Radar

Esporos de emoção na paisagem do streaming

Daniel Galera Publicado em: 20 de janeiro de 2017

Em meados de 2009, eu queria escutar uma canção da banda americana Spoon e busquei o título da faixa, “Metal Detektor”, no YouTube. Escolhi um dos resultados e o vídeo foi reproduzido automaticamente. A música começou a tocar, mas foram as imagens que primeiro atraíram minha atenção. Um homem emergia da entrada de um porão, abrindo as portas para o jardim e dando de cara com um labrador preto. Durante os 3 minutos e 30 segundos do vídeo, vi o homem se dedicar ao conserto de uma porta corrediça e instalá-la em sua casa. Por alguma razão, o vídeo me comoveu quase às lágrimas. Eu o reproduzi mais algumas vezes, tentando entender a força que exercia sobre mim.

Desde então, este é o meu vídeo favorito da internet. Não é uma ironia nem um modo de dizer. Tuitei o achado e ao longo dos anos o tenho compartilhado com vários amigos. Volta e meia me lembro dele, faço a mesma busca pelo nome da música e o assisto novamente. Eu o chamo de “o vídeo do cara consertando uma porta ao som de Spoon”. Ele não parece ter o mesmo efeito sobre outros espectadores. Tenho certeza de que não se tornou o vídeo favorito de mais ninguém. Mas entendi, de uns tempos para cá, que outras pessoas também são afetadas por vídeos da mesma espécie.

Não faz muito tempo, um amigo disse no Twitter que considerava certo vídeo, apelidado por ele de “vou dirigindo pela estrada, e chove”, com trilha do Teixeirinha, “uma das coisas mais belas do YouTube”. Abri o link. O vídeo, gravado com a câmera de um celular em baixa resolução, mostra uma estrada paranaense filmada através do para-brisa de um carro em movimento, em um dia chuvoso, enquanto a canção “Querendo chorar”, do Teixeirinha, toca no rádio. A música é muito bonita, mas o vídeo não me tocou de nenhuma maneira especial.

Mesmo assim, algumas semelhanças iam surgindo. Indivíduos entregues a tarefas corriqueiras, descritas metodicamente por meio das imagens. Um casamento feliz da imagem com a música (ou o silêncio). Uma estética amadora e, sobretudo, uma curiosa ausência de propósito. Expostos no YouTube, esses vídeos pareciam habitar um limbo entre o público e o privado. Artefatos audiovisuais absurdos que só ganham sentido ao tocar o coração de um espectador específico.

Me dei conta de que eu guardava na lembrança um punhado de vídeos com essas características. Em um deles, uma mãe e suas duas filhas pequenas cantam juntas a canção “Magic Trick”, de M. Ward. Em outro, alguém testa uma nova câmera digital filmando imagens em preto e branco de sombras, nuvens e varais ao som de uma faixa da banda Goldfrapp, “Deer Stop”. Entre semelhanças e diferenças, algo em comum: um efeito emocional marcante e inesquecível, como se aqueles vídeos insuspeitos dissessem algo de tremenda importância afetiva somente a mim, e de maneira pouco evidente, para não dizer obscura. Parece interessante pensar em que contexto essas experiências audiovisuais mínimas, fortuitas e marcantes podem ocorrer.

Do ponto de vista estético, à primeira vista não existem padrões relevantes nesses vídeos, mas há duas exceções importantes. A primeira diz respeito à imagem. Nunca se trata de vídeos em alta resolução ou com produção sofisticada. Apresentam baixa resolução e são amadores, captados com celulares ou câmeras digitais baratas. São takes únicos, sem edição, ou então filminhos minimamente editados e montados com aplicativos simples, voltados ao usuário doméstico, que oferecem uma cartela limitada de filtros, efeitos de transição e ferramentas de corte.

A segundo padrão é a trilha sonora. Os vídeos de que estou falando sempre trazem como trilha sonora uma canção na íntegra, não raro de bandas de indie rock ou cantores/compositores populares. A música não é um detalhe. Pelo contrário, muitas vezes parece que a música vem antes das imagens, e que os vídeos são clipes ou vinhetas que buscam expressar o encanto de seus autores por aquela trilha sonora. Na verdade, todos os meus videozinhos afetivos foram encontrados no YouTube a partir de buscas pela faixa que lhes serve de trilha sonora.

Daí constatamos não somente que a música é essencial para o efeito provocado, colocando uma afinidade de gostos musicais como ponto de partida, mas também que seu conteúdo visual nos aparece de surpresa. Os vídeos de que estamos falando não chegam a nós porque o algoritmo do YouTube os sugere com base em nossos hábitos de navegação anteriores ou porque procuramos conteúdo visual de um tipo específico. Nosso encontro com eles parte do desejo de ouvir determinada canção ou artista, e daí em diante é fortuito. A canção da trilha é a chave para uma porta secreta. Os vídeos surgem como corpos estranhos em nossa navegação customizada. Estamos, assim, vulneráveis a eles de uma maneira bem especial. Despreparados. E isso os torna excepcionais.

Começamos a entrever o contexto técnico e social da fruição desses vídeos. No ensaio “Em defesa da imagem ruim”, publicado no número 19 da revista serrote, Hito Steyerl elogia as imagens em baixa resolução como alternativa popular ao fetiche da alta resolução imposto pelo capitalismo. “As imagens ruins são ruins porque foram comprimidas e viajam muito mais depressa”, escreve Steyerl. “Elas perdem matéria e ganham velocidade. Mas também expressam uma condição de desmaterialização compartilhada não apenas com o legado da arte conceitual, mas principalmente com os modos contemporâneos de produção semiótica.” Se por um lado a imagem de baixa qualidade “opera contra o valor fetichizado da alta resolução”, por outro “se integra perfeitamente ao capitalismo informacional”.

Em outras palavras, o cidadão comum com acesso à internet adquiriu os meios de produzir as próprias imagens e divulgá-las, deixando de ser mero espectador submisso a modos de produção elitistas. Mas subir um vídeo para o YouTube – ou para o Vimeo, Twitter, Instagram, Tumblr – também significa dissolvê-lo no ecossistema da informação digital, sujeitando-o a algoritmos e cessão forçada de direitos autorais. O indivíduo se expressa, grava a estrada chuvosa com os limpadores e faróis dos outros carros descrevendo seus movimentos previsíveis, edita o melhor que pode as imagens do conserto da porta corrediça, escolhe a música, mas o vídeo some em meio a clipes de hip hop e virais de bebês gargalhando. Não são exemplos aleatórios: o clipe de hip hop representa o mesmo bom e velho espetáculo consumista das mídias tradicionais, agora convertido ao padrão digital. O viral de bebê gargalhando representa a homogeneidade da vida privada que vem à tona na era das câmeras de celular. As plataformas a que o usuário comum tem acesso são regidas por visualizações, curtidas e publicidade. A experiência humana filtrada por algoritmos se revela repetitiva e se banaliza em memes. Os singelos gestos de comunicação que não interessam à semiotização capitalista raramente aparecem na guerra por visibilidade. Até que alguém digita o nome de uma música que quer ouvir e recebe algo inesperado, aparentemente sem propósito, mas que fala direto a sua alma.

As obras da artista americana Natalie Bookchin exploram essas contradições do meio digital para tentar encontrar sentidos de coletividade a partir de vídeos postados por internautas. No texto “Out in Public”, parte do livro No Internet, No Art: A Lunch Bytes Anthology, discorrendo sobre o próprio trabalho, Bookchin afirma que, em nossas redes “inundadas de sentimentos”, os vídeos postados “são feitos para serem vistos, mas se tornam quase invisíveis ao quicar de tela em tela, dando seus últimos suspiros nos imensos bancos de dados em expansão, mantidos por corporações que controlam as plataformas e decidem como e por quanto tempo a informação poderá ser acessada e usada, baseando-se em margens de lucro e intimações do governo”. Seu método consiste em vasculhar os arquivos de vídeos digitais sem recorrer a algoritmos, selecionando à mão, atenta à informação menosprezada pelos grandes bancos de dados.

Natalie Bookchin, Meus remédios, parte da obra Testamento, 2009.

Em Testamento (2009), Bookchin orquestra fragmentos de diários em vídeo (vlogs) para compor uma espécie de coro grego em que as narrações pessoais dos indivíduos se encontram. Às vezes a sobreposição de vozes ressalta temas, frases e expressões que se repetem. Outras vezes, são as contradições que assomam. O efeito é tocante e um pouco sinistro, como se as imagens e áudio em baixa resolução nos dessem acesso a um além-mundo digital de existências disponíveis para pesquisa e comparação. Me interessa um comentário da própria artista sobre essa obra: “Uma das premissas de Testamento é que as ‘mídias sociais’ não são de fato sociais: YouTube, Facebook e outras das chamadas plataformas de mídia social têm uma estrutura que privilegia o indivíduo. Elas oferecem uma plataforma em que os indivíduos competem por popularidade e produzem juntos uma cacofonia de vozes que gritam umas para as outras sem serem ouvidas”.

Natalie Bookchin, Despedidos, parte da obra Testamento, 2009.

Proponho que o meu vídeo do cara consertando uma porta ao som de Spoon, assim como vídeos semelhantes que provocam emoção forte e exclusiva a outros internautas, configura um instante de encontro genuíno nesse território digital de vozes individuais gritando sem serem ouvidas. Seu apelo é exclusivo (o efeito dificilmente será reproduzido se qualquer outra pessoa assistir ao vídeo) e emergente (não era a intenção do autor do vídeo provocar esse efeito naquele indivíduo, e ele provavelmente nem teria o know-how técnico e a consciência para perseguir tal coisa). Esses vídeos não são arte nem diários confessionais. Apresentam rudimentos de construção estética ou narrativa, mas não o bastante para que carreguem significado ou intenção. Não têm carga significativa de carência ou narcisismo, tampouco um desejo calculado de obter popularidade ou ganho simbólico e financeiro. Ser afetado por um deles é como entrar na cabeça de uma pessoa no exato momento em que a lembrança de uma canção favorita, associada a uma experiência íntima, a toma de assalto e a emociona.

O efeito de um vídeo desses, já deve estar claro, depende de um aporte da intimidade de quem o assiste. Aquele meu amigo que se emociona com o vídeo do carro percorrendo a estrada ao som de Teixeirinha não apenas gosta da música de Teixeirinha, mas também descobriu, muito tempo depois de assistir ao vídeo pela primeira vez, que o trecho de estrada chuvosa que aparece nas imagens estava situado bem na região de origem do ramo paranaense de sua família. Estava ali no texto do vídeo. As emoções evocadas foram complexas. E em outro vídeo afetivo que este mesmo amigo me mandou, com imagens do mar e gaivotas a partir da proa de um barco, ao som de “I Found a Reason” da Cat Power, o próprio autor escreve na descrição do rodapé: “Este não é um clipe de música, e sim um diário que comecei para tentar lembrar de momentos que foram importantes pra mim. (Para mim mesmo.) A canção e o cenário atuam como gatilhos, trazendo memórias e sentimentos trepidantes. Filmar acabou sendo mais fácil que escrever, acho…”. É um raro caso de articulação de intenções desse tipo de postagem caracterizada por uma ausência tocante de método e ambições.

Nesse sentido, a obra de Bookchin que mais se aproxima da qualidade que tento isolar aqui é Estacionamento (2008). Nessa compilação de 12 minutos de vídeos amadores captados em estacionamentos de lojas e shopping centers, a grande variedade de pessoas e situações é amalgamada não apenas pelo cenário em comum, mas também pela singeleza e espírito de diversão das atividades registradas. Em contraste com outras obras da artista, os personagens não estão se confessando, compartilhando dores ou ironizando seus dramas, tampouco discutindo questões de segregação, alienação e exclusão social. Estão andando de skate, cantando e dançando, escalando muros, incendiando carrinhos de supermercado, derrapando automóveis. Em vários momentos, a trilha sonora incidental se casa com a imagem para criar sensações semelhantes àquela que encontro no vídeo do cara consertando a porta ao som de Spoon.

Natalie Bookchin, Estacionamento, 2008.

E por que o vídeo do cara consertando a porta, entre tantos vídeos com que topei em minha vida de internauta, me afetou tanto? Nunca decifrei por completo, mas eu costumava escutar aquela música do Spoon em momentos de devaneio do tipo olhar-pro-teto em casa, e também correndo, quando pensamentos e reflexões ficam à solta. A dedicação do sujeito em consertar a porta – apertar parafusos, ajustar e limar peças, testar o resultado – se estende ao cuidado com que posiciona a câmera em superfícies próximas ou a segura na mão para registrar cada etapa do trabalho. O dia está bonito. Tem aquele cão que surge de vez em quando, ofegando e recebendo afagos. E o momento de pausa para o café, cuja preparação é filmada com a mesma placidez descritiva das demais atividades. E o título do vídeo, uma piadinha com consertos domésticos e indie rock. Acho que a autossuficiência do sujeito, o fato de que está o tempo todo sozinho, também me afetou na época em que assisti, morando sozinho em Garopaba, em relativo isolamento social. Singeleza, solidão, dedicação, um cão, a trilha sonora de momentos de reflexão, todas são pistas para a emergência de uma emoção que me faz, ainda hoje, rever o vídeo de vez em quando.

O fenômeno dos vídeos amadores que nos tocam surge menos de sua estética e conteúdo, e mais do fato de que são um acontecimento estranho no fluxo permanente de interação com o conteúdo audiovisual das redes. Não há como produzi-los intencionalmente, não há como procurá-los de propósito. Não há como promovê-los ou obter recompensa simbólica ou material a partir deles. São esporos de emoção potencial flutuando nas correntes de informação. São experiências secretas, insolúveis na lógica capitalista do compartilhamento de conteúdos na rede. É preciso se expor ao tédio e à falta de propósito para encontrá-los, e é preciso se despir de expectativas e ambições para produzi-los. Prefiro vê-los como dádivas, geradas quase sem intenção, mas que fazemos bem em receber com gratidão, acrescentando-lhes, sempre que a emoção pedir, mais uma visualização.///

 

Daniel Galera é escritor, tradutor e ensaísta. Autor, entre outros, dos romances Meia-noite e vinte Barba ensopada de sangue (publicados pela Companhia das Letras) e do ensaio “Virando o jogo”, publicado na revista serrote, sobre a narrativa dos videogames.

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