Exposições

A política das imagens na exposição Levantes

Márcio Seligmann-Silva Publicado em: 23 de janeiro de 2018

Foto de Ken Hamblin, Rua Beaubien, 1971, Coleção Joseph A. Labadie, Coleções especiais da Universidade de Michigan. ©Ken Hamblin

A exposição Levantes, com curadoria de Georges Didi-Huberman e em cartaz no Sesc Pinheiros (SP), parte de uma série de pressupostos teóricos que podemos encontrar na vasta obra desse historiador e teórico da arte francês. Um deles tem um forte teor psicanalítico: as configurações artísticas devem ser consideradas em grande parte enquanto elaborações de um passado traumático. A arte seria uma inscrição mnemônica, que ao transpor o vivido para o âmbito do jogo de apresentação, tenta dominar o passado. Dessa forma as obras de arte se transformam também em arcas, em receptáculos que transportam diferentes momentos que aportam e penetram em outros presentes e que, por sua vez, os ressignificam. Sendo assim, toda arte é arte da memória e da recordação.

Freud, em seu ensaio “O Homem Moisés e a Religião Monoteísta” (1939), formulou que toda a riqueza das epopeias homéricas e das tragédias áticas só pode ser compreendida se tivermos em mente que os núcleos dessas obras foram alimentados e energizados por terríveis catástrofes históricas que se cristalizaram sob a forma de mitos. Creio que essa concepção permite entender que Levantes faz uma arqueologia dos nossos mitos, traça um corte transversal na nossa memória cultural, visando despertar no nosso presente as centelhas de sonhos massacrados pela máquina mortífera da modernidade – ou do capitalismo, para irmos direto ao ponto.

No belo ensaio da historiadora e teórica do cinema Nicole Brenez que consta do livro-catálogo da exposição, a autora cita a frase chave do cineasta norte-americano John Gianvito: “Falar de política, para mim, pressupõe falar de política das imagens.” Trata-se então, nessa exposição, de pensar tanto o tema da representação (política e artística) como estando no âmago das artes, como também se voltar, dentro de um programa político, para a construção de uma contemplação produtiva, fazer das obras de arte uma máquina de guerra da memória que se alimenta com essas imagens, que portam em si as energias revolucionárias do passado, as lutas do presente.

Tanto as artes não são inofensivas e seus objetos não geram um “prazer sem interesse”, como queria o filósofo Immanuel Kant no final do século 18, que a história das artes, sobretudo desde a Revolução Francesa, é uma história da censura e da luta entre os artistas e os representantes do poder. E o fato de existirem artistas que serviram ao poder, como Leni Riefenstahl, Albert Speer e Josef Thorak, apenas comprova a potência política das artes. Não podemos esquecer que a exposição nazista Arte degenerada deve ser compreendida com o seu contrapeso, a exposição A grande exposição de arte alemã (1937-1944), aberta um dia antes daquela. Os fascismos foram um triunfo da estetização da política. Didi-Huberman, inspirado em Walter Benjamin, volta-se para a resposta a esse movimento: a politização crítica e emancipadora das artes. Ele mostra essa verdadeira guerra (ou luta) de classes através das obras de arte de modo preciso, por exemplo, ao incluir em sua curadoria a fotografia Budapeste (1956), de Arpad Hazafi, que mostra a derrubada de uma gigantesca estátua de Stalin. Na exposição Levantes, realizada em Paris no museu Jeu de Paume, também podia-se ver a pintura de Jules Girardet A coluna Vendôme após a sua queda, que retrata a derrubada da coluna (que tinha em seu cume uma estátua de Napoleão), durante a Comuna de 1871, talvez o maior levante do século 19.

E o que vemos em Levantes? Mais do que uma curadoria, temos aqui um verdadeiro programa estético-político traduzido em termos da escolha e da cuidadosa ordenação das obras no espaço de exposição. Como lemos no ensaio de Didi-Huberman sobre os diários de guerra de Bertolt Brecht (Quando as imagens tomam posição – O olho da história, I), partindo de Walter Benjamin o autor nota que o teatro épico brechtiano visava a uma tomada de posição. Seu princípio da interrupção, da quebra na continuidade, cria situações nas quais o espectador deve se posicionar. Nele ocorre uma paralisação da ação que produz um olhar crítico, rompe a cadeia da narrativa para gerar (auto)consciência. O teatro brechtiano é calcado no choque, explica Benjamin. O intervalo produz a tomada de posição e esta permite conhecer. A arte torna-se, assim, agente do pensamento crítico. O efeito de estranhamento ou de distanciamento permite o acesso à alteridade, ao jogo das diferenças. À ruptura do jogo clássico da ilusão produzida pelo distanciamento corresponde uma crise da representação: ela permite a tomada crítica de posição. Ou seja: o abalo da representação estética se desdobra em um abalo da representação política. Estamos também diante do procedimento nietzschiano da transformação e reversão crítica dos valores, ou da máxima romântica de Novalis: “Na medida em que eu atribuo ao comum um sentido mais elevado, ao usual uma aparência misteriosa, ao conhecido a dignidade do desconhecido, ao finito uma aparência de infinito eu o romantizo. Para o mais elevado, desconhecido, místico, infinito a operação é o contrário. Eles são logaritmizados via conexão, recebem uma expressão corriqueira.”

Chieh-Jen Chen, A estrada, 2006, filme 35 mm film transferido para DVD: colorido e preto e branco, mudo, 16:45 min. © Chieh-Jen Chen, cortesia da Galeria Lily Robert.© Chieh-Jen Chen, cortesia da galeria Lily Robert.

Trabalho dialético da imagem

Nessa operação brechtiana de produzir posicionamento é fundamental para Didi-Huberman o recurso à montagem, tema central para os cineastas  Sergei Eisenstein e Jean-Luc Godard e também para Walter Benjamin e Bertold Brecht, sem esquecer da obra Atlas Mnemosine, de Aby Warburg, toda calcada no princípio da montagem e que se tornou um farol para o pensamento de Didi-Huberman. Como ele escreveu sobre  montagem em Brecht, ela permite o reenquadramento, a interrupção, a decalagem, o retardamento que produzem o que ele denomina (com Benjamin) de um “trabalho dialético da imagem”. E Benjamin justamente descreve o teatro de seu amigo Brecht como aquele que produz uma “dialética paralisada”. Esse conceito é fundamental para a sua filosofia da história que, como vemos na conhecida tese de número nove de seu texto “Sobre o conceito da história”, descreve a história da humanidade a partir da figura do Angelus Novus. Este anjo da história seria arrastado violentamente de costas pela tempestade do progresso e contemplaria uma montanha de escombros, as ruínas do processo histórico, acumularem-se incessantemente diante de seus olhos. A interrupção, o momento da dialética paralisada, seria justamente para Benjamin o momento em que essa tempestade pararia e o sol da liberdade surgiria no céu. Nesse momento também a humanidade teria um acesso integral a sua história.

Para Benjamin, Didi-Huberman, Ernst Bloch, Brecht, Godard e toda uma linhagem que pode ser facilmente identificada em Levantes, gerar essa ruptura histórica depende em grande parte de nossa capacidade de fazer justamente uma curadoria correta das imagens, dos mitos (nos termos de Freud), construindo uma história que alimente nossos ímpetos para o levante. Na tese de número doze sobre a história, Benjamin esclarece não só que “o sujeito do conhecimento histórico é a própria classe combatente e oprimida” mas também que na apresentação da história é fundamental que essa classe apareça “como a última classe escravizada, como a classe vingadora que consuma a tarefa de libertação em nome das gerações de derrotados.” Na tradição social-democrata e populista apresenta-se o futuro redimido como compensação às carências presentes, mas Benjamin arremata: “A classe operária desaprendeu nessa escola tanto o ódio como o espírito de sacrifício. Porque ambos se alimentam da imagem dos antepassados escravizados, e não do ideal dos descendentes liberados.”

São essas imagens “dos antepassados escravizados” que Didi-Huberman nos apresenta seguindo a seguinte ordem na exposição: 1) imagens de ruptura, de revolta; 2) os gestos do levante; 3) as palavras rebeldes exclamadas e inscritas em muros e livros; 4) imagens das lutas e conflitos; 5) imagens de lutas pela justiça, memória e verdade.

Eduardo Gil, Crianças desaparecidas. Segunda Marcha da Resistência, dezembro de 1982. Coleção Eduardo Gil © Eduardo Gil

O levante emancipador das massas

O parti pris evidente da exposição, assim como dos ensaios que estão no livro-catálogo (que, diga-se de passagem, com raras exceções, não fazem menção às obras da exposição) é pelo levante emancipador. Essa exposição recebeu críticas que me parecem superficiais e pouco fundadas, como a da estetização da dor e apouca representatividade de artistas mulheres. Toda arte, sobretudo desde o romantismo e de Goya, deve enfrentar esse dilema da inscrição da dor e já estamos cansados de saber que arte e prazer não são a mesma coisa. A arte tem tanto o papel de luto quanto o de memória do mal, como vimos com Freud. Mas um tema escapou à crítica: o estatuto das massas nessas imagens e nos textos do livro-catálogo. E é essa questão que me parece a mais delicada.

Marta Gili, curadora do Jeu de Paume, defende de modo impecável na abertura do catálogo a linha da instituição a favor de obras e exposições  que atuem no sentido de “explorar de maneira crítica os modelos de governança e as práticas de poder que condicionam grande parte da nossa experiência perceptiva e afetiva”. Já Didi-Huberman escreve de modo momentoso: “Tempos sombrios: o que fazer quando reina a obscuridade? Pode-se simplesmente esperar, dobrar-se, aceitar.” Isso significa sucumbir à pulsão de morte. Mas podemos também resistir, levantar os fardos, gritar basta, colecionar modelos críticos, “imagens-desejo” (Ernst Bloch) para atravessar fronteiras. Romper os grilhões, como Prometeu rompendo suas correntes, ou o deus Atlas se revoltando contra o castigo olímpico que o condenou a carregar a abóbada celeste sobre nossas cabeças. A imaginação nos guia nesse levante, com o lema dadaísta “Dadá levanta tudo” ou com o slogan de 1968 “A imaginação no poder”.

Não é uma coincidência essa exposição ter sido inaugurada na véspera do cinquentenário das revoltas de 1968 e ter na capa de seu catálogo uma foto icônica de Gilles Caron, fotógrafo por antonomásia daquela revolta. Mas, justamente: o que foi 1968? Os levantes são sempre emancipatórios? O recente filme de João Moreira Salles, No intenso agora, mostra justamente o movimento de 1968 como eivado de ambiguidades.

A filósofa Judith Butler em seu ensaio presente no catálogo com razão recorda que também “há levantes contra regimes democráticos”, mas logo acrescenta que “aqui nos interessaremos principalmente por levantes de cunho democrático”. Pergunto-me se esse tipo de isolamento artificial não prejudica a teoria e a representação dos levantes. Ela lembra também que o levante em seu confronto com as forças do poder pode escalar em uma revolução. Fora isso, todo levante é marcado pelo fracasso e o dia seguinte do fracasso é o início das narrativas sobre o levante. Essas narrativas, como vimos com Benjamin, são os alicerces dos futuros levantes. Mas Butler retorna em seu texto ao tema do levante antidemocrático de um modo que, evidentemente, ela não poderia imaginar quando escreveu esse texto, que praticamente descreve o contexto que ela mesma viria a viver ao fazer sua fala no Sesc Pompeia em São Paulo em novembro de 2017, quando sofreu o ataque de grupos neofascistas. Ela escreve: “Se um grupo de pessoas se sente assujeitada pela democracia,  igualdade,  direitos das mulheres, casamento homossexual ou pelo conceito de ‘gênero’, o que pensar do levante desse grupo? Eles são ‘o povo’?” Mas em seguida ela se limita a dizer que levantes não representam “o povo inteiro, a essência do povo”, noção para lá de complicada. Mas esses levantes conservadores estão agora por toda parte e Levantes deve ser entendido nesse contexto de confrontos e resistências. Daí ser lamentável que os textos do catálogo ou a exposição não reflitam mais sobre esse fato. Tanto a revolução como esses levantes antidemocráticos ficam de fora.

O “povo”, ou a “massa”, como diriam Freud e Benjamin, não são contemplados com uma reflexão mais dialética. Ou quando Didi-Huberman o faz, no seu longo ensaio no final do catálogo, é para descartar as teorias da massa de dois de seus maiores pensadores: Elias Canetti e Freud. Ora, a passagem de Freud que ele cita para descartar deve ser, antes, vista como uma descrição precisa da massa que atacou Butler e que pulula nas redes sociais e nas nossas ruas: “Nada nela [na massa] é premeditado. Mesmo que ela deseje as coisas apaixonadamente, embora jamais por muito tempo, ela é incapaz de uma vontade durável. Ela não suporta nenhum adiamento entre seu desejo e a realização efetiva do desejado. Ela tem o sentimento da onipotência total: para o indivíduo na massa, toda a noção do impossível desaparece” (Freud, em Psicologia das massas e análise do eu). Nessa frase final de Freud deve-se ver justamente uma possibilidade de dialetização do conceito de massa.

Esse tipo de ideia também foi desenvolvida em Benjamin, que considerou essencial se voltar para uma teoria das massas e mesmo para o conservador Gustave Le Bon para entender a gênese da consciência de classes. Em um fragmento com variantes de seu ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica ele afirma que “o pensamento dialético não pode […] de modo algum se abster do conceito de massa, deixando-o ser substituído por aquele de classe. Furtar-se-ia com isso a um dos instrumentos para a apresentação do vir a ser das classes e dos acontecimentos nestas. […] a formação de classes no seio de uma massa é um evento concreto e importantíssimo quanto ao conteúdo.” E mais, Benjamin vai nesse fragmento justamente pensar essa passagem da massa para a classe a partir da frequentação do cinema. No cinema encontramos a massa, “isso, porém, não exclui a possibilidade de uma certa prontidão à mobilização política ser elevada ou reduzida nela por meio de filmes determinados.” Aqui encontramos toda uma base para a exposição Levantes, o que não justifica, portanto, não levar em conta a noção de “massa” na sua construção e na sua leitura proposta por seu curador.

Foto de Agustí Centelles, Crianças brincando, Montjuic, Barcelona, 1936.
© Ministério da Educação, Cultura e Deportos, Espanha. Centro Documental da Memória Histórica, Salamanca, Espanha.

O jogo e as imagens políticas

E as imagens? As imagens e sua montagem respondem a essa constelação teórica acima exposta. Vemos um conjunto impressionante e extremamente forte de obras que visam, nessa curadoria, nossa mobilização política. Didi-Huberman está consciente dos limites do cubo branco e do sistema da arte no qual essa exposição se insere. Mas aposta, com razão, em uma curadoria voltada para despertar nas obras seu momento político, que é detonado pela montagem, pelo jogo das diferenças. Nesse sentido pode-se dizer que nada é mais bem-vindo do que uma exposição como essa em nossos tempos sombrios. A exposição é também uma homenagem à agência Magnum, com a presença de fotos históricas como de Henri Cartier-Bresson, Hiroji Kubota, Leonard Freed, David Seymour (o Chim), mas também com a ausência de seu fundador Robert Capa, autor da talvez mais icônica (e polêmica) fotografia de guerra do século 20: O soldado caído, de 1936. Essa ausência talvez possa ser explicada justamente pelo renome dessa fotografia: Didi-Huberman aparentemente quis evitar fazer uma mostra do tipo “as imagens mais influentes de todos os tempos”.

Aliás, uma das fotos de Cartier-Bresson, Escola de Belas-artes, Paris, França, ironicamente foi posta pelo curador no item da exposição “Fazer greve não é não fazer nada”. Nela vemos uma sala da Escola de Belas Artes de Paris com cartazes sobre a greve dos operários que acompanhou os movimentos estudantis de 1968. Mas uma mulher, provavelmente uma estudante, dorme profundamente em uma poltrona sob os cartazes. É quase uma reversão da famosa gravura de Goya de seus Caprichos, autor central na tradição da inscrição da violência que essa exposição quer enfatizar, intitulada O sonho da razão produz monstros.

Também as escolas latino-americanas de fotografia estão bem representadas, afinal as resistências às ditaduras neste continente foram um grande reduto do pensamento de esquerda do século 20, onde se desenvolveu também todo um pensamento e uma prática em torno da resistência. Depois da memorialização da Shoah (representada na exposição por uma única sequência de fotos, as quatro imagens anônimas captadas em Auschwitz-Birkenau pela resistência polonesa em 1944), foi a memorialização das ditaduras da América Latina um dos mais importantes momentos na construção dessa ética e estética da memória do mal à qual essa exposição também se volta. Assim temos fotógrafos chilenos (Álvaro Sarmiento, Héctor López), várias fotos do argentino Eduardo Gil, mas também mexicanos (Tina Modotti, Casasola, Manuel Álvarez Bravo, Ernesto Molina) e um cubano (Alberto Korda). Também temos artistas que focam na memória/esquecimento, como o argentino Hugo Aveta (Ritmos primários, a subversão da alma) e a equatoriana Estefania Peñafiel Loaliza (E eles vão no espaço que abraça teu olhar). Rosangela Rennó faltou neste contexto, mas o argentino Marcelo Brodsky, outro importante artista latino-americano da memória/esquecimento, esteve na versão portenha dessa exposição.

Georges Didi-Huberman dedicou o livro Imagens apesar de tudo às únicas quatro fotografias que documentam o processo de extermínio em massa conduzido nas câmaras de gás dos campos de concentração nazistas. As fotos mostram a queima de corpos e a entrada de mulheres na câmara do crematório 5 de Auschwitz. Tiradas às escondidas por um prisioneiro judeu forçado a participar das atrocidades, estas imagens são um ato de resistência, argumenta Didi-Huberman. Memorial e Museu Auschwitz-Birkenau, Polônia, 1944.

Georges Didi-Huberman dedicou o livro Imagens apesar de tudo às únicas quatro fotografias que documentam o processo de extermínio em massa conduzido nas câmaras de gás dos campos de concentração nazistas. As fotos mostram a queima de corpos e a entrada de mulheres na câmara do crematório 5 de Auschwitz. Tiradas às escondidas por um prisioneiro judeu forçado a participar das atrocidades, estas imagens são um ato de resistência, argumenta Didi-Huberman. Memorial e Museu Auschwitz-Birkenau, Polônia, 1944.

É interessante observar na exposição a convivência entre fotografias de certo modo documentais e jornalísticas, outras de cunho programaticamente artístico, panfletos (tracts), livros, artigos de jornal e obras de arte não fotográficas. Essa convivência é essencial para gerar uma espécie de hieróglifo mnemônico a que Levantes se propõe. Com isso se rompe também com a falsa barreira entre fotojornalismo e arte. A fotografia tem um lugar essencial em Levantes, de seus pioneiros do século 19, passando por vanguardistas como Man Ray, até jovens artistas que também usam a fotografia, como a chilena Francisca Benitez. Isso se dá também graças ao caráter de índice, de ruína, de destroço das catástrofes que as fotografias assumiram. Se a fotografia das barricadas do século 19 em Paris, ou as fortíssimas fotos dos latino-americanos possuem esse aspecto, isso também se dá nas inesquecíveis imagens de Augustí Centelles da guerra civil espanhola. Mas dele é também uma fotografia que me parece chave na exposição: Brincadeira de crianças em Montjuïc, Barcelona, 1936. Um grupo de crianças encena um fuzilamento. Goya, que esteva representado na exposição original em Paris, tem suas representações icônicas dos fuzilamentos de 3 de maio de 1808 tanto em seu famoso quadro como em gravuras. O que se passa em Goya e nessa brincadeira dessas crianças em 1936, assim como na própria fotografia de Centelles, é o que podemos chamar de momento de distanciamento que a obra de arte e a brincadeira permitem. Trata-se do elemento do jogo: uma modalidade sui generis de lidar com o real na qual ao mesmo tempo nos distanciamos e nos aproximamos dele. Dar forma ao real exige esse desvio: as crianças nos ensinam isso (e Freud o descreveu a partir do famoso jogo de seu neto de jogar e puxar um carretel: “fort – da” desaparecer e aparecer).

O jogo nos mostra como (con)viver com a dor e a nos apoderarmos dela, dar uma forma à violência, ao indizível, que é também o “in-visível”, o “não-vivível” como o apresenta muito bem Ismaïl Bahri em seu trabalho Filme em branco, na mostra. Essa obra tem todos os frames do filme, que apresenta o cortejo fúnebre de um opositor em Túnis, praticamente cobertos pelo retângulo branco de uma folha de papel. Estamos aqui em plena estética do sublime, termo da teoria estética que em alemão se diz “das Erhabene”: o que (nos) eleva. Se Siegfried Kracauer descreveu nos anos 1920 a fotografia como um invólucro que nos protege da realidade, é verdade também que ela, assim com as artes de um modo geral, permitem refletir sobre o real, como no escudo de Perseu: no qual a Medusa do real é refletida e pode ser mirada sem nos cegar/matar. É justamente o olhar gorgóneo da fotografia que permite esse surpreender do real.

O jogo aparece, de resto, nessa exposição em muitos momentos, sobretudo na figura da ironia. São impressionantes, por exemplo, os cartuns do francês Jean Veber que retratam os campos de concentração que os britânicos fizeram durante a segunda guerra dos Bôeres (1899-1902), na África do Sul. Ele fez imagens extremamente fortes da violência (como em Os campos de reconcentração de Transvaal n. 19) a que esses prisioneiros eram submetidos e, como Goya em seus Desastres da Guerra com suas legendas irônicas, acrescentou a essas imagens legendas que descrevem esses campos como locais quase idílicos. Detalhe: esses textos são extraídos de relatórios britânicos oficiais. Aqui a ironia permite uma inscrição crítica de um dispositivo biopolítico que infelizmente se tornaria cada vez mais comum no século20. Também a obra de Robert Filliou Optimistic Box n. 1, de 1968 (presente na versão de Paris da mostra), que consiste em uma caixa com uma típica pedra das utilizadas pelos rebeldes de 1968, tem um caráter marcadamente irônico radicalizado pela etiqueta na caixa: “we don’t throw stones at each other any more” [nós não jogamos mais pedras uns nos outros].

Também a fotografia de Dennis Adams de um saco vermelho voando sob um céu azul (Patriota) representa uma aproximação em forma de jogo, lúdica, com um real catastrófico. Nesse caso, trata-se da apresentação do ataque às torres gêmeas em Nova York em 2001. O estúdio de Adams fica a poucas quadras daqueles prédios atacados. Sua proposta de aproximação desse evento foi a de fotografar, ao longo de três meses após o ataque, aquilo que ficou flutuando no ar. Ou seja, o levante é também um levante de fragmentos da catástrofe e não apenas um levante do “povo” revoltado. Nessa linha, na série de fotos de Agnès Geoffray reencontramos em suspensão Laura Nelson, a vítima de um linchamento em 25/10/1911 em Oklahoma, EUA. Geoffray recicla essa imagem icônica da violência racial para reinscrever hoje essa história que não se encerrou, como a violência policial contra negros o mostra hoje nos Estados Unidos e em tantos outros países. Na mostra, as obras de Jaime Lauriano, como Vocês nunca terão direitos sobre seus corpos, tratam de modo original o tema do genocídio de afrodescendentes no Brasil a partir de entalhes em madeira de passagens de boletins de ocorrência. Essa obra tem imagens apenas escritas, como se as imagens visuais fossem recalcadas em nossa cultura da violência, cegadas.

A violência é um tema que também atravessa o livro-catálogo, sendo defendida mais do que criticada enquanto violência revolucionária. Mas é digno de nota que o curador fez questão de destacar o descontrole dessa violência, que muitas vezes se volta contra os próprios insurgentes. Esse é o caso da cena fotografada por Casasola em Fusilados por tropas zapatistas em Ayotzingo-1913-1917.

Estefanía Peñafiel Loaiza, E eles vão no espaço que abraça teu olhar, 2016. 2 HD vídeo © Estefania Peñafiel. Producão: Jeu de Paume, Paris

No levante, também palavras estão no ar: gritos, como vemos na obra do coletivo Art & Language, nos murmúrios do vídeo de Lorna Simpson, na fotografia do grande artista da memória da Shoah Jochen Gerz, Gritar até a exaustão, e nas bocas abertas dos cartazes de Graciella Sacco. Aliás, essa artista argentina se notabilizou por suas ações artísticas em espaço público: o dilema dessa exposição (assumido como tal, de resto) é revelado por trazê-la de volta ao cubo branco.

Mas o vermelho do saco plástico da foto de Adams como que se espalha por toda a exposição: como no filme-arquivo de Chris Marker de 1977 (outra importante inspiração para o curador): O fundo do ar é vermelho. Os levantes são vermelhos, pois são guiados, como dizia Benjamin, pelo espírito de vingança, como libertação da escravidão, como embate contra as forças do poder: o sangue corre nas veias e no chão, tinge as bandeiras, como nos parangolés de Oiticica representados na exposição, na obra de Roman Signer Red Tape, no encarnado do Livro de Carne de Artur Barrio, nas letras da obra de Sigmar Polke Contra as duas superpotências. Por uma Suíça vermelha (presente na exposição em Paris apenas), no maço de cigarro vermelho Gauloises (da série 39 objetos de greve de Jean-Luc Moulène), mas também no sangue em preto e branco da fotografia de Manuel Álvarez Bravo Trabalhador em greve, assassinado, de 1934. Ver essa foto nos revolta e sem dúvida ativa o sangue em nossas veias nos enchendo de ímpeto. Se no Brasil estamos sob a ameaça de ter nossa política dominada pelo verdeamarelismo, Levantes resiste com a força do vermelho que se espalha e tinge nossas almas.

Das obras que foram selecionadas especificamente para a exposição no Brasil, vale destacar os artistas da mais jovem geração, como Jaime Lauriano, Clara Ianni e Rafael RG, grandes artistas da resistência armada local. Sebastião Salgado, aliás, outro fotógrafo Magnum (assim como Miguel Rio Branco, que poderia estar muito bem nesse contexto), é representado por uma fotografia do MST, um movimento que é talvez o maior levante que existe hoje no mundo.

John Heartfield, o fotógrafo dadá que esteve presente na versão parisiense dessa exposição com seu Use a obra como arma, traduz essa mencionada cultura encarnada em um jogo artístico em suas fotomontagens. E foi nesse jogo que Benjamin apostou ao escrever em seu mencionado ensaio sobre a obra de arte: “as manifestações dadaístas garantiam uma distração veemente, na medida em que tornavam a obra de arte o centro de um escândalo. Era preciso satisfazer, acima de tudo, uma reivindicação: incitar a irritação pública. Com os dadaístas, em vez de uma aparência atraente ou de uma construção tonal convincente, a obra de arte tornou-se um projétil. Ela golpeia o observador.” Portanto, se hoje exposições e obras de arte provocam essa irritação, é porque o campo artístico vai de encontro e resiste ao establishment. Pese as restrições que fiz acima a partir do tratamento que me parece pouco aprofundado do tema da massa como fenômeno estético-político, a exposição Levantes responde a essa exigência de resistência. Afinal, as obras devem sim se manter no âmbito do escândalo, contra o que queria Kant. Sem ele, elas se tornam “um prazer sem interesse”.///

 

Márcio Seligmann-Silva é doutor pela Universidade Livre de Berlim, pós-doutor por Yale e professor titular de Teoria Literária na Unicamp. É autor de Ler o Livro do Mundo (1999), O Local da Diferença (2005)  e A atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W. Adorno (2009); organizou o volume História, Memória, Literatura: o Testemunho na Era das Catástrofes (2003) e Palavra e Imagem, Memória e Escritura (2006). Foi professor visitante em Universidades no Brasil, Argentina, Alemanha e México.

 

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