Notícias

Retrospectiva 2021: curadores, artistas e pesquisadores apontam destaques na fotografia e no audiovisual

Audrey Furlaneto Publicado em: 10 de dezembro de 2021

 

Ainda em meio à pandemia, o ano de 2021 foi marcado pelo retorno gradual às exposições tradicionais em instituições de arte – de mostras individuais, como a de Antonio Dias, no Instituto de Arte Contemporânea (SP), a coletivas, como a Bienal de São Paulo. Seguiram fortes também as criações online, como a de Nuno Ramos para o Sesc ou o The Journal Collective, um coletivo global de fotógrafas mulheres no Instagram. A jornalista Audrey Furlaneto perguntou aos curadores, artistas e pesquisadores Daniela Moura, Denilson Baniwa, Fabiana Moraes, Hélio Menezes, Marcela Vieira e Naine Terena quais os destaques do ano na produção fotográfica e audiovisual. Confira abaixo as respostas.

 

Fotografia da série Bori, de Ayrson Heráclito, 2008-2011

Ayrson Heráclito – Yourùbáiano

Com curadoria de Marcelo Campos, no Museu de Arte do Rio (MAR), a exposição individual reune trabalhos recentes e históricos de Ayrson, nos quais o candomblé surge como orientação visual, espiritual e, sobretudo, um conceito-matriz de criação – com destaque para a performance Bori, um dos momentos mais sensíveis e emocionantes que vivi nos últimos anos dentro de um museu. Ayrson é, sem dúvida, o ‘pai’ de toda uma geração de artistas e curadores que lhe têm, com razão, como referência maior.

 

Foto da Trienal do Sesc Sorocaba – O rio é uma serpente. Crédito: Matheus José Maria.

Trienal do SESC Sorocaba – O rio é uma serpente

Com curadoria de Beatriz Lemos, Diane Lima e Thiago de Paula Souza, a mostra coletiva O rio é uma serpente uniu questões de racismo ambiental e dissidências de práticas artísticas, propondo diálogos originais e instigantes entre trabalhos comissionados a jovens nomes da cena contemporânea – como Luana Vitra, Laís Machado, Denilson Baniwa, Davi Pontes & Wallace Ferreira – e obras de grande sensibilidade e força política de nomes já consagrados, como Dalton Paula, Paulo Nazareth e Rommulo Vieira Conceição. Destaque para o extenso e intenso programa público da mostra, um material de pesquisa indispensável para se pensar criticamente o momento em que vivemos.

Hélio Menezes é antropólogo, curador e crítico de arte

 

 

Fotografia de Antonio Dias com marcas de edição para a revista Fatos e Fotos, c. 1965. Fotógrafo não identificado.

Antonio Dias – Antonio Dias / Arquivo / O lugar do trabalho

A exposição Antonio Dias / Arquivo / O lugar do trabalho, organizada por Gustavo Motta no Instituto de Arte Contemporânea (IAC), proporciona acesso múltiplo às obras de Antonio Dias (1944-2018). Fazendo jus ao próprio ambiente expositivo, ou seja, o instituto, que hoje acolhe e disponibiliza à pesquisa material de arquivo de Antonio Dias, a curadoria tornou possível um avizinhamento — complementar, contextual, complexificador — da obra com sua intenção política, com suas minúcias processuais, com seu desfecho estético. A expografia, proposta pelo também artista Deyson Gilbert (a informação é relevante quando há afinidade artística, como é o caso), nada tem, porém, de didatismo e não garante a interpretação das obras, cujo enigma sobrevive e perdura. Em um dos documentos presentes na exposição, Dias, ao definir pontos característicos de sua pintura, escreve: “A obra não como interpretação da realidade percebida pelo artista, mas como instrumento para ação mental que coloca o espectador em condições de realizar a sua própria interpretação da realidade”. Redigido em um documento de 1972, esse ensinamento, portanto, não envelhece diante do legado visual ou discursivo desse artista.

 

Frame do vídeo da apresentação Os desastres da guerra, de Nuno Ramos, parte do projeto A extinção é para sempre, 2021

Nuno Ramos – A extinção é para sempre

Artista inesgotável, Nuno Ramos está atento ao seu tempo. Seja enquanto cidadão inconformado com a realidade política e social do país, seja enquanto artista insaciável a buscar recursos para que sua obra aconteça. Daí a variedade de sua produção, que vai da poesia à pintura, passando por textos ensaísticos, teatro, desenho. Daí sua constante presença e atuação em contextos tão díspares e plurais. Nestes últimos anos, chama atenção em sua produção a incorporação de outras vozes, somando-se à sua própria, pronunciado desejo de realização coletiva. Projeto realizado em 2021 junto ao Sesc, A extinção é para sempre é um desses exemplos. Reunindo três obras teatrais de apresentação ao vivo e online (que podem ser visualizadas posteriormente), e uma chama considerada monumento, também transmitida em tempo real ao longo de um ano, Nuno trouxe coreógrafos, atores, dançarinos, diretores, a participarem ativamente de suas peças, bem como outros coletivos ao redor do mundo, e até mesmo o público, que é interpelado a propor interferências ou criações temáticas. O caráter interativo condiz ao ambiente virtual, e a proposição, realizada a tantas vozes, deixa a obra se infiltrar por referências das mais diversas, configurando uma obra atravessada por vetores autorais e midiáticos.

Marcela Vieira é curadora de arte digital, cocriadora da plataforma aarea.co e editora da revista Rosa

 

 

Frame do vídeo HeadHandEye, de Hanni Kamaly

Hanni Kamaly – HeadHandEye

Unindo cinema, publicidade, pintura, emojis, documentos, monumentos e dezenas de outras mídias/suportes, a artista norueguesa teve o vídeo HeadHandEye exposto na 34ª Bienal de São Paulo. Criou um trabalho incrível nessa crítica à racionalidade moderna, à ideia torta de “civilização” e o seu desenho estruturante: desfilam ali, enquanto ela narra/costura informações sobre as três partes do corpo usadas justamente na feitura desse desenho, homens prezados por “heroísmos” como decapitar e amputar pessoas indígenas e negras. Desfila ainda a ciência que perscrutava cérebros dessas mesmas populações em busca de provas de seus supostos desvios e inferioridades.

 

Vista dos retratos de Frederick Douglass na 34ª Bienal de São Paulo. © Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

Fotografias de Frederick Douglass

Tenho uma quase obsessão pela fotografia, e em particular as fotografias de si, dos espaços próprios, de tudo o que é enquadrado e publicizado para representar um eu. Não foi à toa que passei mais de quatro anos estudando celebridade e pobreza. Não é também à toa que as dezenas de fotos de Frederick Douglass expostas na 34ª Bienal de São Paulo até agora reverberam em mim. Como diz o texto curatorial, o intelectual e ativista norte-americano saído de um contexto de escravidão para se tornar um dos nomes centrais na História dos EUA, prezava a fotografia e deixava-se registar sempre em determinadas poses, com determinadas roupas. Altivo, bonito, orgulhoso, feliz. Era uma forma de quebrar as imagens do povo preto que eram espraiadas e assimiladas então. Douglass é considerado a pessoa mais fotografada naquele país no século 19: estima-se que foram mais de 160 registros. Para ele, a fotografia era uma arte democrática – escreveu ensaios nos quais defendia que ela podia levar autoconfiança aos oprimidos. Estava certíssimo e antevia, de alguma forma, o que se passa hoje em plataformas como o Instagram. Como disse o artista Alfredo Jaar, que encontramos nos corredores da Bienal pouco depois de passar pelo belo conjunto de imagens de Douglass, o intelectual é de certa maneira o pai das primeiras selfies: ângulos bem estudados, mensagens muito específicas, controle máximo da própria representação. As imagens de si, tão comuns hoje e muitas vezes entendidas como mero exercício do ego, são instrumentos de restaurar existências muitas vezes fragmentadas. As imagens de si, principalmente para pessoas a quem foram oferecidas as sobras, são maneiras de perpetuar passagens diversas pela terra – são formas de garantir um certo futuro para quem não tem imagens do passado. As imagens de si são armas poderosas na disputa contínua em uma sociedade que nos oferece um leque muito específico de pessoas e modos de vida. Das pessoas que merecem ser vistas. Das pessoas que vemos mortas ou em sofrimento. Douglass, um homem brilhante, estava atento. Usou a fotografia como uma máquina do tempo e é por isso que hoje podemos encontrá-lo. Altivo, bonito, orgulhoso, feliz. Salve, Frederick.

Fabiana Moraes é jornalista, professora e pesquisadora.

 

 

Frame do vídeo Covid-19: Elemento Estranho, de Graci Guarani

Graci Guarani – Covid-19: Elemento Estranho

Este trabalho se realizou durante a pandemia, trazendo como foi a chegada da pandemia da Covid-19 no território Pankararu, no sertão de Pernambuco, e as estratégias que a comunidade indígena criou para enfrentar o vírus, como as barreiras sanitárias. Por que é importante? Porque, assim como os Pankararu, diversos povos diante do caos reforçaram o entendimento de coletividade dos indígenas, retomaram suas próprias tecnologias de manutenção da vida, refletiram sobre a importância delas, diante da situação extrema e da precariedade no atendimento e divulgação da doença. Um vídeo que reforça a capacidade de articulação dos povos indígenas em se autoavaliar e continuar suas trajetórias. Você pode ver o vídeo AQUI.

 

Frame do vídeo Recado do bendegó, de Gustavo Caboco, 2021

Gustavo Caboco – Kanau’kyba (Kaminhos das pedras) e Recado do bendegó

O conjunto da produção de Gustavo Caboco para a 34ª Bienal de São Paulo é uma imersão no campo de estudos da vida e da obra do artista. Essa produção audiovisual me chama a atenção porque caminha no campo do não-documental, uma experiência que surge aos poucos entre os cineastas indígenas do Brasil, que, por formação, têm a pegada do documentário clássico muito forte. Gustavo faz a mescla com a animação para propor a narrativa, contando histórias e trazendo ao público um pouco do seu universo criativo.

 Naine Terena é artista, curadora e educadora.

 

 

Foto de Alinne Rezende (@linnirezende), publicada no Instagram do projeto The Journal Collective

The Journal Collective

O projeto surgiu como um espaço em que fotógrafas pudessem compartilhar histórias das regiões onde atuam, bem como suas próprias experiências durante a pandemia. A iniciativa é das fotógrafas Charlotte Schmitz (Alemanha) e Hannah Yoon (EUA), integrantes da plataforma Women Photograph.  O resultado é um coletivo de abrangência global com mais de 350 mulheres e pessoas não binárias, incluindo as brasileiras Cris Veit, Camila Falcão, Alinne Rezende e Isabella Lanave, que, por meio da fotografia e das plataformas digitais, construíram um grande diário com densidade visual, em que os universos do documentário e da vida privada se misturam. No momento atual, em que as nossas experiências são em grande parte mediadas por telas, saturadas de imagens e informações, The Journal explora com maestria a possibilidade de produção e circulação em rede, com o uso assertivo do papel da curadoria. Recentemente, além do perfil do Instagram, o coletivo também inaugurou um site, que certamente vale a pena conhecer.

 

Projeto Dobradiça: fotolivros Dünya e Um livro sobre amor sapatão

A fotografia e o fotolivro emergem de um processo coletivo e polifônico. A partir da troca de indicações de escritoras nordestinas, as artistas visuais e pesquisadoras Mariana David (BA) e Marília Oliveira (CE) produziram duas narrativas em livro. Dobradiça – mecanismo de articulação entre duas partes – faz jus ao nome do projeto, uma vez que potencializa o fazer artístico por meio do diálogo entre linguagens, artistas e territórios.

Em Dünya, Mariana nos convida a observar a magnitude dos movimentos e pulsões da terra. A partir dessas paisagens, reflete sobre os processos de migração e deslocamento humanos, que marcaram a vida de seus bisavós, imigrantes da Turquia, e também sobre a interdição e vigilância desses movimentos. Ao soltar o elástico que reúne as páginas e desmembrar o livro, quem lê pode experimentar se movimentar por seu próprio caminho.

Um livro sobre amor sapatão é uma bonita e íntima homenagem de Marília ao amor. Memórias de outros casais se somam às imagens do seu próprio relacionamento na construção de um álbum de família coletivo, que reivindica o afeto e a intimidade diante do erotismo e violência que marcam as representações sobre as mulheres lésbicas.

Daniela Moura é fotógrafa e pesquisadora

 

 

Pôster da série Sou índio, sou moderno, de Carlos Magalhães

Carlos Magalhães – Sou índio, sou moderno

Trata-se de uma série (de 13 episódios, com cerca de 30 minutos cada) que entrevistou vários indígenas no Brasil para tratar desse tabu do índio moderno. É um trabalho artístico e documental, que ficou bem bonito e ganhou prêmios em festivais pelo mundo, além de ser muito importante, para nós, que tenha sido feita. Carlos Magalhães trabalha com questões indígenas há algum tempo. Conversamos sobre essa ideia de o índio perder sua cultura ao usar celular, essas bobagens que costumamos ouvir. A roteirista Renata Tupinambá começou a trabalhar nessa série, e Carlos Magalhães convidou vários indígenas para trabalhar e para serem entrevistados. É um outro ponto de vista sobre a presença indígena no Brasil. Na série, tem desde intelectuais, como Ailton Krenak, a artistas, como Jaider Esbell e Daiara Tukano. Um bom panorama da presença indígena no Brasil atualmente, muito importante num momento em que essas populações estão muito marginalizadas. Pode ser vista na programação do canal Cine Brasil TV.

 

Foto de trabalho da residência artística de Denilson Baniwa e Gustavo Caboco no Museu Paranaense. Crédito: Richard Romanini/MUPA

Gustavo Caboco e Denilson Baniwa – Retomada da imagem

A convite do Museu Paranaense, o MUPA, eu e Gustavo Caboco fizemos uma análise do acervo fotográfico da instituição. Eu já tenho feito isso em arquivos de instituições de outros lugares, mas foi a primeira vez que fiz no Brasil. O projeto resultou numa minirresidência, em que convidamos cinco mulheres indígenas para olhar esse acervo conosco e identificar as pessoas que estão nas fotografias, a fim de pensar a produção desse registro fotográfico etnográfico a partir do momento em que vivemos. Como, enquanto indígenas, podemos reconstruir essas imagens ou construir outras imagens? O MUPA tem várias coleções de fotografia, e nós chamamos pessoas de etnias que vivem ali, indígenas mais velhos também. A maioria das fotografias data de 1958 e 1960. Então, encontramos parentes vivos das pessoas fotografadas. Fomos identificando e refazendo as legendas das fotos, tanto repensando o modo de apresentação desse acervo, quanto refazendo e fotografando, por exemplo, os netos de pessoas fotografadas. Em outros momentos, fizemos cópias das fotografias e fomos manipulando analogicamente. Trabalhos criados ao longo da residência podem ser vistos no MUPA e, em 15 de dezembro, inauguramos lá uma exposição a partir desse projeto.

Denilson Baniwa é artista, curador, designer, ilustrador, comunicador e ativista dos direitos indígenas. ///

 

Audrey Furlaneto é jornalista e trabalhou nas principais redações dos principais jornais do país. Colaborou para revistas como piauí e Época e atuou na fundação do Canal Meio e do portal Hysteria. Especializou-se em História da Arte pela New York University (NYU).

 

Tags: , , ,