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O futuro das ruínas na era do esquecimento programado

Giselle Beiguelman Publicado em: 20 de maio de 2019

Praça dos Museus da USP, 2017, projeto de Paulo Mendes da Rocha. Por Ana Ottoni em ensaio sobre as ruínas do brutalismo paulista.

Como não pensar em ruínas, diante do dilaceramento político e social que vivemos, assombrados pela catástrofe? Tema caro ao imaginário fotográfico, as ruínas se impõem como protagonistas e chaves de interpretação do contexto urbano desde o século 19. Não apenas porque foram recorrentemente retratadas, mas também porque nenhuma arte foi tão decisiva para sacralizar a crença no futuro como a fotografia. Basta lembrar das imagens de Marc Ferrez sobre as obras de infraestutura do Rio de Janeiro, como fotógrafo da Comissão Geológica do Império do Brasil (1875-1878) e da construção das grandes ferrovias brasileiras. Em exposição no IMS Paulista, suas imagens, para além do rigor estético e invenção tecnológica, documentam uma época em que se acreditava na continuidade de progresso e no poder de imortalidade que a fotografia prometia às conquistas da indústria.

Construção da Estrada de Ferro Santos Jundiaí pela Sao Paulo Railway, c. 1880, foto de Marc Ferrez em exposição no IMS Paulista em Marc Ferrez: Território e imagem. Coleção Gilberto Ferrez / Acervo IMS.

O filósofo e crítico de arte Nelson Brissac chama a atenção, em Paisagens urbanas (1997), para o paradoxo que aproxima as imagens da ruína das de obras urbanas no séculos no século 19: “a majestade da grande cidade se acompanha da sua decrepitude. É na medida que se destrói que a cidade aflora como permanência. As paisagens urbanas estão sempre em devir.”

Até o fim dos anos 1920, a imagem da ruína não é um prenúncio do fim, pois guarda a potência para presentificar aquilo que é vivo na morte, como escreveu Walter Benjamin em O drama barroco alemão. Acalentava uma ideia de futuro, ainda que esse futuro fosse projetado em um passado que não foi. Mas hoje, diante dos desmoronamentos cotidianos, de incêndios que consomem patrimônios e desastres ecológicos e políticos, que engolem vidas e soterram paisagens, o que prevalece é o sentido da catástrofe, do tempo que não terá um depois. O Museu Nacional, Notre-Dame, Brumadinho são algumas evidências desse novo tempo das catástrofes que domina o nosso presente.

Aparece com tons apocalípticos, como na nova série do artista Alex Flemming, que inaugura exposição dia 15 de junho, na Kirche am Hohenzollernplatz (Igreja da Hohenzollernplatz ), em Berlim; ou ceticamente desencantados, como no ensaio fotográfico de Ana Ottoni sobre as ruínas brutalistas paulistas. Nesse espectro, a contemporaneidade manifesta-se como imagem da “falência do projeto moderno e retrato dos nossos desastres político-institucionais”, nas palavras de Ottoni. No silêncio da sua decrepitude, ruínas de arquiteturas que se impuseram como antinômicas ao passado, como as modernistas, tornam-se um enigma do presente que não remete a qualquer futuro.

Flemming comenta que sua série Apocalipse (2019) foi realizada com imagens feitas com fotos trabalhadas como máscaras-stencils, porque isso lhe permite “literalmente desconstruir os edifícios símbolos escolhidos como representantes do ‘mundo de cultura’, ameaçado em se tornar passado destruído, como Palmira ou os Budas de Bamyan.” Para ele, a imagem é o seu “privilégio para comentar o mundo”, “um alerta”, e ele espera “que não seja profecia.” A advertência tem propósito, até porque sua imagem de Notre-Dame em colapso foi feita em 2015.

Um dos mais importantes símbolos de Paris, imortalizada pelo corcunda que protagonizou o livro mais popular do escritor Victor Hugo (O corcunda de Notre-Dame, 1831), a imagem da catedral em chamas levou a Internet ao delírio, quando do seu trágico incêndio em 15 de abril de 2019. Registrado aos quaquilhões de bytes, a inumerável quantidade de fotos das suas torres nas redes sociais fazia jus à febre da ruin porn. Essa ruína pornográfica é uma espécie de doença da cultura visual contemporânea. Inebriada pelo espírito “retromaníaco” do mundo do design, que clona de geladeiras dos anos 1950 a grilhões de escravos como adereços de tênis, é uma ode ao esvaziamento da história pela banalização das imagens.

É a razão de ser de projetos como Yolocaust (2017), do artista israelense Shahak Shapira, que manipula selfies em lugares de memória do Holocausto. Nas suas montagens, Shapira critica a estética inapropriada da cultura das redes para lidar com espaços marcados por passados traumáticos. O mesmo fenômeno pode transformar o complexo Barca Nostra, do artista suíço-islandês Christoph Büchel, em exibição na 58a Bienal de Veneza, em um clichê instagramático cheio de senões, a despeito das intenções do artista, cuja trajetória é marcada por um corpo a corpo com a história do presente e as políticas de exclusão europeias.

Em Barca Nostra, Büchel remonta o barco de pesca que afundou no Mediterrâneo, matando 800 pessoas em 2015. Considerada a maior tragédia da atual crise migratória da Europa, o naufrágio é objeto de um Memorial que se planeja construir em Augusta, na Sicília, para onde o barco deve migrar depois de Veneza.

Malgrado o rigor que cerca a empreitada, que envolveu um meticuloso trabalho de reconstrução e toda uma negociação para que fosse retirado de Augusta e levado ao Arsenal, sua inserção em um cenário tão appealing, como a cidade de Veneza, pode transformar a ideia de mobilizar a consciência política dos visitantes e a memória histórica num pano de fundo para imagens sorridentes e banais. Pois como ignorar que vivemos uma época em que a memória tornou-se um souvenir descartável e qualquer violência converte-se em imagem de consumo fácil?

Nesse contexto, ganham relevância obras artísticas que se nutrem da própria imagem para desconstruir o sentido apaziguador que a fotografia adquiriu ao sabor das redes. Como acontece em Disruptions (2015-2019), do fotógrafo palestino Taysir Batniji, baseado na França desde 1994. Em exposição no MAC VAL (Vitry-sur-Seine) até agosto, a série é um conjunto de 86 screenshots de videochamadas com sua mãe e a família, residente em Gaza, onde ele nasceu e cresceu, mas para onde não pode voltar desde 2006 por conta do bloqueio israelense.

Pixelizadas, corrompidas, fragmentadas, as imagens trazem todas as marcas das interrupções contemporâneas: exílio, nomadismo e deslocamento (social e afetivo, sobretudo). São imagens que se afinam com o glitch, a estética do ruído comunicacional e da ruína tecnológica. Ela atua como um contraponto às visões lineares de progresso e nos permite repensar a tecnologia de pontos de vista que são menos eufóricos e conservadores, contextualizando-a em relação a perspectivas de instabilidade e desorganização social.

Os artistas que trabalham sobre esses temas operam a partir das iminências da perda dos dados e com a potencial impossibilidade de restauração das máquinas. Falamos aqui de estéticas da memória que pressupõem o irrecuperável, a falha e a lacuna como padrão, e não como a exceção, no ecossistema de armazenagem digital e da indeterminação do social.

Imagem da ruína do código informático e da eficiência das telecomunicações, o glitch aponta para uma visão de mundo que se constitui como uma dissidência do design dos equipamentos prateados e de cantos arredondados que imperam no mundo digital. Não por acaso, a iconografia recorrente na Internet remete a um universo de tons pastel, letras redondas e nomes onomatopeicos. Esse design faz jus ao marketing de um mundo sem pontas e sem dor que existiria em um paraíso artificial que, no fundo, ninguém quer, mas que responde bem à lógica dos jardins murados das redes sociais e à necessidade de update permanente a que a obsolescência programada nos subjuga.

Afinadas com esse imaginário, imagens 3D de projetos que prometem a recuperação de áreas históricas como se oferecessem verdadeiras injeções de Botox na paisagem urbana são cada vez mais comuns. Elas incorporam as técnicas antienvelhecimento dos corpos humanos nos processos de recuperação patrimonial, “dando aos turistas a impressão de que se encontram na eternidade de um cartão-postal”, como assinalaram Henri Pierre-Jeudy e Paola Berenstein (Corpos e cenários urbanos: territórios urbanos e políticas culturais, 2006).

E não é exatamente isso que se embute no desfile de projetos arquitetônicos que aparecem todo dia para a reconstrução da catedral de Notre-Dame? Olhando esses modelos que se apresentam como o presente que ainda não vivemos, a consumação do pressuposto de que fazemos imagens para antecipar o passado em um futuro que talvez não teremos é inevitável. Fica difícil discordar do pensador alemão Andreas Huyssen, quando diz que já não somos mais capazes de criar ruínas, apenas escombros. Na brutalidade de nossa história, suprimiu-se a possibilidade de imaginar um futuro, abortado no esquecimento programado que enterra a memória daquilo que um dia se apresentou como ruína.///

 

Giselle Beiguelman é colunista do site da ZUM, artista e professora da FAUUSP. Assina também a coluna Ouvir Imagens na Rádio USP e é autora de Futuros Possíveis: arte, museus e arquivos digitais (2014), entre outros. Entre seus projetos recentes, destacam-se Odiolândia (2017), Memória da Amnésia (2015) e a curadoria de Arquinterface: a cidade expandida pelas redes (2015).

 

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