Bolsa de fotografia

Diário de viagem #3: uma guerra teatral em Carepa, Colômbia

Trëma Publicado em: 4 de março de 2016

O coletivo Trëma esteve na Colômbia com o intuito de registrar lembranças de um recém-imigrado para o Brasil. O trabalho faz parte do projeto Memento, vencedor da Bolsa de Fotografia ZUM/IMS de 2015, e foi realizado em várias cidades do estado de Antioquia, no noroeste do país. O texto abaixo é de Tomás Chiaverini, colaborador do Trëma neste projeto.

Base militar em Carepa, Colômbia. © Trëma

Base militar em Carepa, Colômbia. © Trëma

Na 17a Brigada do Exército Colombiano, localizada no município de Carepa, Antioquia, o toque de despertar ocorre às quatro da manhã. Pouco depois das sete, a base está em plena atividade. Soldados marcham em formação, cadetes assistem aulas e oficiais despacham em seus gabinetes climatizados. Tudo ao redor soa como o retrato mental que se tem de uma base militar.

Tudo, com exceção do campo de treinamento em direitos humanos. Ali, a atmosfera marcial é substituída por um curioso clima de quermesse. No gramado retangular, cercado de floresta, foram instaladas barracas de madeira, representando diferentes estabelecimentos da cidade. Há o ministério público, a prefeitura, o pronto-socorro, a igreja e, claro, o botequim.

Nessas bancas improvisadas, ou diante delas, atores amadores encarnam os cidadãos do povoado imaginário. A maioria é composta por soldados sem farda, ligeiramente caracterizados. O que incorpora o padre usa uma estola roxa, o médico carrega um estetoscópio ao redor do pescoço e o promotor gesticula com uma pasta de documentos.

Nesse teatro matinal, o bar ocupa posição de destaque. Ao redor de uma mesa de plástico, mulheres fingem beber cerveja, gritam e riem alto. São todas moradoras da região, que participam voluntariamente do exercício. Toda menos uma, que também se destaca no conjunto do espetáculo: trata-se de um militar metido num vestidinho florido, com direito a seios postiços e peruca azul. Ele assume com especial desenvoltura o papel que lhe foi confiado, no melhor estilo burlesco drag queen.

O treinamento, contudo, é sério, e tem por objetivo ensinar a tropa a lidar com os civis, e seu comportamento tão irritantemente imprevisível e variado. Assim, todos posicionados, o instrutor dá a ordem para que se inicie o exercício. Sorrateiramente, os soldados emergem da selva. Estão completamente fardados e paramentados, com direito a pintura de guerra no rosto, fuzis, metralhadoras e lançadores de granada. São militares profissionais e têm a estrutura de um pelotão de contraguerrilha.

Base militar em Carepa, Colômbia. © Trëma

Base militar em Carepa, Colômbia. © Trëma

Cinematograficamente atentos, eles perscrutam o entorno, depois, obedecendo às ordens transmitidas pelos sinais silenciosos do líder, avançam pelos flancos, formando um perímetro em volta da cidadela. Quando o espaço parece seguro, um grupo se adianta para fazer contato. A coisa começa bem. Ministério público, igreja, pronto-socorro, todos recebem os soldados com educação e hospitalidade.

Mas, quando chegam ao bar, o caldo entorna. As mulheres fazem algazarra, agarram os militares pelo braço, acariciam os uniformes, tentam convencê-los a se sentarem à mesa coberta com latinhas vazias de cerveja. Num momento de distração de um dos sodados, o colega da peruca azul aproveita para lhe furtar o fuzil, sai correndo com os peitos postiços chacoalhando, e se mete na barraca do pronto-socorro. O dono da arma, escoltado por outros soldados tenta entrar em busca do ladrão, mas é barrado pelo médico. A confusão se instala. E, quando chega ao auge, duas explosões ribombam na mata, seguidas por uma rajada cenográfica de metralhadora.

Os soldados se atiram ao chão com fuzis em riste e o comandante dá ordem para dispararem. Como ali é tudo de mentirinha e ninguém tem munição (real ou de festim) eles teatralizam os tiros, gritando: “tá-tá-tá, tá-tá-tá”.

A partir daí, o espetáculo avança algo caótico e vai aos poucos arrefecendo. Um ator guerrilheiro se finge de morto para que os soldados aprendam a isolar a cena do crime. Os demais abandonam aos poucos seus papéis e se dispersam conversando, rindo e tirando selfies, num clima que ainda parece mais próprio a uma festa junina de interior do que a uma caserna de um país em guerra.///

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