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Livro detalha a cronologia da vida e da obra de Marc Ferrez

Publicado em: 30 de julho de 2019

Autocromo Morro Dois Irmãos a partir da praia do Leblon, de Marc Ferrez, Rio de Janeiro, c. 1912. Coleção Gilberto Ferrez/ Acervo Instituto Moreira Salles.

Originalmente previsto como uma pesquisa para uso interno do IMS, o livro Marc Ferrez – Uma cronologia da vida e da obra, escrito pela pesquisadora Ileana Pradilla Ceron, lista episódios importantes da vida de Ferrez e mapeia sua obra. Além disso, a cronologia relaciona “esse corpo de informações aos universos simultâneos e variados nos quais o fotógrafo se insere. A pesquisa durou dois anos, sempre tendo como norte que os passos do fotógrafo se davam numa sociedade específica e num momento histórico concreto”, comenta Ceron.

ZUM conversou com Ileana Ceron sobre a pesquisa que levou até o livro e alguns aspectos de destaque da vida de Marc Ferrez.

 

Panorama Parcial do Rio de Janeiro, de Marc Ferrez, Rio de Janeiro, c. 1885. Coleção Gilberto Ferrez/ Acervo Instituto Moreira Salles.

 

Como surgiu a ideia de publicar um livro com a cronologia da vida e da obra do Marc Ferrez?

Ileana Pradilla Ceron: O projeto inicial era o de elaborar uma cronologia para ser utilizada como referência sobre a vida e a obra do fotógrafo,  dentro do próprio IMS. Não nasceu para ser um livro, embora tivéssemos a ideia de disponibilizá-la ao público.  O IMS é uma instituição de memória e detém o principal acervo de fotografia no país. Tem a responsabilidade não apenas de preservar a obra dos autores que guarda em seu acervo, mas também de zelar pela acuidade das informações sobre eles. Quando alguém pesquisa referências sobre Marc Ferrez, por exemplo, provavelmente procurará primeiro o que o IMS publicou ou divulgou sobre ele. Daí a necessidade dessas informações serem conferidas, revisadas e, sobretudo, de fornecerem suas fontes, para que outros possam dar continuidade à pesquisa, contestar dados, se for preciso.

Em suma, para que a qualidade dessas informações possa ser melhorada com o tempo. A qualquer momento podem surgir novas fontes  que ajudem a esclarecer lacunas, ou que coloquem em questão informações já sedimentadas. Por isso a  cronologia não é um trabalho pronto, mesmo publicada, mas um processo cumulativo e de revisão constante. Costumo dizer que ela não é um ponto de chegada, mas de partida.

Além de listar episódios da vida de Ferrez e de mapear sua obra, a cronologia ficaria capenga se não relacionasse esse corpo de informações aos universos simultâneos e variados nos quais o fotógrafo se insere. A pesquisa durou dois anos, sempre tendo como norte que os passos do fotógrafo se davam numa sociedade específica e num momento histórico concreto.

A exposição Marc Ferrez: Território e Imagem,  inaugurada no IMS Paulista em março deste ano, foi uma oportunidade para publicar esse trabalho, não como resultado da mostra, mas como um instrumento de pesquisa sobre o fotógrafo.

 

Paul Ferrand no pico do Itacolomi, de Marc Ferrez, Ouro Preto, MG, c .1888. Coleção Gilberto Ferrez/ Acervo Instituto Moreira Salles.

Como o livro se relaciona com a exposição atualmente em cartaz no IMS Paulista?

IPC: A cronologia não foi realizada especificamente para a exposição, mas estava muito adiantada quando a mostra começou a ser organizada. Acredito que tenha sido um instrumento relevante para a curadoria, pois forneceu informações para precisar as datas e contextos de produção das obras. Ajudou também a esclarecer dúvidas sobre a autoria de algumas fotografias,  e forneceu fontes para melhor compreender a relação entre conjuntos de obras que eram vistos de forma independente. A pesquisa levantou ainda algumas redes de relações e contextos de Ferrez, que ampliaram a compreensão e as possibilidades de estudo sobre ele.

Para ilustrar melhor o que disse acima, vou dar um exemplo. Durante muito tempo foram atribuidas a Ferrez as imagens da expedição que trouxe o meteorito do Bendegó da Bahia ao Rio de Janeiro. Graças à cronologia foi possível entender que Ferrez não esteve presente nessa viagem, e que as fotografias são de autoria de um membro da Comissão, o engenheiro Humberto Antunes. Sabemos, também pela pesquisa, que Ferrez era um interlocutor de Antunes e de vários outros profissionais sobre técnicas fotográficas. Ele forneceu, como comerciante e profissional, materiais e equipamentos para importantes expedições; montou laboratórios fotográficos relevantes, como o do gabinete que registrou a construção de Belo Horizonte, ou da comissão de Alto Purus, chefiada por Euclides da Cunha. Muitas fotografias que não foram realizadas por ele, tem sua presença, como consultor ou fornecedor.

A pesquisa ajudou também a compreender como a própria trajetória de Ferrez vai se transformando com o tempo, de fotógrafo de importantes encomendas de engenharia a grande comerciante e difusor da fotografia e do cinema no país.

 

Ilha de Paquetá, de Marc Ferrez, Rio de Janeiro, c. 1885. Coleção Gilberto Ferrez/ Acervo Instituto Moreira Salles.

Quais são os eixos que organizam a cronologia? E como foram definidos? 

IPC: A cronologia se estrutura em quatro partes: 1797-1842/ Os Ferrez, o começo no Brasil: Arte e Indústria; 1843-1867/Marc Ferrez e as lacunas biográficas; 1868-1906/Ferrez, o fotógrafo profissional no Brasil e 1907-1923/ Novos caminhos: o negócio do cinema, Europa e a fotografia como experiência. As duas primeiras antecedem ao surgimento de Ferrez enquanto fotógrafo profissional e buscam dar conta de seus contextos familiares e sociais. As duas últimas tentam mapear a trajetória profissional do fotógrafo e situar o processo de construção de sua obra, assim como entender o seu lugar na sociedade da época.

É sempre difícil definir o período de abrangência temporal de uma pesquisa de cunho biográfico. Acredito que, no caso de Ferrez, era fundamental ir até o nascimento de seu pai, compreender quem foi Zeferino Ferrez, que background ele trazia da França, o que ele realizou no Brasil. Foi importante também levantar o contexto  familiar em que Marc viveu, assim como explicitar algumas das lacunas sobre momentos de sua vida que ainda permanecem sem resposta definitiva.

Certos discursos vão se sedimentando com o tempo, e por vezes acabam por ficar muito simplificados. Na biografia de Ferrez sempre se destacou que seu pai era membro da Missão Artística Francesa. Essa visão construiu uma ponte direta entre o Ferrez fotógrafo e seu pai artista. Essa relação existe, de fato. Mas com isto deixamos de olhar para um outro lado, não menos importante de Zeferino: o do homem obsessivo que se dedicou, sem muito sucesso,  à implantação de duas indústrias no país, entre 1830 e 1850. Acabamos deixando de lado uma vivência que Marc Ferrez teve em sua infância: a experiência da máquina, dos processos industriais. A industrialização é um aspecto que também tem ligação direta com a fotografia e que está muito presente na obra de Ferrez.

 

Palácio do Governo, de Marc Ferrez, São Paulo, c. 1892. Acervo Instituto Moreira Salles.

Entre o final do século 19 e início do 20, Marc Ferrez presenciou um momento único de fatos históricos e revoluções tecnológicas importantes. Você destacaria algum deles?

IPC: A vida e a trajetória profissional de Ferrez foi muito longa. Viveu por 80 anos e trabalhou durante seis décadas. Quando Marc nasceu, em 1843, o Segundo Reinado estava apenas começando. No inicio de sua vida profissional, em fins dos anos 1860, o Brasil estava em plena guerra contra o Paraguai. Quando o conflito terminou em 1870, embora vitorioso, o Império entrou numa aguda crise que conduziria à sua queda em 1889. Ferrez fotografou as comemorações pela vitória brasileira nessa guerra, fez retratos da família imperial, e continuou atuante durante a República, registrando festas republicanas e eventos, como a vitória da marinha nacional contra os insurgentes na Revolta da Armada.

Passou pela abolição da escravatura, registrou a economia do café, a construção e a ampliação de ferrovias, a modernização dos portos,  a transformação urbana do Rio de Janeiro. Quando faleceu, em 1923, as revoltas tenentistas começavam a balançar a primeira república e a Semana de Arte Moderna de 1922 arrepiava a ordem acadêmica. Estávamos às portas da Revolução de 1930.

No âmbito tecnológico, Ferrez nasceu quando a fotografia estava engatinhando. Já como profissional, passou pelo uso do colódio úmido e seco e vivenciou, nos anos 1880, a introdução dos negativos industrializados de gelatina-prata,  uma verdadeira revolução que permitiu que a fotografia se tornasse, de fato, instantânea. Ferrez ainda assistiu à introdução do negativo flexível e da máquina Kodak, que popularizaram mundialmente a fotografia recreativa. Realizou também, no final da vida, fotografias coloridas usando o processo denominado autocromo e testemunhou a invenção do cinema, para ele decorrência natural da fotografia. Mais importante ainda, tornou-se agente de sua difusão no Brasil.

Por último, outra transformação da qual tirou partido foi a introdução, no final do século XIX e início do XX,  de processos fotomecânicos para impressão gráfica que permitiram a difusão da fotografia em larga escala, em jornais, livros e revistas, assim como em cartões postais, fato que mudou definitivamente a linguagem da comunicação visual e o lugar da imagem no mundo moderno.

 

Autorretrato de Marc Ferrez com cerca de 36 anos de idade, de Marc Ferrez, Rio de Janeiro, c. 1879. Coleção Gilberto Ferrez/ Acervo Instituto Moreira Salles.

O livro é direcionado a algum público específico?

IPC: Acredito que o livro seja de interesse, prioritariamente, dos admiradores da obra de Ferrez e dos estudiosos da fotografia brasileira na passagem do século 19 para o  século 20. Contudo, Marc Ferrez foi muito mais do que um grande fotógrafo. Pertenceu a diversos contextos sociais, econômicos e intelectuais. Foi importante difusor do cinema país afora, testemunhou processos fundamentais da vida do país e foi interlocutor de poderosos agentes que lideravam as transformações técnicas e científicas na época. A riqueza de sua obra, e os acontecimentos de sua longa vida,  também podem interessar aqueles que tem curiosidade ou pesquisam a história social e cultural brasileira desse período.///

Mais informações sobre a exposição Marc Ferrez: Território e Imagem aqui.

 

Ileana Pradilla Ceron nasceu em Bogotá, Colômbia. É formada em artes cênicas, com pós-graduação em história da arte e da arquitetura e mestrado em história social da cultura. Atualmente é responsável pelo Núcleo de Pesquisa em Fotografia do Instituto Moreira Salles.

 

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