Livros

Autora destrincha o papel da fotografia e do turismo na construção do homem moderno

Mauricio Puls Publicado em: 6 de fevereiro de 2017

A “sociedade do espetáculo” dissecada por Guy Debord se transformou hoje em uma imensa acumulação de selfies. Nossas redes sociais, contudo, só levaram ao extremo um hábito mais antigo: tirar fotos em viagens para depois exibi-las, em álbuns ou em slides, aos amigos e parentes. Em Picture Ahead: A Kodak e a construção do turista-fotógrafo, Lívia Aquino expõe de maneira notável como a fotografia ajudou a construir o homem moderno e o papel decisivo desempenhado pela Kodak na consolidação dessa indústria cultural. O livro foi publicado em 2016, com o apoio do Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia do ano anterior.

Inspirada em Michel Foucault, Aquino mostra que a emergência dos fotógrafos amadores não pode ser compreendida a partir de uma sequência causal unilinear, pois resultou na verdade da confluência de um vasto conjunto de transformações sociais – nas relações de trabalho, nas formas de lazer, nos meios de transporte, na cultura de massa. Para explicar o entrelaçamento entre turismo e fotografia, ela recorre ao conceito de dispositivo, entendido como uma rede de instituições, práticas e discursos que vai pouco a pouco moldando a atividade humana.

Diferentemente de estabelecimentos repressivos como as prisões e os manicômios, o dispositivo turismo/fotografia não emprega uma violência explícita: em lugar de disciplinar as ações infundindo o medo, ele mobiliza os desejos dos homens. Assim como a “mão invisível do mercado” de Adam Smith, turismo e fotografia regulam o comportamento atuando sobre o inconsciente: dificilmente as pessoas se dão conta da fortíssima coerção social para que mostrem imagens de como são felizes e do quanto se divertem nas suas horas de lazer.

Segundo Aquino, essa engrenagem social começou a se delinear no século XVII, quando se consolidou, sobretudo na aristocracia inglesa, o costume de complementar a formação educacional de seus filhos com o Grand Tour – uma viagem pelo continente, com duração de um ano, na qual eles conheciam Paris, Roma, Veneza e Florença (veja-se os casos de Joseph Addison, Horace Walpole e Thomas Gray). Era uma aventura cara (pois exigia a mobilização de muitos serviçais) e bastante difícil, devido à precariedade dos caminhos, mas motivou o aparecimento de algumas hospedarias e pontos de apoio para os viajantes. Paralelamente a esse roteiro cultural, surgiram na Europa alguns balneários e cidades especializadas no tratamento de certas doenças, que mais tarde se converteram em centros turísticos.

As condições necessárias para que largas parcelas da população se aventurassem em outros países, contudo, só começaram a despontar no final do século XIX. De um lado, a redução da jornada semanal de trabalho possibilitou um aumento do tempo livre dos assalariados; de outro, a melhoria nos meios de transporte, com o aparecimento das ferrovias, dos navios a vapor e dos automóveis, permitiu que as pessoas se deslocassem com mais rapidez. A conjunção desses fatores abriu caminho para a massificação do turismo, especialmente depois que a Organização Internacional do Trabalho regulamentou o direito às férias, em 1936.

Mas, uma vez conquistado, esse tempo de lazer disseminou um sentimento de tédio, como aponta Mauricio Lissovsky no prefácio do livro: “Antes da industrialização capitalista, o tédio era privilégio de poucos, às vezes um traço de caráter inerente à aristocracia e, certamente, uma prerrogativa masculina. A sociedade industrial democratizou o tédio na mesma medida em que, sob pretexto de proteger a força de trabalho dos malefícios inerentes a ele, instituiu o lazer”. O que fazer quando não se tem nada para fazer? Como lidar com a liberdade?

É essa angústia de não ter uma ordem para cumprir que o dispositivo turismo/fotografia vai eliminar. Por meio dele, os sujeitos liberados de suas obrigações foram submetidos a uma forma de disciplina muito mais sutil: em vez de “desperdiçar” as férias simplesmente gozando o tempo livre de que dispunham, os indivíduos adquiriram a obrigação de registrar suas viagens em fotos para exibir seus “momentos felizes” àqueles que tencionavam impressionar.

Como observa Aquino, “a partir da modernidade, fotografar uma viagem transforma-se em um ritual que envolve modos de ação, gestos e circunstâncias que criam um discurso por meio da imagem. Esse protocolo social da fotografia faz-se coercitivo no decorrer do tempo e impele o turista a registrar e presumir conhecer o mundo por meio dela”. A câmera não servia apenas para preencher os dias de ócio com uma atividade produtiva. Ela se tornava uma maneira de conferir um objetivo à própria vida, já que as fotos legadas à posteridade constituíam “uma garantia de continuidade diante das fragmentações vividas na modernidade”.

A Kodak teve um papel crucial nesse processo de enquadramento dos turistas. Até então, as fotos eram produzidas por um grupo restrito de profissionais, devido à dimensão dos aparelhos e ao longo tempo de exposição. Em 1888, George Eastman lança a primeira câmera simples, utilizando um filme em rolo, com o slogan “Você puxa o gatilho, nós fazemos o resto”. O barateamento e a simplificação dessas máquinas possibilitaram que parcelas cada vez maiores da população começassem a produzir imagens dos pontos visitados.

Após descobrir esse nicho de mercado, a Kodak atuou de forma bastante agressiva para eliminar seus concorrentes. Investiu pesadamente em campanhas publicitárias (“A mente esquece, a Kodak lembra”) e passou a fincar placas em pontos turísticos para demarcar os locais onde os viajantes conseguiriam tirar ótimas fotos (“Picture Ahead! Kodak as you go” [Fotografia logo adiante, a Kodak com você]). Cada indivíduo podia assim ter uma imagem de “cartão-postal”, mas com sua marca pessoal.

Tal como os aristocratas que atravessavam a Europa nos séculos precedentes, os assalariados agora também podiam conhecer as capitais, as praias e os centros históricos. Dispunham de menos tempo e de menos recursos para tal, mas isso já lhes permitia ostentar um status social mais elevado: eram capazes de fazer o que os outros faziam. As fotos tiradas nesses locais eram as provas de eles eram “iguais” aos indivíduos que tanto admiravam. Tais imagens serviam ainda para que esses turistas se mostrassem, em um certo sentido, “superiores” a seus modelos, já que eles tinham a possibilidade de obter imagens “raras” ou “únicas”.

Produzir uma “foto autoral” de um “lugar comum” constituía uma proeza digna de um herói moderno, pois não só indicava que o turista possuía os recursos necessários para bancar a sua viagem, mas revelava também a sua habilidade no manuseio da máquina. Lívia Aquino mostra que a Kodak gostava de apresentar o turista como um “caçador” que, em vez de matar seu alvo, capturava a sua imagem. A pequenez e a mobilidade das câmeras permitiam que esse aventureiro registrasse os segredos da vida cotidiana sem deixar qualquer vestígio de sua presença. Esse estereótipo rapidamente ganhou espaço na literatura e no cinema.

Como assinala a autora, cada imagem representava um troféu, um prêmio pela conquista de uma experiência única: “Há um poder implícito nesse ato, ligado à demarcação de uma vitória: o turista enfrenta inúmeros obstáculos até chegar à imagem que traz para casa e exibe aos conhecidos”. O resultado de tanto empenho era uma enorme coleção de imagens, recolhidas em álbuns ou em slides. Graças às fotografias, os turistas se certificavam de que não tinham vivido em vão, já que podiam recordar as pessoas e os lugares visitados na segurança de seus lares: assim como num panóptico, eles podiam ver à vontade sem jamais serem vistos.

Os anúncios da Kodak sinalizavam claramente que ver é poder: “Metade do mundo agora sabe como vive a outra metade”. Cabia ao leitor decidir se ele desejava integrar a classe dos que viam ou se queria ficar relegado à ralé dos que eram vistos: “Para onde você foi? O que viu? Responda com filmes que você mesmo faz. Paisagens diferentes, fatos emocionantes, tudo que faz uma viagem fascinante – isso preenche sua mente quando a viagem termina. Pense em como ficaria feliz por ter uma vida como um registro em filme da viagem”, dizia a empresa.

Graças à fotografia, o turista podia compartilhar sua vida com os amigos, para reassegurar a sua distinção social. A classe média encontrou assim na fotografia o instrumento de que precisava para emular o comportamento dos aristocratas estudados por Thorstein Veblen em A teoria da classe ociosa: embora não tivessem recursos para viver sem trabalhar, eles podiam replicar a indolência da nobreza ao menos uma vez por ano: suas fotos eram as evidências de que eles tinham estado neste ou naquele lugar. É certo que era fácil perceber a diferença entre o original e sua réplica: os turistas de classe média precisavam trabalhar muito durante suas viagens para produzir uma infinidade de provas de que não estavam trabalhando. Mas seus conhecidos nunca estavam lá para presenciar todo o esforço requerido pelas câmeras, objetivas, filmes, filtros, tripés e instrumentos de limpeza. Por isso o saldo era positivo.

Fotografar constituía um prazer substitutivo, um deleite de segunda mão: os turistas não eram os donos daqueles lugares maravilhosos, mas possuíam a experiência de terem estado lá. Os tesouros visuais serviam de consolo para as privações materiais que os afligiam: “O mundo é meu. Eu possuo uma Kodak”, sustentava a Kodak Girl nos anúncios da empresa. A posse desse “mundo-imagem” aliviava a dor de uma existência desprovida de sentido: cada “retrato feliz” representava uma reparação virtual pelas derrotas no plano real.

Contudo, mesmo reduzindo o mundo a um cartão-postal, o turista-fotógrafo só podia se gabar das pequenas parcelas que ele tinha visitado. O pior é que essas nem sempre despertavam o interesse dos conhecidos. Como dizia o crítico Jules Aarons, citado por Aquino, “estamos familiarizados com essa versão da câmara de tortura moderna – a apresentação de slides coloridos. Se somar todos os desconfortos, problemas, dores e doenças de sua viagem, não será nada comparado ao que seus amigos geralmente são submetidos quando você volta pra casa e anuncia uma noite de slides”.

Esse era um sintoma claro de que o dispositivo turismo/fotografia começava a girar em falso. Para amenizar a insatisfação dos fotógrafos amadores e de suas vítimas, a Kodak não poupava esforços: publicava guias para orientar a produção e a seleção das imagens; patrocinava revistas, exposições e prêmios de fotografia; estimulava a criação de clubes de amadores. O êxito da empresa pode ser medido pelo fato de que, nos anos 1970, ela controlava 90% do mercado de filmes e 85% do mercado de câmeras nos Estados Unidos. O problema é que ela se adaptou tão bem a esse hábitat tecnológico que não conseguiu acompanhar a evolução para o mundo digital: “Durante trinta anos a companhia busca reestruturar o foco de seu negócio, mas não consegue reverter sua estratégia e, em 2012, entra com pedido de concordata”, diz a autora.

A Kodak desapareceu, e suas câmeras portáteis foram substituídas pelos celulares. Mas o dispositivo que a empresa se empenhou em construir se disseminou pelos novos meios de comunicação: as fotos de viagem deram origem às selfies nos bares e restaurantes, nas academias e empresas, nos shows musicais e cortejos fúnebres. Como esclarece Lívia Aquino, “o dispositivo não tem começo nem fim, opera e se espraia além dos limites que o germinaram e o impulsionaram”. As pessoas que hoje povoam a internet são a atualização desses personagens armazenados em velhos álbuns e coleções de slides.///

 

Picture Ahead: A Kodak e a construção do turista-fotógrafo
Lívia Aquino

Autopublicado, 2016
Projeto realizado com apoio do Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia
264 pp., 17 x 20 cm

 

 

 

 

 

 

Mauricio Puls é formado em ciências sociais pela USP. Escreveu os livros Arquitetura e filosofia (Annablume, 2006) e O significado da pintura abstrata (Perspectiva, 1998). E escreveu sobre o trabalho Avenida Celso Garcia, de Lucia Mindlin Loeb, para a ZUM #9.

 

A revista ZUM publica em seu site resenhas de livros de fotografia e novidades do mercado editorial no Instagram. Os livros podem ser enviados para Revista ZUM / IMS – Av. Paulista, 2439, 6 andar – CEP 01311-936 – São Paulo, SP. A equipe da revista seleciona as publicações e encaminha para resenha. Todos os livros, inclusive os não resenhados, são depois enviados para a Biblioteca de Fotografia do IMS Paulista.

 

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