Livros

O discurso da fotografia na arte contemporânea: “60/70”, de Juliana Gisi

Thais Rivitti Publicado em: 12 de abril de 2016

60/70: As fotografias, os artistas e seus discursos, livro de Juliana Gisi publicado em 2015 com o auxílio da Funarte por meio do XV Prêmio Marc Ferrez de Fotografia, trata da presença da fotografia na produção artística no início da arte contemporânea. A publicação foi um dos projetos contemplados pela Funarte que, em 2014, também premiou mais cinco projetos de “produção de reflexão crítica sobre fotografia”. Embora o número de contemplados, levando em conta a produção nacional, esteja longe de ser o ideal, a iniciativa permite que as pesquisas circulem mais e alcancem um público maior, sendo distribuídas gratuitamente aos interessados. O livro em questão nasce a partir da tese de doutorado defendida pela autora no Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 2013, permanecendo ligado a esse contexto acadêmico, como reiteram as duas apresentações que precedem o texto principal, as inúmeras notas de rodapé ao final de cada capítulo e a austeridade gráfica da publicação.

A pesquisa delineia-se por meio de um recorte claro: a fotografia nas décadas de 60 e 70. Como, entretanto, dar conta da vasta produção desse período, tão profícuo em experimentações artísticas? O enfoque não foi geográfico – embora haja uma presença marcante do contexto norte-americano –, não foi por artista – mesmo que figuras como Ed Ruscha, Jeff Wall, Robert Smithson, entre outros, apareçam em lugar de destaque – nem deteve-se nas exposições do período, que abordavam a crescente presença da imagem reproduzida na arte. Refiro-me aqui a exposições como “Pictures”, curada por Douglas Crimp, em 1977, no Artist Space em Nova York. Uma mostra emblemática para pensar não apenas a fotografia, mas a situação da imagem na contemporaneidade. Imagens das mais diversas origens, extraídas de jornais, revistas, do cinema e da televisão que, como diz o texto da mostra, antes pareciam ter a função de interpretar a realidade e passam, a partir dos anos 70, a usurpá-la. Contudo não foi esse o caminho escolhido pela pesquisa de Gisi. É por meio da análise dos discursos de certos artistas, observando os diversos usos da palavra “fotografia” quando esta aparecia em escritos e entrevistas, que o livro tenta construir um panorama. O vaivém entre discursos de artistas e modos de emprego da palavra fica mais claro no terceiro capítulo, onde os excertos das falas aparecem mais fortemente e deixam entrever os sentidos possíveis de “fotografia” nas décadas analisadas.

Os dois primeiros capítulos do livro tratam, sob o ponto de vista mais teórico e, portanto, mais afastado das práticas artísticas, de uma mudança no próprio conceito de arte, que teria provocado a integração da fotografia de forma radicalmente diferente do que ela vinha sendo pensada no interior da arte moderna. No momento do início da arte conceitual, a fotografia aparece articulada à emergência da noção de antiarte, junto aos discursos do fim da autoria e também com certa volta à tese hegeliana do fim da arte. Se, antes, a arte – aí incluída a prática fotográfica – era majoritariamente entendida como expressão de uma subjetividade, fundada na sensibilidade e talento pessoal do artista, com o início da arte conceitual ela se afasta dessas premissas.

Mas é no terceiro capítulo que a pesquisadora, ao confrontar-se com discursos de alguns dos artistas atuantes na época, propõe uma classificação entre os modos de inserção da fotografia nas práticas artísticas inauguradas em 60/70. Distingue então a fotografia como documento, a fotografia integrada à prática e a fotografia como trabalho de arte. Gisi conduz sua argumentação de modo a questionar os pressupostos da fotografia documental. Basicamente, dá a entender que há certa ingenuidade nos artistas que apostavam nessa técnica imaginando que registro fotográfico fosse neutro, objetivo e fiel à realidade. Para tal, questiona a importância que as leituras correntes conferem ao caráter indicial da fotografia. Ou seja, interroga se o pressuposto, assumido por inúmeros autores contemporâneos, de que a fotografia mantém uma relação específica com seu referente, por exigir sua presença “real” diante da câmera, não precisaria ser revisado. Afinal, não haveria mais imaginação na fotografia do que se deixa ver à primeira vista? Uma pintura não poderia ser, em determinados casos, mais próxima à realidade do que uma fotografia?

Embora a autora enuncie, desde cedo, sua posição de “analista de discursos” (em contraposição, poderíamos pensar, à de “crítica de arte”), em muitas passagens sentimos falta de leituras de obras. Os comentários e descrições de trabalhos, quando aparecem, são bastante sucintos e o livro não reproduz imagens de nenhum deles. Tudo se passa como se o leitor já estivesse plenamente familiarizado com a produção internacional do período e tivesse na memória esse vasto acervo artístico que Juliana mobiliza no decorrer de sua escrita.

Em decorrência da metodologia escolhida, que tem como objeto os discursos de artistas e não seus trabalhos, há algumas ausências sentidas. A obra de Andy Warhol é um exemplo. O fato de Warhol, provavelmente, falar e mais em “pintura” ou “filme” do que em “fotografia” explicaria porque ele não aparece nas reflexões do livro. Porém, a noção de fotografia como apropriação (como vemos nas inúmeras séries de serigrafias do artista pop, em que ele usa imagens “já prontas” de jornais, anúncios etc.) é também fundamental para se compreender outra dimensão da técnica fotográfica desde 1960.

O leitor ganha se não hierarquizar os três sentidos para “fotografia” que a Gisi encontra no material que analisa. É preciso resistir à tentação de enxergar uma evolução no percurso traçado no terceiro capítulo. A tendência é percebermos ali um sentido de progresso, é ler o texto como um caminho no qual a fotografia vai ganhando centralidade, passando de mero registro de algo artístico que acontece fora dela para parte de um trabalho de arte que se completa fora da foto e chegando a ser, ela mesma, o lugar em que o trabalho de arte acontece. Assim, esse terceiro tipo descrito, essa fotografia pensada desde o início como obra de arte, seria a etapa mais complexa e, de certa forma, um ponto culminante da consagração do meio fotográfico na arte contemporânea. Não se trata de colocar em xeque a afirmação de que a fotografia, ao lado da imagem em movimento do cinema e da videoarte, foram fundamentais para a produção artística partir das décadas de 60 e 70. Mas de insistir que há uma contaminação de meios e que a segmentação por linguagem ou técnica talvez não dê conta de comentar com profundidade as obras de arte a partir de então.

Não resta dúvida de que a análise conduzida pela autora é extremamente cuidadosa e valiosa, e há grande mérito em reunir escritos que encontram-se dispersos em várias publicações, mais ou menos conhecidas e divulgadas. Certamente presta uma grande ajuda ao público interessado em arte para que, quando esteja diante de uma fotografia, interrogue-se sobre sua função e natureza. Ou seja, diante de uma obra exposta em um museu qualquer, todos aqueles que acompanharam a discussão deste livro imediatamente se perguntarão em quais sentidos aquele artista está dizendo “fotografia”.///

 

Thais Rivitti escreve sobre arte, é curadora e pesquisadora e dirige o Ateliê397, espaço independente de arte em São Paulo.

 

A revista ZUM publica em seu site resenhas de livros de fotografia e novidades do mercado editorial no Instagram. Os livros podem ser enviados para Revista ZUM / IMS – Av. Paulista, 2439, 6 andar – CEP 01311-936 – São Paulo, SP. A equipe da revista seleciona as publicações e encaminha para resenha. Todos os livros, inclusive os não resenhados, são depois enviados para a Biblioteca de Fotografia do IMS Paulista.

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