Entrevistas

O capítulo ausente na história dos fotolivros africanos

Ana Paula Vitorio, P. Wamaitha Ng'ang'a & Elsie Kibue Publicado em: 25 de março de 2022

Fotolivro Kenya Burning – Mgogoro Baada ya Uchaguzi, 2009

As compilações publicadas nas duas primeiras décadas deste século 21 contribuíram significativamente para o aumento da atenção aos fotolivros no mundo inteiro. O que ocorre é que essas antologias são tão importantes como propulsoras de interesse quanto sintomáticas das questões geopolíticas que nos afligem. Produzidas majoritariamente por críticos e historiadores europeus, as mais conhecidas coletâneas de fotolivros pouco se dedicam às produções do sul global. No que se refere ao continente africano, verifica-se não só a escassez de obras relacionadas aos seus 54 países nas grandes publicações que pretensamente cobrem a história mundial dos fotolivros, como também a exígua presença da autoria africana em bases de dados dedicadas aos livros fotográficos relacionados à própria África.

Embora o cenário evidencie o peso do olhar colonial, neocolonial e ocidental sobre o registro e difusão da fotografia e do fotolivro africanos, ele certamente não impede que fotógrafos nascidos no continente criem livros que documentem seu próprio povo, produzam narrativas e experimentem a fotografia como linguagem e mesmo como objeto estético. Foi por estarem atentas a esses dados reveladores de disparidades que Elsie Kibue e P. Wamaitha Ng’ang’a idealizaram o The African Photobook (TAP). O projeto, que completa agora em março seu primeiro ano de existência, enfrenta o desafio de identificar, mapear e divulgar fotolivros produzidos por fotógrafos e artistas visuais de 10 países que integram a África Oriental – Burundi, Djibouti, Eritreia, Etiópia, Quênia, Ruanda, Somália, Sudão do Sul, Tanzânia e Uganda.

Como uma base de dados, The African Photobook certamente caminha para se tornar cada vez mais relevante pelas obras que cataloga. Contudo, a importância do projeto reside em sua própria existência, que lança luz sobre a dificuldade e a urgência de tornar conhecida e acessível uma produção criativa que, apesar de ignorada por grande parte dos interessados por fotografia e fotolivros, pode promover convergências na maneira como o mundo concebe representações visuais do continente africano, especialmente de sua porção oriental. Nesta entrevista com Elsie e Wamaitha, convidei as idealizadoras do TAP a fazer um balanço do primeiro ano de trabalho. Na conversa, elas falam sobre a importância do mapeamento de fotolivros do leste africano (e do continente em geral), além de refletirem sobre os planos e desafios de manter o projeto em curso.

Ao longo da história, o continente africano tem sido objeto de interesse fotográfico. A respeito dos fotolivros, especificamente, há um vasto número de publicações – a maioria do século 19 e da primeira metade do século 20 – produzidas por fotógrafos europeus sobre a África. Quando vocês descrevem o TAP, enfatizam o interesse pelos fotolivros produzidos por “fotógrafos nativos africanos”. Por que é tão importante olharmos para os livros produzidos pelos próprios africanos? E por que é tão difícil encontrar essas obras?

Elsie: Nos livros produzidos pelos africanos, os fotógrafos e artistas usam suas próprias linguagens e perspectivas para contar a própria história. Isso é algo que tem sido negligenciado por décadas e acredito que devemos incentivar as gerações atuais e futuras a olhar para esses trabalhos. São fotolivros muito difíceis de serem encontrados porque o sistema vigente não incentiva a produção nem o arquivamento de livros dessa natureza. Nós temos descoberto, inclusive, que os poucos livros que conseguimos obter são financiados por organizações ocidentais ou têm editoras sediadas fora da África.

Wamaitha: Estamos tentando lidar com os usos da fotografia, em perspectivas coloniais e neocoloniais, que exploram a representação de regiões e pessoas – são saques e abusos praticados pela hegemonia. Trata-se do complexo do branco salvador que leva o homem branco de classe média a acreditar que é detentor da indústria fotográfica, da mentalidade que crê que os africanos não são podem realizar ou alcançar muito sem recorrer ao saber branco do Ocidente. Observando deste ponto de vista, a validação precisa vir do norte global. Mas os fotógrafos negros africanos têm desmantelado esse sistema, estão investindo em suas próprias carreiras. Eles têm feito isso por meio da autorrepresentação, da autodefesa, e do uso de suas vozes individual e coletiva, mas eles precisam de recursos para a publicação e divulgação de livros.

Qual a razão para o recorte focado nas produções da África Oriental? Por que não as produções do sul ou norte, por exemplo? E qual a importância em diferenciar os fotolivros do leste africano dos produzidos no restante do continente?

Elsie: O motivo de nos dedicarmos à África Oriental é basicamente o fato de sermos de lá, mais precisamente do Quênia. Para nós, fazia sentido focarmos em uma região perto de casa. É muito importante diferenciarmos os fotolivros do leste africano do restante da produção no continente porque estamos tratando de livros que são relativamente desconhecidos. Você pode encontrar sem grandes dificuldades fotolivros do oeste e sul africanos, mas esse não é o caso quando se trata do leste. E você logo descobre que o norte e o centro da África também são um pouco negligenciados.

Wamaitha: Exatamente. Há todo um capítulo ausente sobre a história da fotografia e os fotolivros da África Oriental. Encontrar textos, pesquisas e fotolivros do leste africano era uma tarefa muito difícil quando estudávamos fotografia [na Universidade Westminster].

 

No geral, como vocês veem o curso histórico do fotolivro no leste africano?

Elsie: O que se sabe a respeito do curso histórico dos fotolivros na África Oriental ainda é muito vago e isso precisa mudar. Nós do TAP planejamos poder contar com historiadores, escritores e acadêmicos que contribuam para a mudança desse cenário. Aceitamos todas e quaisquer sugestões sobre como tornar essas informações cada vez mais acessíveis a todos.

Wamaitha: Nós estamos apontando para um capítulo ausente e isso já é um grande começo. Demos o primeiro passo em uma iniciativa que pode instigar a mudança tão necessária e incentivar outras pessoas a fazê-las.

 

Como a colonização e seus efeitos agem sobre a produção de fotolivros no leste africano?

Elsie: A colonização, obviamente, atua de maneira significativa em como os fotolivros, e a fotografia em particular, são produzidos na África. Muitos fotolivros, principalmente os de recorte histórico, foram produzidos nesse período. Por mais que esses livros sejam importantes como documentação de uma época, trazem sempre uma visão unilateral de um quadro mais amplo, por isso não são o melhor ponto de abordagem. É justamente por isso que eu gostaria de ver uma base de dados como o TAP sendo usado para informar sobre essas questões, contribuindo para mudanças nas narrativas.

 

Por enquanto, o TAP ainda é financiado por vocês duas, que também são idealizadoras e compõem toda a equipe de trabalho. Como vocês lidam com as demandas e o que vocês fazem para conseguir tocar o projeto?

Elsie: Nós nos atentamos às demandas uma por vez. Para nós, esse projeto é uma maratona e não uma corrida de velocidade. Temos opções para que as pessoas contribuam conosco, enviem livros e façam doações que ajudem a financiar a iniciativa. Desde o início, sempre estivemos cientes que esse projeto não é só nosso, mas algo feito para a comunidade como um todo.

Wamaitha: Estamos fazendo isso por essa geração e pelas futuras. É uma livraria, uma base de dados e um arquivo. É visão de longo prazo, esse tipo de projeto leva tempo. E quanto mais atingirmos nossos objetivos, mais teremos o que fazer para arquivar e divulgar os fotolivros e todos os outros materiais que teremos.

Vocês duas são fotógrafas, artistas visuais e pesquisadoras que atualmente estão sediadas em Londres, certo? Como vocês descobrem os fotolivros a serem catalogados? Quais mecanismos e ferramentas vocês usam para identificar e acessar essas publicações?

Elsie: Sim, estamos as duas baseadas em Londres. Nós descobrimos os fotolivros de várias formas – boca a boca, redes sociais, eventos, pesquisas online, por meio de outras publicações etc. O acesso aos livros pode ocorrer tanto por meio da aquisição do exemplar impresso quanto por meio de versões em pdf que podem ser encaminhados a nós para inclusão na base de dados.

Qual é o fotolivro mais antigo produzido por um fotógrafo do leste africano sobre o qual vocês têm notícias?

Elsie: Essa é uma ótima pergunta. Eu já vi algumas publicações do fotojornalista queniano Mohamed Amin, mas eu não estou 100% certa de que elas se enquadrem na categoria fotolivro. Caso o façam, esses seriam, para mim, os fotolivros mais antigos produzidos por um africano do leste. E é aí que vem o desafio quando tentamos obter esses livros. É difícil determinar quem foi o primeiro a publicar um livro localmente. Esperamos que quanto mais pessoas tomem conhecimento do banco de dados e o que estamos tentando fazer, mais elas se manifestem e compartilhem conosco informações sobre os livros históricos.

Vocês poderiam destacar alguns fotolivros da África Oriental que vocês consideram entre os mais importantes? Podem me contar um pouco do que sabem sobre essas obras?

Elsie: Cada livro registrado em nossa plataforma tem sua particular importância, são todos distintos nas maneiras como abordam seus tópicos – que vão de meio ambiente à moda, política e assim por diante. Recentemente apresentamos o fotolivro de um fotógrafo tanzaniano chamado John Kiyaya. É possível ler sobre essa publicação no nosso site.

Apesar de o The African Photobook ser um projeto em fase inicial, vocês poderiam me dizer se é possível já identificar como as especificidades dos países são refletidas em seus fotolivros? Ou mesmo como as particularidades da África Oriental se refletem nos livros fotográficos da região?

Elsie: As especificidades de cada país ficam evidente quando observamos que, ao desenvolverem seus trabalhos, os artistas baseiam-se em suas próprias experiências e ambientes, mesmo que vivam na diáspora. Kenyan Burning, por exemplo, é um livro feito durante a violência pós-eleitoral de 2007 no Quênia.

Não posso falar pelos artistas sobre como eles refletem a si mesmos enquanto produzem seus fotolivros, mas estou certa que, no processo criativo de seus livros, eles estão cientes das histórias que devem ser contadas e oferecidas às gerações futuras por meio das representações visuais. Também estou certa de que esses fotógrafos sabem da importância de ter um trabalho publicado, porque há sempre a menção do pioneirismo histórico no que se refere à apresentação da perspectiva de um nativo da região.

Wamaitha: São a beleza e o poder de contar a história. Os diferentes contextos fornecem diferentes perspectivas que são não apenas particulares do fotógrafo, do ambiente e do país, como uma história coletiva da experiência africana. Olhar o livro da Tanzânia, por exemplo, me remete à minha experiência de crescer no Quênia.

Quais são os planos para o TAP? E quais frutos vocês esperam que um projeto como este produza?

Elsie: Por ora, nossos planos são apenas pegar todos os fotolivros que encontrarmos e compartilhá-los em nosso site. Esperamos que isso incentive outros fotógrafos/artistas da região a publicarem os seus trabalhos. O TAP é um projeto comunitário. Não podemos fazer isso sem a ajuda de todos que estão na indústria criativa ou mesmo daqueles que acreditam em nossa visão. O nosso plano é ver esta plataforma continuar a ser uma fonte de informação e esperamos que um dia possamos publicar a nossa própria antologia de fotolivros da África Oriental.

Wamaitha: O céu é o limite! Estou animada para ver o que se desenrola à medida que continuamos a dar um passo por vez. ///

Elsie Kibue-Ngare é uma fotógrafa queniana que vive em Londres. Seu trabalho concentra-se principalmente em retratos, documentários, esportes e eventos.

Wamaitha Ng’ang’a é uma artista interdisciplinar nascida no Quênia e baseada em Londres. Dedica-se a trabalhos que confrontam problemas contemporâneos relacionados aos direitos da mulher e da criança, entre outras questões sociais, políticas, ambientais e de identidade cultural.

Ana Paula Vitorio é pesquisadora. Doutora em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio, atualmente é pós-doc no departamento de Linguística e Práticas da Linguagem da University of the Free State (África do Sul).

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