista em outros setores da sociedade brasileira.

“Existe uma história do negro sem o Brasil. O que não existe é uma história do Brasil sem o negro”

A experiência da perda da imagem faz parte da vivência de pessoas negras, como afirmou Beatriz Nascimento (1942-1995), historiadora e amiga de Januário Garcia. Isso fez com que ele criasse o Instituto Januário Garcia: Documentos e Fotografias de Matrizes Africanas, para tornar público o seu acervo fotográfico. Garcia pode ser considerado um dos fotógrafos pioneiros ao revelar matizes e perspectivas das manifestações sociais e de culturas negras no Brasil e em outros países da diáspora africana, como Equador, Uruguai, Colômbia, Peru, Venezuela, Suriname, Argentina, Alemanha, Itália e Estados Unidos, entre outros.

 

Ao longo de sua trajetória profissional, o fotógrafo Januário Garcia teve a oportunidade de visitar 36 países e cerca de 400 cidades. Era formado em comunicação visual pela International Cameramen School, com estágio no Studio Gamma, além de ter participado de cursos de extensão em artes visuais, história da arte e videomaker. Ao utilizar estratégias para driblar o racismo, Januário pôde vivenciar ocasiões favoráveis para o seu desenvolvimento profissional. Uma delas foi se tornar fluente em inglês, desde os primeiros anos da década de 1960. Fez um curso de inglês na Escola Brasas, e daí em diante passou a ler periodicamente revistas estadunidenses, como a Ebony e a Color. Foi através dessas revistas que ele buscava atualizações a respeito da luta negra nos Estados Unidos, à época, relacionada aos direitos civis.

Eu sempre tive uma perspectiva interessante na vida sobre a minha questão da militância e da minha profissão. Porque a luta negra é parte da razão do meu viver. Mas a fotografia é a razão do meu viver

Januário Garcia é responsável por inovar o processo de construção de narrativas visuais sobre corpos negros, ao dar enfoque na diversidade de papéis sociais ocupados por essas pessoas. E por promover debates nos espaços por onde passou como fotógrafo profissional, tal como a campanha “O negro na publicidade brasileira”, que estimulou a participação de modelos negras e negros em anúncios publicitários.

Simultaneamente à luta antirracista, Januário Garcia trabalhava como fotógrafo publicitário e repórter fotográfico de maneira independente. Colaborou com diversas publicações impressas, nos jornais O Globo, O Dia, Folha de S.Paulo, Jornal do Brasil, Notícia; e nas revistas Veja, Manchete, Menorah, Fatos & Fotos. Também produziu fotos para capas de discos de artistas aclamados na cena musical brasileira, como Leci Brandão, Antonio Carlos Jobim, Chico Buarque, Tim Maia, Caetano Veloso, Belchior, Gilberto Gil, Raimundo Sodré, Roberto Ribeiro, Fafá de Belém, Raul Seixas, entre outras personalidades.

 

Procissão de São Sebastião do Morro do Salgueiro, de Januário Garcia.

Família e ensinamentos de vida

Januário Garcia Filho nasceu em Belo Horizonte, em 1943. Com um irmão e duas irmãs, é o terceiro filho do casal Geralda e Januário. Aos cinco anos, ficou órfão de pai e aos 10, de mãe. Ele chegou sozinho na cidade do Rio de Janeiro, ainda pré-adolescente, e viveu nas ruas sem nunca ter cometido nenhum delito, até ser tutelado pelo Serviço de Atendimento ao Menor (SAM). E de lá saiu direto para o corpo de paraquedistas do Exército Brasileiro.

Ele foi uma criança bem-educada, criativa, com mentalidade empreendedora, fascinada por imagens e futebol. Aos sete anos, Januário aprendeu um princípio de vida, passado por dona Geralda, sua mãe, que o guiou por toda sua trajetória: “Você tem que aprender a ser plural para tornar-se singular!”. Essa reflexão foi partilhada após a mãe de Januário ouvi-lo em uma discussão com colegas por não querer emprestar a bola, já que, naquele momento, estava doente e, por isso, não ia poder jogar.

“Uma fotografia se completa com o olhar do outro”

Januário Garcia é pai de três filhos e uma filha, e avô. Deixa um legado extenso, que contribui coletivamente para a memória social da luta e das manifestações culturais negras. A luz desse mestre permanece acesa, segue instruindo e iluminando tantas outras trajetórias de vida, seja no campo da pesquisa acadêmica, da fotografia, do jornalismo, da publicidade ou da luta contra as opressões.

Januário Garcia é ancestral e está no orun, esse “infinito lugar onde moram as estrelas”, como ele definia. No último dia 30 de junho de 2021, faleceu em consequência da covid-19. Infelizmente, Januário Garcia não teve a oportunidade de tomar a segunda dose da vacina. Ele se tornou uma entre as mais de 540 mil vítimas dessa doença e da negligência do governo federal diante da crise sanitária. ///

Fotos do acervo de Januário Garcia gentilmente cedidas pela família do artista.

 

Vilma Neres é jornalista, fotógrafa, mestra em relações étnico-raciais pelo Cefet/RJ, onde defendeu a dissertação Trajetórias e olhares não convexos das (foto)escre(vivências): condições de atuação e de (auto)representação de fotógrafas negras e de fotógrafos negros contemporâneos, em abordagem das trajetórias da fotógrafa Lita Cerqueira e do fotógrafo Januário Garcia. Recentemente lançou o livro A escrita com a luz das fotoescrevivências, com enfoque nas práticas fotográficas de Áurea Sant’Anna, Alberto Lima, Dora Sousa, Lázaro Roberto, Lita Cerqueira, Rita Conceição e Sônia Chaves.

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 Site de Januário Garcia

Leci e Januário: escrevivências negras contemporâneas na música e fotografia, de Vilma Neres e Elisângela de Jesus Santos, <em>Ideias</em>, Campinas, SP, v.8, n.2, p.83-112, jul/dez. 2017. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/ideias/article/view/8651267/17480

25 anos 1980-2005: movimento negro no Brasil, concepção, organização e fotografia de Januário Garcia. – 1. ed. – Brasília, DF: Fundação Cultural Palmares, 2006.

 

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