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A história do retrato de Davi Kopenawa e o massacre na aldeia Yanomami de Haximu em 1993

Ormuzd Alves Publicado em: 6 de setembro de 2019

Davi Kopenawa, foto de Ormuzd Alves, aldeia de Homoxi, Venezuela, 1993. Crédito da foto: Ormuzd Alves.

Em agosto de 1993, fomos surpreendidos na redação da Folha de S.Paulo com a notícia de que a aldeia Yanomami de Haximu havia sido dizimada por garimpeiros. Relatos chegados da região informavam que pelo menos 93 índios teriam morrido. Com a roupa do corpo, pois não havia tempo de ir até em casa fazer uma mala (“depois enviamos”, me disseram – e até hoje nada), o repórter Américo Martins e eu partimos para nossa aventura na floresta Amazônica.

Fomos para Manaus num vôo de carreira e, em seguida, subimos num jatinho alugado pelo jornal que nos levou até Boa Vista (RR), aonde chegamos por volta das 22h30. Na manhã seguinte, juntos com a equipe da revista Isto É, aterrissamos de teco-teco numa “pista” improvisada na selva, onde funcionava um posto da Funai (Homoxi). Antes mesmo que eu pudesse me orientar, saber onde iríamos ficar e o que estava acontecendo, guerreiros Yanomami pintados de preto surgiram do meio do mato, portando facões, arcos e flechas.

Com a mesma roupa do dia anterior, de “jet bode” e ao lado de um bando de jornalistas, agentes da Funai, policiais federais e indígenas, comecei a fotografar (nesse caso, atire antes e pergunte depois). Reconheci Davi Kopenawa, liderança Yanomami, e fiz algumas fotos com a atenção voltada para ele. Contrariando a máxima de Robert Capa (“Se suas fotos não estão boas o suficiente, você não está perto o suficiente”), me afastei do grupo de fotógrafos já excitados na frente dos Yanomami e coloquei uma lente 300mm na câmera – uma outra maneira de aproximação. Num determinado momento Davi olhou em minha direção e sua imagem foi capturada.

Parte da equipe dos veículos de comunicação permaneceu em Boa Vista à espera dos filmes vindos da floresta para serem revelados e as fotografias transmitidas, junto com as notas dos repórteres, para as matrizes que deveriam publicar a matéria no dia seguinte. Mas os colegas que confiaram o material a um (hoje famoso) repórter de TV, um dos poucos que naquele dia retornou para Boa Vista, perderam o prazo. Num raro episódio de amnésia temporária, ele esqueceu de fazer com que a encomenda chegasse ao destino certo. Só lembrou de entregar as notas escritas pelos repórteres e os filmes com imagens latentes, querendo ser reveladas ao mundo, lá pelas 22h, após o fechamento dos jornais e de sua matéria ter sido levada ao ar.

Ao contrário dos outros fotógrafos e repórteres, tive a sorte de confiar a tarefa ao “meu” piloto, que entregou os filmes a um outro fotógrafo (chamado Litaiff, se não me engano), freelancer da Folha em Manaus. Mas ele não havia levado o laboratório de revelação necessário para esse tipo de cobertura e também não sabia transmitir uma foto, tarefa trabalhosa na época, (cerca de 21 minutos para transmitir uma imagem colorida). Tivemos, então, que recorrer à lei do menor prejuízo entre concorrentes: ceder a foto para O Globo e eles transmitirem a foto pra gente. Assim foi que, por iniciativa dos editores da Folha e do O Globo, o fotógrafo Gustavo Miranda revelou os filmes e transmitiu as imagens para os dois jornais. Isso aconteceu bem antes do tal repórter com amnésia recuperar a memória, dando chance de Folha e O Globo se salvarem e publicarem imagens da aldeia no dia seguinte.

Américo, eu e alguns colegas de outros jornais permanecemos no posto próximo à aldeia Yanomami por mais cinco dias, com a mesma roupa que saímos de São Paulo. Elas eram lavadas no rio e colocadas no sol para secar – repetimos esse ritual algumas vezes. Os 20 dias seguintes também foram de aventura, voando naqueles “aeromodelos” entre Boa Vista e a floresta, descendo em pistas com pelo menos meio metro de mato e passando apenas a alguns palmos ao lado das árvores a cada pouso e decolagem.

Como nossas malas nunca chegaram, fomos às compras no retorno a Boa Vista. Entre camisetas, cuecas, uma calça e meias, tive que explicar ao jornal a aquisição de um par de chuteiras. Não, não fazíamos um treininho após a cobertura do dia. Só descobri nas andanças no mato que esse seria o melhor calçado para encarar o solo úmido, escorregadio e irregular da floresta (podem perguntar aos “repórteres rolantes” que nos acompanharam).

Bruce Albert (de calção verde), Davi Kopenawa (de calção vermelho), Efrém Ribeiro (de terno preto) e outras duas pessoas não identificadas tentam fazer avião funcionar em Toototobi, foto de Ormuzd Alves, 1993. Crédito da foto: Ormuzd Alves.

De toda a cobertura do evento, o mais bizarro talvez tenha se dado em minha última incursão até a aldeia de Toototobi, no estado do Amazonas, onde foram encontrados alguns dos índios que fugiram de Haximu e que chegaram até ali cruzando a Venezuela. Hoje, olhando o mapa das aldeias, descobri que tudo, na verdade, se passou na Venezuela, devidamente “invadida” por jornalistas, policiais federais, nosso então ministro da justiça Maurício Correia e outros funcionários de órgãos governamentais.

Além da vivência inesquecível que tive com os Yanomami, esse povo divertido, tranquilo e bem humorado, também aprendi que é possível fazer um avião pegar no tranco. Nossa aeronave, normalmente pilotada pelo “Marreco” (apelido do nosso habilidoso piloto), nesse dia foi conduzida pelo “Capitão Gay”, que, por inexperiência com aquele modelo, deixou o avião morrer ao pousar em Toototobi.

Como num filme de Werner Herzog, a imagem insólita permanece: o antropólogo Bruce Albert (co-autor do livro A Queda do Céu junto com Davi Kopenawa), o líder Yanomami Davi Kopenawa e o repórter Efrém Ribeiro (de terno de linho preto) juntaram forças para puxar uma corda enrolada na hélice e assim fazer o avião voltar a funcionar. Ele levaria Albert e Kopenawa para uma outra aldeia e voltaria para nos pegar. E assim foi.

Finalmente voando de volta para Boa Vista, o piloto, olhando o imenso tapete verde da floresta amazônica (que parece interminável, mas só parece…), disse em tom animado: “Foi aqui que eu caí da outra vez”. Deixei o medo de lado e comecei a fotografar os raios da tempestade à nossa frente.

Davi Kopenawa, liderança Yanomami, com pintura de guerra logo após o massacre de Haximu. Foto de Ormuzd Alves refotografada por Andujar, 1993.

“A fotografia é um objeto material, uma coisa que você pode queimar, quebrar ou rasgar. Uma imagem é o que aparece em uma fotografia e o que sobrevive à sua destruição – na memória, na narrativa, em cópias e traços em outras mídias.”

(Mitchell, W. J. T; Image Science)

Entre as milhares de coberturas que fiz nos meus anos de fotojornalismo, por vezes encontro fotografias das quais não tenho recordação, seja dos personagens fotografados, seja dos eventos em si. Por outro lado, algumas imagens permanecem, independentemente da presença da fotografia. A foto que fiz de Davi Kopenawa no primeiro dia daquela cobertura, do que ficou conhecido como “O massacre dos Yanomamis”, é uma dessas imagens. A foto foi publicada na Folha de S. Paulo pela primeira vez no dia 21 de agosto de 1993, em preto e branco. A partir daí a imagem se emancipou de seu suporte original e já foi capa de livros, apareceu em boletins – impressos e online –, filmes e projeções, foi cortada, invertida e re-colorida. A aparição mais recente de que tenho conhecimento foi na exposição e catálogo da deslumbrante exposição A luta Yanomami, de Claudia Andujar [atualmente em cartaz no IMS Rio], o que, de certa maneira, possibilitou que ela ressurgisse nesse espaço.///

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Mais informações sobre a exposição Claudia Andujar: A luta Yanomami

Ormuzd Alves é repórter fotográfico, videomaker e mestre em História da Arte pela Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da UNIFESP. Possui pós-graduação em cinema, vídeo e fotografia pela Universidade Anhembi Morumbi.

 

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