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Pântano imagético: resenha do primeiro fotolivro de Sofia Borges

Sabrina Moura Publicado em: 23 de setembro de 2016

Sofia Borges, O pântano, 2016

“As imagens não existem”, sugere Sofia Borges na abertura de The Swamp [O pântano], publicação ganhadora do Prêmio de Primeiro Livro de 2016 da editora inglesa Mack. Composto de 70 fotografias realizadas ao longo de sete anos de pesquisa, o livro propõe um longo exercício filosófico no qual a natureza da imagem fotográfica é colocada em questão. “As imagens que me interessam nunca são sobre algo […] e quando tenho sorte, encontro um vazio, uma proibição, um branco, um problema”, afirma a artista.

Inútil buscar um encadeamento narrativo ou temático por trás do conjunto de fotografias que se sucedem sem pretensão enunciativa. Entre retratos, presenças minerais e vestígios arqueológicos, Sofia Borges nos lembra que imagens não constituem presenças absolutas, mas sim experiências mediadas pelo campo da linguagem. Ao removê-las da esfera semântica, ela apresenta enigmas e metáforas que desmantelam as operações narrativas interessadas em oferecer ao observador um quadro de compreensão, colocando-o diante da crueza da abstração.

Tal abstração não é puramente formal, como a artista insiste em lembrar. Aqui, ela é sobretudo parte de um procedimento que instaura na imagem a recusa do seu próprio significado. “Cada vez mais percebo que estou tentando apreender algo sobre a abstração. Mas, não em termos formais, e sim em termos de compreensão”, reitera Sofia.

A despeito das intenções da artista, é inevitável não enxergar aqui relações entre suas imagens e alguns dos ensaios realizados por fotógrafos como Minor White e Aaron Siskind, entre os anos 40 e 60. Com uma produção inicialmente vinculada ao movimento da fotografia direta (straight photography), White e Siskind passaram a explorar a linguagem abstrata, afastando-se do documentarismo humanista predominante no pós-guerra. A eles interessava estabelecer uma espécie de essência fotográfica capaz conferir à imagem um estatuto completo e autônomo, sem significados ou pretextos subjacentes. No entanto, se o isolamento exacerbado – ou o ato de abstrair algo de seus usos, contextos e funções – apresenta-se como procedimento formal no trabalho desses fotógrafos, em Sofia Borges ele reitera o estado de representação das coisas, permitindo-a introduzir suas imagens como “problemas” cujo cerne reside na incongruência de associações tão diversas quanto uma cabeça de cavalo e um aglomerado de pedras, uma hiena em movimento ou um grupo de crianças no parque.

É possível que, à primeira vista, essa enigmática ausência de sentidos e contextos possa frustrar o observador em busca de uma estrutura causal, colocando-o em um estado de estranhamento face às situações apresentadas pelo livro. Em parte hermético, esse jogo nos desafia a vivenciar um encontro bruto com a imagem, devolvendo-nos constantemente questões acerca de sua natureza.

Uma aproximação aos campos da filosofia e da literatura nos permite encontrar no recurso da aporia uma chave de leitura para o pântano imagético de Sofia Borges. De Aristóteles a Jacques Derrida e os pós-estruturalistas, a aporia se define como figura retórica da dúvida, constituindo um problema insolúvel no qual a interpretação de um acontecimento ou conceito recai num impasse interpretativo ou, como dizia  Aristóteles em seus Tópicos, “numa igualdade de argumentos contraditórios”. Em outras palavras, o procedimento aporético destitui o pensamento linear de suas condições de possibilidade, exprimindo um paradoxo, um impasse na estrutura do texto. No trabalho de Sofia Borges, a aporia demarca a constante operação de colocar aquilo que se apresenta à sua câmera sob a luz do que chama de “uma negatividade fotográfica”.

Tal prática levou a artista a percorrer lugares dotados de estruturas representativas preexistentes, capazes de deslocar ou acentuar as camadas de significados que recobrem seu repertório. Entre eles estão zoológicos, museus de história natural e cavernas pré-históricas, como as grutas de Lascaux e Chauvet, localizadas no sul da França. Descoberta por um grupo de espeleólogos na década de 1990, essa última abriga o mais antigo conjunto de pinturas e gravuras rupestres de que se tem notícia, datando cerca de 36 mil anos antes da nossa era. Retratados pelo cineasta alemão Werner Herzog no impressionante documentário Caverna dos sonhos perdidos (2010), os desenhos de Chauvet nos colocam face a uma noção de tempo que transcende a ideia de progresso e linearidade no curso da história e, consequentemente, da arte. No filme, Herzog descreve a representação pictórica no mundo paleolítico como resultado de uma explosão expressiva, e não de um processo evolutivo.

Em The Swamp, as ranhuras e impressões de mãos encontradas em Chauvet citam de maneira quase imperceptível a presença humana que, num passado longínquo, esboçou o vigoroso movimento de cavalos, leões e rinocerontes em suas paredes. “Ao olhar para as complexas camadas de tempo e significado sobre os desenhos e formas dessas cavernas passei a entender melhor algo relativo à visão: não podemos significar a realidade”, revela a artista.

Sabemos que as tensões entre representação e realidade percorrem a história da fotografia, desde a sua invenção no século 19. Marcado por uma pretensa capacidade de registrar o real, o meio carrega em si uma espécie de desafio cognitivo que nos impele constantemente a indagar o que estava por trás da câmera na hora do clique. Mas, essa ambição nunca se realizará, já que, como dizia Duane Michals,“fotografar a realidade é fotografar o nada”. Da mesma forma, ao recobrar a distância entre representação, visão e realidade, Sofia não nos permite cair na armadilha de acreditar que algo se esconde por trás de suas fotografias.

Para além das questões filosóficas que atravessam o trabalho de Sofia Borges, nos confrontamos com imagens cujo impacto visual emana de uma prática singular. Não há gestos perdidos, discursos ou recursos estilísticos desnecessários. Opacas, quase impenetráveis, suas imagens se inscrevem num espaço-tempo indeterminado, como as estalagmites e animais empalhados que a artista encontra em suas errâncias. Nesse pântano, a fotografia é o último recurso ao estranhamento, o argumento para a composição de um lugar onde paramos para olhar e deixamos de reconhecer aquilo que nos parece mais familiar.///

 

Sabrina Moura é curadora e pesquisadora. Doutoranda no departamento de História da Unicamp e mestre em Estética e História da Arte pela Universidade Paris VIII.
A revista ZUM publica em seu site resenhas de livros de fotografia e novidades do mercado editorial no Instagram. Os livros podem ser enviados para Revista ZUM / IMS – Av. Paulista, 2439, 6 andar – CEP 01311-936 – São Paulo, SP. A equipe da revista seleciona as publicações e encaminha para resenha. Todos os livros, inclusive os não resenhados, são depois enviados para a Biblioteca de Fotografia do IMS Paulista.
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