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Exposição: Álbum apresenta a obra em processo de Mauro Restiffe

Agnaldo Farias & Mauro Restiffe Publicado em: 1 de novembro de 2017

Fotografia Mirante #6, 2004, de Mauro Restiffe, na exposição Álbum.

Título da grande mostra antológica de Mauro Restiffe, Álbum resulta de um considerável esforço do artista e do curador Rodrigo Moura que, ao longo de três anos, conversaram e se debruçaram sobre um vasto acervo de obras inéditas, um número da ordem de 35 mil fotografias produzidas num arco temporal que vai de 1989 até este ano de 2017, extraído do universo muito maior de 130 mil, que compõe todo o acervo do artista, até finalmente chegarem ao enxuto conjunto de 143 fotos de diversos tamanhos, invariavelmente em preto e branco, marca registrada de Restiffe. Por si só, o nome da exposição põe em perspectiva o processo de produção e seleção das obras existentes e a serem produzidas.  Fonte de infinitas combinações. Como está, ocupando um dos andares da Estação Pinacoteca, cada sala abriga um núcleo: Paisagens e multidões, Álbum, Enquadramentos e construções. E articuladas às fotografias escolhidas, a grande novidade da mostra, 25 pinturas de diferentes épocas emprestadas das coleções do MASP e da própria Pinacoteca.

O resultado é surpreendente sob vários aspectos, a começar, é claro, pela força poética do trabalho de Mauro Restiffe. É certo que a essa altura já devíamos estar acostumados com suas surpresas. Foi assim que ele, em 2002, na Galeria Thomas Cohn, em São Paulo, irrompeu no circuito profissional, numa exposição em que trançava fotografia com arquitetura e pintura, tudo isso embasando sua crítica sobre o papel protagonista da imagem no mundo contemporâneo, apesar de sua insuficiência, da sua inevitável natureza enigmática mesmo quando pensa efetuar um registro preciso do mundo. Restiffe, já de saída, ironizava as ilusões da fotografia de extração documental, a arrogância dos fotógrafos patente no nome da sua lente mais habitual: “objetiva”. A mirada do artista  aponta sempre para o que não está à vista, um exercício constante fundado no olhar divergente, oblíquo, como também para o retrato de um mundo desconcertado.

Detalhe da exposição Álbum, 2017, de Mauro Restiffe, na Estação Pinacoteca.

Moura e Restiffe aliaram-se para cascavilhar o acervo do fotógrafo. E a qualidade do que está sendo exposto atesta um artista ainda mais importante do que pensávamos. Advirta-se para o fato de que o modo como as fotografias combinadas com as pinturas são apresentadas tem um papel essencial dentro dessa exposição, tornando ostensiva a presença do curador, levando a concluir que se trata de um trabalho realizado a quatro mãos, numa proporção nivelada, o que vai além do corriqueiro, e, no tocante à montagem, impossibilita saber até onde um vai e o outro entra.

Se entre nós essa estratégia é uma novidade, por outro lado a maior ou menor presença do curador não deveria ser entendida como um problema, dado que toda e qualquer exposição passa pelo seu crivo, resulta da seleção e do modo de ajustá-la ao espaço expositivo. Um diálogo com a obra, ou com um conjunto de obras – pense-se numa coletiva –, que pode acontecer, ou não, diante dos artistas responsáveis por elas. Como bem se sabe, não existem leituras absolutas de nada, o que existem são leituras convincentes em maior ou menor grau, e entre elas as que são simplesmente deploráveis.

Nesse sentido, vale ressaltar a contribuição de Rodrigo Moura na leitura da produção contemporânea, brasileira e internacional. Há anos venho acompanhando seu trabalho, percebendo seu refinamento constante, levando-me a considerá-lo um dos nossos mais interessantes curadores em atividade. Na condição de professor universitário que leva regularmente seus estudantes à Inhotim, visitei mostras coesas, compostas por obras de alta qualidade, organizadas por ele. Penso que nossa comunidade artística ainda não reconheceu sua atuação na constituição do expressivo acervo da extraordinária artista romena Geta Brătescu e, menos ainda, louvou aquela que, salvo engano, foi sua realização maior, o verdadeiro museu consagrado à magnífica obra de Claudia Andujar.

Diante do exposto, conclui-se que o diálogo entre Moura e Restiffe só podia ser de primeira grandeza, ainda que essa qualidade não seja homogênea. Nesse sentido, para situar o leitor, convém salientar que tanto a primeira sala, reservada a Paisagens e multidões, quanto a terceira, Enquadramentos e construções, são resolvidas de modo semelhante: polípticos formados por grupos de fotografias associados a pinturas. Demonstrando grande destreza no trato com o espaço, os subconjuntos de obras não são pensados apenas isoladamente ou na relação com os outros subconjuntos. Mais do que isso, todos eles são dispostos e organizados segundo a extensão e até mesmo a posição da parede. Em Paisagens e multidões, por exemplo, a parede da esquerda acolhe fotografias e pinturas protagonizadas por paisagens. As pessoas, quando há, ficam diminuídas diante de um mundo desbordado, até o desfecho da narrativa, com um homem adernado num sofá, cochilando sob uma paisagem imensa, apenas pintada. A segunda parede, do fundo da sala, numa orientação diversa, traz a princípio paisagens vistas a partir de promontórios artificialmente construídos, a serviço do olhar dos visitantes que podem, desde um lugar seguro, contemplar a natureza. Prossegue daí para imagens pautadas em reproduções de imagens, imagens de segunda mão, até fotógrafos flagrados num mirante em busca de pontos de vista mais originais. Por fim, na terceira parede, já não há paisagem natural, mas sim vistas urbanas, e predomina o ajuntamento de pessoas, desde a Proclamação da República, representada pelo quadro de Benedito Calixto, ao lado do empossamento de Lula, cerimônia realizada em 2003.

As aproximações e colisões temporais e formais vão se sucedendo nessas duas salas. As composições são de natureza variada. Como se trata de fotografias e pinturas de dimensões diversas, e no caso das segundas deve-se considerar ainda o tamanho e o rebuscamento das molduras, os grupos ensejam muitas soluções: dípticos simples, assimétricos, polípticos estelares que se irradiam no campo da parede ou peças isoladas, contraídas como ilhas, convidando o visitante a uma apreciação mais concentrada. O exercício cuidadoso remete às apuradas lições de montagem do cineasta russo Serguei Eisenstein ou, aproximando-se do universo fotográfico, das noções de sequência de Nathan Lyons, Duane Michals e Miguel Rio Branco. A proposta é instigante e no geral bem resolvida, embora esbarre em associações fáceis, como a relação entre um Metaesquema de Hélio Oiticica e as portas abertas de um armário embutido, situação que termina por banalizar ambos achados. A grande preocupação em associações como essa é que uma peça do mosaico não tire a força do outro. Mas não quero ser injusto ao fazer essa ressalva, posto que nessas duas salas as combinações são bem-sucedidas. Minha questão é com a sala maior, a do meio, justamente a que dá nome à exposição.

O núcleo Álbum é um trabalho extraordinário, um desses tour de force diante do qual tem-se a aguda consciência que se está diante de uma obra-prima. A parede da esquerda é composta por uma longa série constituída por 75 imagens, dispostas acima e abaixo de uma linha comprida, desenhada pelo encontro das molduras de fotos e pinturas. Humilde, pungente no modo como o artista insinua-se para dentro de sua própria família, Álbum é um hino à vida comum, toda ela permeada de alegrias e tristezas, de momentos sublimes como o nascimento dos filhos, do pai, que já conhecíamos das imagens anteriores, numa cama de hospital, das crianças amontoadas numa bagunça tão corriqueira, dormindo sobre a mãe, as férias na praia, a cálida alegria pelo corpo da esposa, a contemplação de duas pessoas trepadas numa escada, curiosas com algo além do muro, a foto com o irmão, a mãe acariciando o cachorro. Vê-se tudo isso com indizível carinho, posto que tudo isso é amor. Mas uma questão se coloca:  o que aquelas pinturas estão fazendo lá? Eu rigorosamente não entendo, elas nada mais fazem senão estorvar uma narrativa que sabemos ser infinita, mais não fosse porque se trata de nossas próprias vidas. Elas são intrusas, por mais que se lhes aponte a pertinência quanto ao gênero. É uma lição de história da arte desnecessária, até porque a arte se revela justamente quando acontece de nos esquecermos dela, deixamos de reverenciá-la para quedarmo-nos extáticos, simplesmente isso. ///

 

Álbum, até o dia 6 de novembro na Estação Pinacoteca, SP.
Mais informações aqui.

 

Agnaldo Farias é professor de História da Arte da FAU-USP. Foi curador da 29a. Bienal de São Paulo em 2010 e da Bienal de Cuenca, de 2011. Atualmente está preparando a Bienal de Coimbra, de 2019.

 

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