Revista ZUM 6

Pietà, o drama moral de W. Eugene Smith

John Berger Publicado em: 10 de janeiro de 2017
Fuzileiro naval segura criança ferida encontrada nas montanhas. Batalha da ilha de Saipan, Campanha do Pacífico, junho de 1944. ©W. Eugene Smith/Magnum Photos/Latinstock

Fuzileiro naval segura criança ferida encontrada nas montanhas. Batalha da ilha de Saipan, Campanha do Pacífico, junho de 1944. © W. Eugene Smith/Magnum Photos/Latinstock

O fotojornalista americano W. Eugene Smith (1918-1978) ficou famoso pela cobertura apaixonada da Segunda Guerra Mundial e pelas reportagens de cunho social que fez para a revista Life nas décadas de 1940 e 1950, mas também pelo temperamento difícil e pela dedicação obsessiva à fotografia. Em 1955, passou a fazer parte da agência Magnum. Seu principal projeto denunciou os efeitos letais da contaminação de mercúrio no vilarejo japonês de Minamata. A seguir, o crítico britânico John Berger investiga o drama moral inscrito nas imagens de Smith.

 

É impossível fazer um documentário biográfico sobre W. Eugene Smith – complementado com séries de suas fotos –, pois o verdadeiro drama de sua vida e de sua obra não está explícito. Seria possível, por exemplo, usar esse método no caso de Van Gogh, porque temos suas cartas, que contam sua vida com incrível perspicácia. Já os textos de Smith são, em sua maioria, arengas. Portanto, não existe material pronto para uma biografia. Ele tem de ser escrito e inventado pelo cineasta, e como os elementos subjetivos nessa história são de enorme importância – como acontece na história de qualquer artista –, a invenção terá de se aproximar da ficção. Conhecemos os fatos de sua vida, mas todos eles têm de ser interpretados, e essas interpretações idealmente deveriam nos levar a ver sua obra com mais clareza.

 

De onde veio esse homem?

A resposta a essa pergunta não será apenas geográfica, mas também cultural, social, histórica. Onde foi que ele formou seus ideais, seus temores, seu tipo especial de orgulho? Ele é um homem do Meio-Oeste. Em essência, está mais próximo de um ferroviário, de um lenhador ou de um cantor como Woody Guthrie que de um artista nova-iorquino ou europeu da mesma época. Para contrastar, podemos compará- -lo a um homem como Arthur Miller ou Thornton Wilder. Por trás da maior parte das imagens de Smith, está a dureza de uma canção de trabalho, a virtude da virilidade, o destino simples da vitória ou da derrota. Esses homens carregam, sepultada dentro deles, a timidez. E isso contribui para a imagem de um típico herói do Meio-Oeste. Ressalto o ponto porque a aparência física de Smith, sobretudo na segunda metade da vida, tende a mascarar essa verdade, e suas cartas nunca devem ser tomadas como prova. Ele usa palavras para produzir um ruído que corresponda ao ruído totalmente inarticulado que escuta em sua cabeça. Smith maltratava as palavras e não confiava nelas. Por isso fazia trocadilhos. Queria levar a melhor sobre as palavras. Encontramos esse mesmo tipo de atitude, às vezes, em conversas de bar.

 

O que instigava esse homem, que demônio lhe conferia tanta energia?

Sua devoção à fotografia. Sua arte. Entretanto, como ele via a arte? Sua atitude para com as palavras, a música, sua própria arte era essencialmente religiosa. Ele via a arte como um meio de redenção. A música, as palavras eram para ele acessórios ao drama da busca da bondade. A fotografia constituía sua forma de procurar isso, sua inquirição.

Não era um homem cultivado porque isso implica pertencer a uma cultura privilegiada. Era um solitário. Procurava uma verdade que, por sua natureza, não era evidente. Essa verdade estava à espera de ser revelada por ele e somente por ele. Queria que suas imagens tivessem o poder de converter, de modo que quem as contemplasse pudesse ver além das mentiras, da vaidade, das ilusões da vida cotidiana. Nesse sentido profundo de busca da verdade imanente, ele foi, creio, o fotógrafo mais religioso na história da arte. Um vidente, tanto no sentido fotográfico quanto no sentido bíblico do termo.

Seu emprego exclusivo do preto e branco se ligava intimamente a esse sentido de vocação. Com o preto, ele faz o mundo ser só seu – transforma-o num teatro sombrio, terrível, moral, em que as almas buscam beleza ou redenção. (Valeria a pena procurar, em alguns autos de edificação medievais, uma cena que correspondesse a esse processo.) Às vezes, o drama que ele encena numa fotografia está no tema, como dado naquele momento. As fotos de guerra, por exemplo. Muitas vezes, porém, o drama vem de dentro da visão de Smith, e nesses casos ele impõe sua visão àquilo que está diante dele, conferindo- lhe uma intensa dramaticidade. Por exemplo, o drama malévolo dos três membros da Guarda Civil espanhola. Ou o drama benévolo de algumas de suas fotos de Albert Schweitzer em ação. Sua fotografia usa uma linguagem bíblica.

O preto, para Smith, era o vale da sombra da morte. A luz era a esperança. Comparemos algumas de suas fotografias com ícones e com certas pinturas flamengas antigas – menos do ponto de vista do jogo de luz e sombra e mais da expressão dos rostos e da relação entre as figuras e o fundo. Suas fotografias mais bem-sucedidas ficam melhor numa igreja do que num museu. Ele sonha falar numa congregação.

 

O que formou esse homem?

Como foi que o drama moral, que é uma parte tão fundamental da fotografia de Smith, começou para ele? Sem dúvida, profundamente e até o fim, esse drama moral começou com sua mãe. Ela foi, em minha opinião, o começo e o fim de Gene. Todas as demais mulheres na vida dele foram apenas planetas em torno do sol que ela era.

A relação entre ambos era carregada de um amor devotado, mas suspeito que a linguagem desse amor, a maneira de fazer trocas, fosse a chantagem emocional. A maior parte das interações de Smith com o mundo (à parte sua fotografia) baseava-se no mesmo princípio – inclusive, é claro, suas repetidas ameaças de suicídio. Ele aprendeu o princípio com a mãe. À sua própria maneira, ela o praticava com ele. Os instrumentos da chantagem eram de escala moralista e bíblica: o pecado, a iniquidade do mundo, a salvação da alma, a justiça futura, a morte.

O filho convenceu-se de que só era amado quando punido; a punição tornou-se indissociavelmente mesclada ao amor da mãe e às suas expectativas em relação a ele. Como todos nós, ele queria ser amado, e por isso sua vida – que, mais do que a maioria dos homens, ele conduziu como bem quis – se tornou uma história de punições. Empregar a palavra masoquista seria um simplismo barato e vulgar. Porque ele adquiriu, com a mãe, não só o hábito da punição como também o princípio da piedade e a necessidade de salvar o mundo. (A capacidade de piedade dele era, claro, muito maior que a dela. Em certos sentidos, talvez ela fosse uma mulher implacável. Não obstante, creio que foi ela quem lhe ensinou o princípio da piedade.)

 

Qual é o gênio de sua fotografia?

A autenticidade da obra de Smith não decorre de sua objetividade, mas de sua seletividade. Entre os grandes mestres da reportagem e da narrativa fotográfica, Smith é, talvez, o mais subjetivo. Para ele, as aparências só revelam a verdade muito raramente. E, para ele, no restante do tempo, elas são falsas. Para ele, Pittsburgh representava a condição humana naquela época. Muito mais que uma cidade, ela era a vida neste mundo. Foi por isso que o projeto cresceu de forma tão incontrolável.

Podemos agora voltar a nosso título e à imagem de uma Pietà – a imagem do Cristo-homem morto e deitado no colo da mãe. Uma imagem de ternura e de luto. A figura da vítima, sofrendo ou morta, é, por sua natureza, horizontal. A figura do cuidador ou do enlutado é vertical. Os dois formam uma espécie de cruz, e é nesse ponto que podemos notar um fato simples, mas surpreendente. Entre as 50 fotografias mais famosas de Eugene Smith, esse tema se repete em várias ocasiões. Às vezes, o foco recai quase exclusivamente na figura horizontal, e a vertical é apenas sugerida. Às vezes, mais tarde, as duas figuras são vistas de frente. No entanto, encontramos com frequência o mesmo tema emocional do sofredor horizontal sendo cuidado ou pranteado por alguém, uma pessoa na vertical, impelida pela piedade. Segue-se uma lista de algumas dessas fotografias notáveis:

A criancinha encontrada pelo soldado em Saipan, em junho de 1944; o fuzileiro naval ferido recebendo ajuda em Saipan, em 8 de julho de 1944 (aqui a figura vertical é simbolizada pelo cantil de água estendido à vítima); o hospital de campanha em Leyte, em novembro de 1944; o moribundo sendo carregado na batalha de Okinawa; o médico rural tratando de uma menina com um corte na testa; muitas imagens do ensaio sobre a parteira Maude Callen; o velório na aldeia espanhola; a operação no hospital de Schweitzer; a foto inesquecível de Tomoko Uemura sendo banhada pela mãe (feita no fim da vida de Smith, essa foto é uma espécie de sumário dramático de todas as anteriores).

Smith se identifica com a figura horizontal. Não quero dizer com isso que ele se veja como Cristo, mas que se identifica com a vítima que sofreu uma punição injusta. Tal como a mãe, ele odiava, creio, a maior parte das coisas que aconteciam no mundo, particularmente no mundo metropolitano, o mundo penoso da Babilônia. Ele acreditava profundamente na Queda do Homem. Seu dever na vida era espreitar esse mundo e ficar de emboscada, à espera dos raros momentos de nobreza, da redenção da Queda. Esses eram os momentos que ele desejava registrar. Não somente registrar, mas mostrar em toda a sua glória extraordinária. O meio à disposição para expressar essa glória era o preto e branco. Ele então devolvia esses momentos ao mundo como uma forma de catarse. Uma confirmação interessante de tudo o que foi dito acima é a foto arquifamosa de duas crianças se afastando do mundo adulto, de costas para nós, num clarão de luz. Estão deixando para trás a Queda, e o próprio Smith deu título à foto: A caminhada para o jardim do paraíso. Seria possível tratar esse tema com uma montagem de quadros do Renascimento, começando com a Expulsão, de Masaccio, e terminando com a Ressurreição, de Matthias Grünewald.

Essa ideia tinha muito a ver com suas batalhas contínuas com editores. Smith tornou-se um herói para os fotógrafos modernos por não parar de protestar contra a utilização desonesta, vulgar ou sentimentaloide de suas fotos, e, como essa é uma prática comum, ele tinha toda a razão. No entanto, a oposição de Smith à interferência dos editores em suas intenções tinha uma base ainda mais profunda, pois ele considerava não só que certas fotos eram mal utilizadas, mas também que toda uma visão de mundo estava sendo substituída por outra. Uma visão sombria, moral, substituída por uma visão frívola. Uma Pietà substituída por uma capa de revista.

Por fim, chegamos ao fulcro de seu gênio. Smith aceitava a visão sombria e condenatória que a mãe tinha do mundo, mas via o mundo com muito menos severidade do que ela, porque transformava o amor que conheceu por meio dela num princípio que buscava em toda parte. O amor é sempre, entre outras coisas, piedade. Esse é o amor da figura vertical. O amor do enlutado e do cuidador; o amor do sobrevivente pelo morto.

Portanto, encontramos uma resposta para a primeira e mais óbvia pergunta, que não formulei desde o início porque ela teria suscitado muitos preconceitos. Como é possível que um homem de um egocentrismo tão patológico como Eugene Smith, um homem tão autocentrado como costumava se mostrar, tenha sido capaz de produzir algumas das fotografias mais profundamente humanas de nossa época? Uma pergunta semelhante pode ser feita em relação a muitos artistas. No entanto, em cada caso a resposta tem de ser específica. Só existiu um único Eugene Smith, e ele só teve uma mãe.///

 

Este ensaio surgiu das anotações de John Berger para ajudar o documentarista Kirk Morris a fazer um filme sobre Eugene Smith. Tradução do inglês de Donaldson M. Garschagen.

John Berger (1926-2017) foi crítico de arte, pintor e escritor. Entre suas obras mais conhecidas, estão o romance G., vencedor do Booker Prize de 1972, e o livro de ensaios Modos de ver, feito a partir da série homônima da BBC. Em 2013, publicou Understanding a Photograph.

W. Eugene Smith (1918-1978) nasceu no Kansas. De 1957 a 1965, fez quatro mil horas de gravações e aproximadamente 40 mil fotografias de mais de 300 músicos da cena do jazz nova-iorquino que se reuniam para tocar em um loft em Manhattan.

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