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Fotografia, privacidade e impacto social: conversa com a curadora Charlotte Cotton

Cris Veit Publicado em: 29 de setembro de 2016
Cindy Sherman, Sem título, 1979. Coleção International Center for Photography

Cindy Sherman, Sem título, 1979. Da exposição Public, Private, Secret.

Charlotte Cotton está vivendo seu momento nova-iorquino. A crítica e curadora britânica é, desde 2015, curadora residente do International Center of Photography (ICP), que em junho inaugurou sua nova sede no Lower East Side, em Manhattan, e busca se reinventar como instituição. Charlotte também foi convidada pela Aperture Gallery a curadoria da Summer Open, mostra anual que em sua última edição teve como tema o livro Photography is Magic (Aperture, 2015), de Cotton. Também na Aperture, conduziu recentemente uma conversa com Joshua Citarella e Brad Troemel, criadores da Ultra Violet Production House. Charlotte falou à ZUM sobre todos esses projetos simultâneos.

Sua primeira contribuição para o ICP foi a curadoria da mostra Public, Private, Secret: “O desafio principal, quando entrei no ICP, foi o restabelecimento da própria instituição. Minha proposta era que o programa de exposições, eventos e publicações focasse muito claramente no impacto social da cultura visual, em vez de simplesmente validar a fotografia como meio artístico dentro da história da arte moderna e contemporânea – que é a narrativa da maioria das instituições que levam a fotografia a sério em Nova York. Isso também se reflete nas três exposições agendadas para 2017, todas centradas em fotografia e mudança social [entre elas, Wealth: The Influence of Affluence, de Lauren Greenfield, e Perpetual Revolution: The Image and Social Change]. Quando me encontrei com [o diretor executivo da instituição] Mark Lubell, ele disse que um tema com grande apelo para ele era a ideia de privacidade. Fiquei muito contente em poder explorar o assunto, porque me parece ser uma questão social urgente do momento que vivemos”.

Um ensaio sobre a privacidade em nosso mundo hipervigiado e sobre o papel da fotografia e do vídeo na construção da identidade pessoal no mundo pós-internet, Public, Private, Secret se desdobra em uma série de eventos que exploram o tema da privacidade pessoal. A programação inclui o Disappearance Workshop, que explora técnicas de como desaparecer sem deixar rastros virtuais ou reais, e outros workshops que ensinam a usar ferramentas online para limitar e bloquear o rastreamento de navegação na internet, além de palestras e conversas com o objetivo de aprofundar a consciência das questões que compõem a sensação de privacidade nos dias de hoje.

Essa intensa programação, contudo, não determina uma abordagem didática na exposição propriamente dita. “A estratégia da mostra foi não sermos didáticos nem ilustrativos – como buscar artistas que ilustrassem o tema da privacidade, muito menos fazer mais uma exposição sobre a cultura da vigilância”, diz. “O desafio conceitual foi juntar precedentes históricos – obras tradicionais extraídas da coleção do ICP – a artistas contemporâneos e a fluxos de mídia em tempo real no mesmo espaço físico, criar uma experiência altamente subjetiva dessa coisa chamada cultura visual, e estabelecer um diálogo entre tudo isso.”

Natalie Bookchin, Meus medicamentos, 2009, da série Testamento

Natalie Bookchin, Meus medicamentos, 2009, da série Testamento. Da exposição Public, Private, Secret.

Isso se traduz nas galerias da mostra. Logo na entrada estão os trabalhos de quatro artistas que se apropriam de vídeos postados online para fazer leituras do comportamento na cultura visual contemporânea. Na série N.A., Doug Rickard usa trechos de vídeos caseiros encontrados no YouTube que mostram testemunhos de cenas de crime e de ações policiais e representam a obsessão norte-americana com a criminalidade e a injustiça social. Martine Syms explora o tema da identidade negra em uma colagem de comerciais de TV, GIFs e vídeos caseiros na obra Lições. Natalie Bookchin constrói na série Testamento uma montagem de diários pessoais com vídeos encontrados online. Centenas de cabeças aparecem e somem da tela, narrando suas experiências com tópicos como desemprego, identidade sexual ou dependência de remédios; quando surge uma palavra comum entre os narradores, ela é apresentada em uníssono, como num jogral. Em Mainsqueeze, Jon Rafman edita trechos de vídeos online – incluindo uma máquina de lavar-roupa se autodestruindo e sequências de anime pornô – em uma exploração inquietante da psique humana.

O outro, feed de vídeos em tempo real. Curatdo por Mark Ghuneim e Elizabeth Kilroy

O outro, fluxo de mídia em tempo real curado por Mark Ghuneim e Elizabeth Kilroy. Da exposição Public, Private, Secret.

A galeria principal une fotos históricas – como Por que Jackie corre? (1971), de Ron Galella, na qual vemos Jackie Onassis fugindo do lendário paparazzo no Central Park, ou México (1934), de Henri Cartier-Bresson, que mostra um casal sensualmente entrelaçado na cama, bem como obras de Nan Goldin, Cindy Sherman e outros – a trabalhos contemporâneos como The Revolutionary (2013), de Broomberg e Chanarin, em que os artistas adotaram um sofisticado sistema de reconhecimento facial desenvolvido pelo governo russo para a identificação de indivíduos em manifestações públicas e fronteiras do país e criaram retratos de um amplo espectro de cidadãos de Moscou, incluindo Yekaterina Samutsevich, da banda Pussy Riot. Além destas, sete monitores transmitem fluxos de mídia em tempo real, criados a partir da pesquisa de palavras-chave no Twitter e em outras redes sociais. Transformation reúne posts públicos de pessoas que revelam transformações físicas às quais se submeteram. Hotness mostra imagens eróticas aceitáveis, que conseguiram passar pelos filtros aplicados pelas redes. Aqui, a questão é mais de programação que de autoria, uma vez que postagens públicas vão sendo exibidas através de buscas dentro dos temas previamente estabelecidos para cada “obra”. “Comecei a trabalhar com Mark Ghuneim, o curador dos fluxos de mídia em tempo real, no final de 2015. No começo de 2016 passamos a trabalhar com os alunos do curso Narrativas em Novas Mídias do ICP. Foi um longo processo de refinamento até chegarmos aos sete trabalhos de fluxos de mídia que são atualizados em tempo real e continuam sendo modificados até o fim da mostra.”

Adam Broomberg e Oliver Chanarin, "O revolucionário", da série "O espírito é um osso", 2013. Cortesia dos artistas.

Adam Broomberg e Oliver Chanarin, O revolucionário, 2013, da série O espírito é um osso. Cortesia dos artistas. Da exposição Public, Private, Secret.

O projeto expográfico também foi pensado para levar o espectador a se relacionar com as obras, de um aviso na entrada alertando que câmeras de circuito interno documentam os frequentadores e utilizam as imagens em uma obra às paredes das galerias revestidas de espelhos. “Para o projeto do espaço expositivo, contratamos o estúdio Common Room. Eles têm uma relação maravilhosa com o uso de materiais, então quando sugeriram revestir algumas paredes com espelhos nós aceitamos prontamente. Eu não teria tido essa ideia, mas ela reforça o ponto de que a mostra tem de ser encarada de maneira pessoal pelo espectador, porque é um assunto que diz respeito a todos nós; o espelho funciona como uma espécie de acordo de que o espectador é parte disso e precisa se situar dentro dessa história. Fica claro que existe um forte diálogo entre o projeto expográfico e a curadoria, que ambos trabalham junto.”

John Houck, Retrato paisagem (still), 2015. Cortesia do artista.

John Houck, Retrato paisagem (still), 2015. Cortesia do artista. Da exposição Public, Private, Secret.

Outra exposição com curadoria de Charlotte traz um enfoque diferente ao explorar a fotografia como plataforma experimental por meio de artistas com profundo conhecimento das raízes históricas do processo fotográfico. A Summer Open, mostra anual aberta a participantes na Aperture Gallery, lançou mão da premissa de encarar a fotografia como mágica e atraiu artistas envolvidos com abordagens experimentais para ideias fotográficas, definidos dentro do ambiente de imagem contemporânea, emoldurada pela Web 2.0. “A exposição foi uma agradável oportunidade de estar em diálogo com uma espécie de círculo íntimo de audiência, de artistas olhando o trabalho um do outro e respondendo às mesmas questões. Foi adorável também ver novas amizades e diálogos começarem porque a mostra criou essa plataforma. Eu acho que uma das minhas modalidades curatoriais é justamente tentar ser uma plataforma ou uma anfitriã generosa para os artistas e sua produção.”

Ainda na Aperture, Charlotte conduziu uma conversa aberta com Joshua Citarella e Brad Troemel, criadores da Ultra Violet Production House. Uma loja dentro do Etsy (site de e-commerce focado em itens artesanais), a Ultra Violet vende kits para reprodução de obras de arte que nunca foram efetivamente realizadas pelos artistas. Essas concepções artísticas virtuais são construídas a partir de imagens encontradas na web. Os compradores/colecionadores recebem pelo correio as peças, ferramentas e tutoriais para reproduzir uma obra que nunca existiu. Algumas obras à venda incluem um colar de gelo com fatias de pepino e uma caneca feita a partir de uma lente Canon 24-70mm. “Há uma afinidade entre os dois eventos [conversa com Ultra Violet e exposição na Aperture Gallery], ambos se prestam a reunir novas ideias, promover uma espécie de comunhão de pensamento de como os artistas estão navegando no mundo visual pós-internet. Photography is Magic é um projeto automotivado. Eu queria pesquisar e pensar sobre essas novas abordagens para o fotográfico; é um trabalho que não está alinhado com as tradições e os gêneros da história da fotografia. Os artistas trabalham como todos os artistas da pós-internet: emprestam imagens e canalizam a história para propósitos particulares, sobretudo deles mesmos.”

Perguntada sobre as relações entre estes e a mostra no ICP, Charlotte afirma que “o programa no ICP é menos focado nos artistas e na autoria artística e mais em criar um espaço para abrigar as discussões que precisam acontecer sobre o mundo visual hoje. Os eventos são diferentes nesse sentido, mas estão conectados por influenciar coisas que virão; não são uma declaração com um ponto final, e sim uma proposta ou um convite para outras coisas acontecerem, para que outras conexões sejam feitas”.

As propostas e posturas expositivas de Charlotte Cotton podem levar a pensar que não há espaço em seu radar para a dita fotografia direta (straight photography), mas não é bem assim. “Não cortei relações com a fotografia direta; esse tipo de fotografia me interessa na medida que também possa ser pós-internet, assim como um óleo sobre tela pode ser pós-internet. Uma questão, neste momento particular da cultura visual, por exemplo, está na experiência de visualização de uma fotografia direta. Ainda tenho muito apreço por artistas que trabalham com o que chamamos de forma simples, pessoas como Charlotte Dumas com seus maravilhosos retratos de animais, ou Nigel Shafran, de Londres. Mas também espero que um artista com essa abordagem não pense que o mundo seja o mesmo que era dez anos atrás, isto é, fazer fotografia agora é diferente de fazer fotografia antes da existência das redes sociais. Então, não acho que esteja tudo acabado para a fotografia direta. Acho, sim, que ela aponta para as escolhas que o ato de fotografar implica; não é um gesto neutro, de modo que esses artistas precisam entender todas as escolhas que estão fazendo, precisam trabalhar de forma essencialmente extratemporal. Eu acho que há um enorme potencial dentro disso, mas não podemos mais tratar a fotografia direta como uma espécie de maneira neutra de representar as coisas que acontecem no mundo real.”///

 

Cris Veit é editora e consultora independente de fotografia. Foi diretora de arte da revista National Geographic Brasil entre 2001 e 2013.