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Ocupar os memes é preciso

Giselle Beiguelman Publicado em: 30 de maio de 2018

Os memes se tornaram o formato de imagem característico da internet. Imagens irônicas e feitas para serem compartilhadas expressam uma cultura de apropriação e de consumo rápido, que adere a temas do momento. Os mais disseminados são os que trazem imagens acompanhadas de textos curtos em letras garrafais, tecnicamente chamados de Image-macro. Agregadores de linguagem, constituem o que o filósofo francês Jacques Rancière chamou de “frase-imagem”. Um formato em que o texto não funciona como complemento explicativo da imagem nem a imagem ilustra o texto, mas os dois elementos encadeiam-se para produzir um terceiro sentido.

O termo “meme” foi cunhado muito antes da internet pelo biólogo inglês Richard Dawkins, em 1976, em O gene egoísta. Mas alguns dos atributos que associou aos memes, especialmente quanto à forma de propagação e ao poder de contestação, explicam a popularização do conceito. Mais citada que lida, na teoria de Dawkins, o meme é uma unidade replicadora que se alastra por imitação, sempre sujeito à mutação e à mistura, e que funciona como resistência crítica. Isso porque nos dá o poder “de nos revoltar contra nossos criadores” e de “nos rebelar contra a tirania dos replicadores [os genes] egoístas”.

Foi nos anos 2000 que o termo ganhou força e a compreensão que temos na atualidade, explodindo nas redes sociais, via o fluxo de compartilhamento, no Twitter, Facebook e Instagram. Nesse contexto, os memes expandiram-se, incluindo não só o mundo pop, mas também o da publicidade e o da política, instituindo outra forma de comunicação visual, desvinculada do universo evolucionista de Dawkins.

Para além das brincadeiras cotidianas com celebridades, torcidas de futebol, novelas e afins, os memes transformaram-se em uma espécie de comentário à queima-roupa de todos os acontecimentos cotidianos, constituindo um noticiário paralelo, baseado em imagens. Se antigamente valia o slogan: “Aconteceu, virou Manchete”, associado à primeira revista homônima do grupo Bloch, hoje o correto seria dizer: “Aconteceu, virou meme”. Que o diga a greve dos caminhoneiros, iniciada em 18 de maio. Parou o país e desabasteceu inúmeros setores, menos o da produção de memes.

Fotos dos caminhões parados nas estradas foram apropriadas para ilustrar eventos hilários no Facebook, como festas de “Niver para Optimus Prime” (o líder dos robôs autobots, que no filme Transformers “incorpora” um caminhão vermelho com chamas azuis). Criaram-se novos ditados para tempos difíceis, como “Beba, não dirija”, e até novos sentidos para as pedaladas que derrubaram a ex-presidente Dilma Roussef, em imagens recuperadas de seus famosos passeios de bicicleta: “Quem diria que a pedalada seria a solução para boa parte dos brasileiros, hein?”

Com o impacto gerado pela falta de combustíveis, imaginaram-se novos cenários dominados por jegues, carroças e patinetes, e alguns, mais pessimistas, já anunciam um súbito aumento no preço dos chinelos, “Para quem vai andar a pé”. Não faltaram memes com Batman humilhando Robin, com a capa do disco Chico Buarque de Hollanda (1966), com Seu Madruga, Chaves e a musa dos memes nacionais, Bela Gil, acompanhada da indefectível frase: “Você pode substituir… por…”.

Migrantes e fluidos, compostos com os resíduos que saem de uma mídia para a outra, da tevê às interfaces das redes sociais, os memes são instâncias midiáticas de alta circulação que produzem o apagamento dos seus rastros nos processos de deslocamento e apropriação contínua. De baixa resolução, bastardos e sem assinatura, são imagens pobres, no sentido dado pela artista e ensaísta alemã Hito Steyerl à expressão, que podem atuar como um contraponto aos sistemas de representação dominantes.

Contudo, na atualização das mesmas imagens que são utilizadas recorrentemente, muitas vezes por grupos antagônicos, com novas legendas, revela-se uma contração do repertório visual que é criado nas redes. Conjugada ao imediatismo, concisão e volatilidade dos memes, essa repetição expressa, também, a impossibilidade de discussão e reflexão que impera no modelo de redes sociais atual. Isso ganha maior relevância na medida em que os memes passam a ser um instrumento político e cada vez mais usado nas campanhas eleitorais.

A última eleição presidencial dos Estados Unidos dá a medida desse impacto. A produção de memes esteve presente desde as primárias do Partido Democrata, em fevereiro de 2016, em apoio ao candidato de esquerda Bernie Sanders contra Hillary Clinton, e marcou a disputa entre Hillary e Trump até o final do pleito. Não por acaso, a eleição entrou para a história da internet como a Grande Guerra dos Memes de 2016.

Também no Brasil os memes participam das eleições desde 2014, mas nada que se compare ao aspecto bélico das eleições nos Estados Unidos. Foi ao longo do processo que culminou no impeachment da presidente Dilma Rousseff que o uso de memes tomou o debate o político brasileiro e vem assumindo um protagonismo cada vez maior.

Os memes dominaram a arena política de tal forma que o presidente Michel Temer chegou a proibir, em maio de 2017, o uso de sua imagem fora de contextos jornalísticos e de divulgação de ações presidenciais. Notificações foram enviadas a alguns sites e páginas humorísticas. O efeito foi bombástico e reverso. Imediatamente multiplicaram-se os memes com a figura do presidente, ao invés de controlá-los. Reportagens de tevê e até da imprensa internacional (The New York Times) maximizaram os efeitos, culminando com o “troco” do PT, que na época resolveu liberar todas as suas fotos disponíveis no Flickr para esse fim.

O veto foi uma tentativa de reagir à forma como as redes se pronunciaram a respeito da delação da JBS que implicava o presidente Temer. O governo recuou nessa tentativa de controle e ainda muitos capítulos se sucederam na Operação Lava-Jato. Para além desse fato pontual, ficava claro que estávamos diante de um novo contexto, não só da história da política, mas também das imagens.

Foi-se o tempo em que a visualidade da política concentrava-se nas máquinas de propaganda do Estado e em campanhas de “santinhos” impressos, fotos e vídeos dos candidatos em comícios, carregando criancinhas em favelas, tomando café em bares da periferia e inaugurando obras. Hoje estamos diante de um novo arco de produção simbólica que inclui a tomada das telas de tevê no horário nobre, infiltrações na primeira página do jornal e muitos memes.

É verdade que a relação entre imagem e política não é nova. Central nos totalitarismos dos anos 1930, constituiu o pilar de sustentação da sociedade do espetáculo conceituada pelo pensador francês Guy Debord, na qual “o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens”. Contudo, a associação entre imagem e política agora é de outra ordem. Mais que lugar e meio de transmissão de ideias e linguagens, a imagem é o próprio campo das tensões políticas. É na imagem, e não a partir dela, que os embates se projetam socialmente. Na explosão de fotos, vídeos e muitos memes que desembocam rapidamente nas redes, a imagem se converte em um dos territórios de disputa mais importantes da atualidade.

Um caso autoexplicativo desse fenômeno ocorreu nos primeiros dias de 2018, via post no Facebook feito pela deputada federal Cristiane Brasil. Indicada ao Ministério do Trabalho, Brasil decidiu gravar um vídeo no qual se defendia, a bordo de uma lancha, acompanhada de amigos marombados, em trajes de banho, da acusação de ter respondido a ações trabalhistas.

Um dos bordões mais conhecidos da internet para abrir o compartilhamento de um meme sobre o Brasil é: “Regras: não há regras”. Se existia alguma dúvida sobre a precisão da frase, o vídeo, e os incontáveis memes que gerou, as desfizeram para sempre. Era só um prenúncio de outras séries inusitadas, como a batalha verbal entre os Ministros do Supremo Tribunal Gilmar Mendes e Roberto Barroso que virou até um poema, com uma versão “interpretada” por Maria Bethânia (“Gilmar, pessoa horrível”) e um funk (“MC Gilmar e MC Barroso”).

Pesquisadores, como a israelense Limor Shifman e, no Brasil, Viktor Chagas, destacam que os memes da internet são um gênero midiático que assume múltiplas formas, mas que são sempre marcados pelo humor, com potencial para subverter as mídias tradicionais, e se desenvolvem através da sua dimensão social nas redes. Outros teóricos, como os holandeses Geert Lovink e Marc Tuters, chamam a atenção para sua capacidade de quebrar os limites do politicamente correto, indo muito além do que as mídias de massa poderiam suportar. Nesse flanco, abrem espaço para uma nova geração de imagens de ódio que têm se tornado recorrente nas redes sociais. Nelas, conteúdos racistas, antissemitas, anti-islâmicos e homofóbicos são comuns.

Por aqui, no Brasil, os memes que exploram a imagem da amputação do dedo mínimo do ex-presidente Lula são incontáveis. Sua virulência dispensa comentários, mas evidencia que é bem provável que teremos, nas próximas eleições, nossa própria Guerra de Memes. Não sei se tão crucial quanto a ocorrida na eleição presidencial norte-americana de 2016, mas certamente com índices de agressividade semelhantes ou maiores.

Na medida em que os memes ganham importância, seu formato de frase-imagem passa a contaminar o espectro estético da política e a funcionar como referencial no âmbito da comunicação visual contemporânea. Uma propaganda de cheeseburger, produzida com estilo calcado no modelo dos memes, em homenagem ao ex-presidente general Geisel, é uma pista do que pode estar por vir.

Criada depois da divulgação, no dia 10 de maio, do memorando do diretor da CIA que revelava que Geisel autorizou a execução de opositores na ditadura militar, vinha acompanhada do slogan: “O hambúrguer que manda sua fome para a vala”. Viralizou, rendendo ao seu autor, e dono do bar, mais de 8.000 curtidas e cerca de 3.500 compartilhamentos. É hora de pensar em como criar imaginários alternativos que façam frente ao universo simbólico de apologia à violência e cerceamento da liberdade que toma as redes e as ruas. Antes que ela se torne dominante nos memes e na política.///

 

Giselle Beiguelman é artista e professora da FAUUSP. Assina a coluna Ouvir Imagens na Rádio USP e é autora de Futuros Possíveis: arte, museus e arquivos digitais (2014), entre outros. Entre seus projetos recentes, destacam-se Odiolândia (2017), Memória da Amnésia (2015) e a curadoria de Arquinterface: a cidade expandida pelas redes (2015).

 

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