Entrevistas

As mulheres da Yakuza

Marina Yamaoka & Chloé Jafé Publicado em: 1 de março de 2018

Série Inochi Azukemasu (A doação de sua vida), de Chloé Jafé, 2013-2017 © Chloé Jafé. Cortesia da artista.

Em 2013, a fotógrafa francesa Chloé Jafé decidiu deixar Londres, onde havia concluído seus estudos de fotografia na Central Saint Martins e trabalhado durante dois anos na agência Magnum, para se instalar no Japão. Na bagagem, uma ideia e muita coragem e paciência para executá-la: queria investigar quem são as mulheres da Yakuza, a tradicional e violenta máfia japonesa. Atraída pelo universo dos gangsters, Chloé permaneceu quatro anos no Japão, até conseguir acesso a esse universo particular e, mais do que isso, ganhar a confiança de um dos chefes da Yakuza para que pudesse fotografar o cotidiano e a intimidade do grupo.

Nesta entrevista para a ZUM, a fotógrafa conta detalhes sobre a série fotográfica Inochi Azukemasu (A doação de sua vida, em português), que revela pela primeira vez quem são as mulheres da máfia japonesa. Chloé conta como se tornou próxima e conviveu com as mulheres que fotografou, além dos testes pelos quais teve que passar para mostrar até que ponto estava pronta a doar parte de sua vida para realizar seu projeto.

De onde veio a ideia de se mudar para o Japão e entender qual o papel das mulheres na Yakuza?

Chloé Jafé: Comecei a estudar fotografia há mais de dez anos, logo após o ensino médio. Quando terminei a escola de fotografia, meu objetivo era trabalhar com moda. Sai de Lyon, minha cidade natal, e me mudei para Paris para trabalhar no estúdio Pin-Up e aprender a trabalhar com luz e fotografia de grande formato. Aprendi muito nesse “meio” da fotografia de moda, mas a experiência acabou me deixando com uma aversão a este mundo. É nesse momento, por volta de 2005, que eu fui para o Japão pela primeira vez. Fiquei três meses com uma amiga, vagueando e descobrindo esse país um tanto exótico. Essa viagem me tocou e inspirou muito. Voltei para Londres com vontade de me reconectar à fotografia e fui aceita para uma pós-graduação de um ano na Central Saint Martins. E para o projeto final do curso tive vontade de retornar ao Japão.

Durante aquela primeira viagem, encontrei um homem em um parque com quem eu desenvolvi uma relação um pouco peculiar e mantive contato durante algum tempo. De repente, parei de receber notícias dele. Foi assim que decidi que o meu projeto final seria uma série de autorretratos que contassem a história da busca por esse homem. Foi um projeto em duas partes: a primeira em preto e branco, uma pesquisa a respeito dos sentimentos e questionamentos ao redor desse homem e que realizei em Londres; e a segunda parte fotografei em cores no Japão, reconstruindo a história desse encontro até retornar ao exato lugar onde nos vimos pela primeira vez. Perguntei para as pessoas na rua se elas o conheciam ou se tinham notícias dele. Mas nunca o encontrei novamente, acho que talvez ele tenha falecido.

Quando retornei à Londres comecei a trabalhar na agência Magnum, onde aprendi muito e tive uma experiência completamente diferente da que eu tive no mundo da moda. No entanto, depois de dois anos percebi que havia deixado meu trabalho pessoal de lado e que isso me fazia muita falta. Decidi largar o emprego e me mudar para o Japão, já com a ideia de fazer o projeto com as mulheres da Yakuza. Desde a primeira viagem ao Japão me interessei muito pela história e pela cultura do país e, sobretudo, acho que sempre estive um pouco atraída pelos gangsters de uma forma geral, seja na fotografia ou na minha vida pessoal. E isso não é uma exclusividade da máfia japonesa.

Passei a assistir muitos filmes em preto e branco sobre samurais e pouco a pouco meu interesse foi se focando na Yakuza, que se vê um pouco como os samurais dos tempos modernos. Claro que não é exatamente isso, mas foi assim que cheguei neles e então passei a assistir filmes específicos sobre eles. Eu também sempre me interessei pelo papel das mulheres na sociedade e logo percebi que praticamente não havia informação disponível sobre as mulheres da máfia japonesa. Como sei que por trás de grandes homens sempre existem mulheres importantes, para mim tinha uma peça faltando no cenário. Nesse momento, entrei em contato com o livro Yakuza Moon, escrito pela filha de um membro da Yakuza, e que me inspirou muito. Tive vontade de embarcar nessa viagem, descobrir se essas mulheres existiam, quem eram elas, quais as funções que tinham na máfia, como eram fisicamente. Foi uma aposta louca. Fui para o Japão com esse desafio em mente, mas não sabia se de fato ia conseguir realizá-lo.

Série Inochi Azukemasu (A doação de sua vida), de Chloé Jafé, 2013-2017 © Chloé Jafé. Cortesia da artista.

E você havia traçado uma estratégia para encontrar os membros da Yakuza?

CJ: Quando cheguei no Japão mal conseguia me comunicar, meu japonês era muito básico. Além disso, não tinha contatos, só dois amigos, uma francesa e um japonês. Um ano inteiro se passou sem que muita coisa acontecesse, foi um período de pesquisa e de adaptação. Eu também estava em uma posição delicada: não queria falar muito sobre o projeto porque lá o tema Yakuza é um grande tabu. No entanto, em algum momento, ia precisar começar a abordar o assunto para poder avançar com a minha ideia.

Comecei a perambular bastante por Kabukicho, o “bairro vermelho” de Tóquio, que tem muitos bares de acompanhantes e onde eu potencialmente poderia encontrar membros da Yakuza. Não tinha traçado um plano e no começo não sabia muito bem como penetrar nesse mundo, tudo era feito um pouco na improvisação. Para mim, é um período um pouco sombrio. A memória que tenho é que a maioria das noites são muito longas e interessantes, mas não são “ricas” em termos fotográficos.

Em seguida, encontrei uma amiga japonesa que trabalhava como cabeleireira em bares de acompanhantes. Ela me convidou para acompanhá-la e fotografar a preparação das acompanhantes – o penteado, a indumentária. Mas me senti deslocada e tive a sensação de que estava incomodando. Percebi que elas não estavam à vontade com a minha presença. É nesse momento que eu decido que poderia ser uma ideia interessante trabalhar como acompanhante. Achei que se fosse uma delas seria mais fácil entender a vida dessas mulheres, dividir momentos e fotografá-las. Participar da experiência é o que faz sentido para mim, não tinha vontade de fazer o projeto sendo uma mera observadora.

Trabalhei como acompanhante durante dois meses. Aprendi muito sobre o trabalho: como me pentear, me vestir, os gestos para servir o saquê, conversar com os clientes. Foi um período interessante, mas mais uma vez estava numa rua sem saída. Passei por algumas situações que me assustaram, me senti pressionada.

Houve uma vez em que eu estava trabalhando como acompanhante e a minha bolsa foi roubada por uma mulher que se apresentou com uma identidade falsa e fingiu ser acompanhante por algumas horas. Isso nunca acontece no Japão. Como ela havia dado uma identidade falsa, com certeza sabia exatamente o que tinha que fazer e qual bolsa levar. Percebi na hora que isso foi claramente uma mensagem da Yakuza: eles queriam saber quem eu era. Não foi o grupo com o qual eu viria trabalhar mais tarde, mas tinha certeza que o ato estava relacionado à máfia, pois havia conversado sobre o projeto com uma colega acompanhante não fazia muito tempo e ela conhecia muitos membros da Yakuza. Pelo jeito não foi a melhor pessoa com quem deveria ter falado sobre a minha ideia, visto a resposta que tive. Eles agem com sinais. É raro te ligarem, mas eles fazem algo que vai te fazer entender que estão presentes. Esse foi um momento difícil, porque eles tinham todas as minhas informações, inclusive meu endereço. É difícil se sentir um pouco espionada, mesmo sem nenhuma má intenção da minha parte. Tive um pouco de medo de dormir durante algum tempo depois desse incidente.

Depois dos meses como acompanhante, existe um terceiro momento da minha estadia no Japão que me permitiu fazer coisas mais interessantes. É nesse momento que encontro o chefe de um dos quatro grandes grupos da Yakuza.

Série Inochi Azukemasu (A doação de sua vida), de Chloé Jafé, 2013-2017 © Chloé Jafé. Cortesia da artista.

E como foi esse encontro com o chefe da Yakuza?

CJ: Era Matsuri, um festival japonês conhecido pela presença dos Yakuza por ser o único momento do ano em que eles podem mostrar as tatuagens. Achei que poderia ser um momento para fazer contatos interessantes e fui até lá. Fiz algumas fotografias que não achei muito interessantes. No fim do dia estava cansada e sentei na calçada. Um homem de kimono, cercado de dois homens de cada lado, caminhou até mim, se aproximou e me propôs tomar uma cerveja. Eu não sabia que estava na rua dos Yakuza. Foi o acaso, um tipo de sorte provocada.

Ele me pergunta se eu sei quem ele é e me diz que é um grande chefe Yakuza. Logo entendi que essa era a minha oportunidade e que teria que trabalhar essa relação, não poderia deixar essa oportunidade passar. E foi o que fiz. Levou muito tempo até que uma relação de fato se criasse, mas aos poucos fui ganhando confiança. Levou tempo, paciência, resiliência, força de vontade e motivação. Para mim, o título do trabalho [Inochi Azukemasu] resume um pouco o que vivi, foi um período de doação. Se ganhei acesso ao universo dos Yakuza é porque estava sempre presente, motivada e, de uma certa forma, disposta a me doar para realizar o projeto.

Marquei um encontro com ele pouco tempo depois do festival. Aconselhada pelo Jake Adelstein, um amigo jornalista que trabalha há anos com criminologia no Japão, convidei o chefe para jantar, escolhi o restaurante e paguei a conta, para que tudo ficasse claro desde o princípio. Nesse jantar contei sobre o projeto e ele disse que poderia me ajudar, que achou interessante uma jovem francesa que mal falava japonês tivesse tido essa ideia. Acho que para ele foi original e surpreendente.

A minha persistência e resiliência foram importantes diante desse chefe. Ele me testou e tive que ser forte, simplesmente não podia abandonar o projeto. Eu tinha que estar sempre presente. Em alguns momentos foi um pouco desesperador, porque ele marcava encontros e simplesmente não aparecia. Algumas vezes ele me ligava dizendo que eu tinha que estar em tal lugar em 30 minutos, sendo que era preciso atravessar a cidade. Sem sombra de dúvida, esse projeto foi a minha prioridade absoluta durante quatro anos. Estava pronta a me doar para conseguir o que queria. O único limite que impus foi o do meu corpo. Em alguns momentos houve tensão e ele me testou para saber se eu estava pronta a me entregar a esse ponto. Mas isso foi algo que sempre recusei, não fazia sentido para mim.

Série Inochi Azukemasu (A doação de sua vida), de Chloé Jafé, 2013-2017 © Chloé Jafé. Cortesia da artista.

Série Inochi Azukemasu (A doação de sua vida), de Chloé Jafé, 2013-2017 © Chloé Jafé. Cortesia da artista.

Como ele interpretou o fato de você estar interessada nas mulheres da máfia?

CJ: Acho que ele teria preferido que eu me interessasse por ele. O Japão, e especialmente os Yakuza, são machistas. No entanto, acho que não teria conseguido realizar o projeto se fosse um homem. Acho que ser uma mulher foi uma força importante para poder realizar essas imagens. Ser mulher e ser estrangeira me permitiu fotografá-los.

Como o projeto se desenvolveu até você entender o papel das mulheres na organização?

CJ: No começo eram muitos jantares entre homens, o que não era exatamente o que eu buscava. Aos poucos eu fui convidada para conviver com a família do chefe, participar de festas internas e privadas. Fui tendo contato com esposas de membros da Yakuza e com suas amantes e aprendi que as mulheres não fazem parte da organização, é uma exclusividade dos homens. No entanto, essas mulheres que ficam na sombra têm outras responsabilidades. De uma forma geral, elas gerenciam as finanças domésticas e a mulher de um chefe tem um papel muito importante: caso o chefe vá preso, ou morra, é sua esposa que passa a liderar o grupo. Isso é muito raro, só aconteceu duas vezes na história do Japão, mas é por isso que ela deve estar a par de tudo que acontece internamente. Ela não diz nada, mas sabe de tudo. Na minha forma de ver as coisas, elas têm um papel de conselheira e são como o braço direito do chefe. Um poder escondido, mas simbólico.

Série Inochi Azukemasu (A doação de sua vida), de Chloé Jafé, 2013-2017 © Chloé Jafé. Cortesia da artista.

Como foi estabelecer uma relação e fotografar a guarda-costas da mulher do chefe?

CJ: A Yumi tem um papel particularmente incrível. Ela me fascinou e me intimidou desde o princípio. Precisei trabalhar duro para poder me aproximar dela. Ela tem uma vida múltipla: é mãe de dois filhos, trabalha como guarda-costa da esposa do chefe em eventos públicos, lidera um grupo nacionalista japonês e trabalha em uma casa de repouso. Além de ser interessante explorar esse leque de possibilidades, ela tem um lado masculino, uma força muito grande. E uma visão da mulher que é diferente da ocidental.

Para ela, homens e mulheres estão destinados a tarefas diferentes de acordo com seus respectivos talentos. Homens são mais fortes fisicamente, portanto devem fazer atividades que são mais exigentes fisicamente. Já as mulheres são mais dotadas de habilidades de organização, o que justifica que trabalhem com as finanças, por exemplo. É uma visão tradicional que ainda existe em boa parte do Japão.

Existe algum encontro com essas mulheres que te marcou particularmente?

CJ: Um encontro que me marcou muito foi o momento que passei com um casal. Foi um momento muito intenso e a minha sensação é de que essa imagem faz parte das fotografias que, de uma certa forma, nos são oferecidas. Esse momento “apareceu” diante de mim. É uma imagem impactante. Temos no primeiro plano um dorso musculoso e tatuado e não vemos o rosto da mulher, apenas um pouco do seu cabelo e das suas mãos.

Quando penso nesse momento, me vem à memória uma espécie de carinho entre nós três, uma tensão deliciosa. Foi uma experiência um pouco surreal. E estranha, porque o homem estava entre eu e essa mulher que eu já conhecia muito bem. Nós duas havíamos conversado muito sobre o amor e relações com homens, já estávamos muito conectadas. Eu estava literalmente sobre ele para poder fotografar. Quando ele se levantou, nós duas estávamos muito emocionadas. Não foi adrenalina, foi um pouco como borboletas no estômago. Não sei dar um nome para esse momento de emoção.

É raro isso acontecer comigo e é o que existe de mais bonito. Acho que é o que a gente busca. De toda maneira, é o que procuro quando faço imagens: ser tocada antes de clicar e nesse caso foi isso que aconteceu.

Para mim foi uma prova de confiança. Era o trabalho que eu havia feito durante quatro anos. A gente se falou bastante, criou uma relação e a imagem também é o resultado de uma amizade. É muito simbólico. Há cumplicidade, o que pra mim era importante, já que estou contando as histórias dessas pessoas. Uma grande responsabilidade. É por isso que esse projeto contempla textos, polaróides nas quais elas desenharam, pintaram e se expressaram. Trata-se de um verdadeiro momento de partilha.

Série Inochi Azukemasu (A doação de sua vida), de Chloé Jafé, 2013-2017 © Chloé Jafé. Cortesia da artista.

Você pode falar um pouco mais sobre os diversos suportes que usou? Em algumas fotografias você fez intervenções com guache.

CJ: A priori, fotografo em preto e branco. Simplesmente não visualizava esse projeto em cores. A intervenção da pintura se fez de forma instintiva, quando comecei a ampliar as fotos para começar a trabalhar na edição e seleção. Algumas imagens apareceram e eu simplesmente tive vontade de pegar o pincel. Era a imagem que eu havia visualizado. A mulher que está deitada, por exemplo, eu adicionei ondas. Essa foi a visão que tive quando tirei a foto. Para mim ela flutuava e me deu vontade de adicionar as emoções que tive com essas imagens.

Vivi muitos momentos surreais com essas mulheres, momentos em que me sentia em um filme. E essas intervenções permitiram me expressar à minha maneira. Queria que o projeto tivesse várias camadas, por isso os textos, pinturas e polaróides nas quais essas mulheres também puderam intervir e se expressar.

Série Inochi Azukemasu (A doação de sua vida), de Chloé Jafé, 2013-2017 © Chloé Jafé. Cortesia da artista.

Quais foram suas inspirações ou referências para realizar o projeto?

CJ: Para o projeto em si não havia muita referência, já que não havia informações sobre as mulheres Yakuza. Para as fotografias posadas me inspirei em Ozuma Kaname, pintor japonês que produziu imagens de mulheres tatuadas e que trabalhou muito próximo do tatuador Horiyoshi-san. Também me inspirei, e fui aconselhada, pela formidável tatuadora japonesa Horiren.///

 

Chloé Jafé (1984) estudou fotografia na Ecole de Condé (Lyon) e na Central Saint Martins (Londres). Trabalhou no escritório londrino da Magnum até 2013, quando mudou-se para Tóquio para se dedicar ao projeto de fotografar a yakusa.

Marina Yamaoka é jornalista e produtora de documentários e projetos multimídia, entre eles o longa-metragem O Jabuti e a Anta, parte da Mostra Competitiva do 18o Festival do Rio de Janeiro, e a websérie Linhas, finalista do prêmio Gabriel Garcia Marquez 2015 na categoria Imagem.

 

 

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