William Eggleston – a cor americana

Saiba mais sobre a exposição “William Eggleston, a cor americana”, no IMS-RJ

Publicado em: 6 de abril de 2015

(O texto e as fotografias abaixo estão publicados no livro da exposição WILLIAM EGGLESTON, A COR AMERICANA, com curadoria de Thyago Nogueira. A exposição fica em cartaz no IMS-RJ até 28 de junho.)

Um quebra-cabeça extraordinário

Thyago Nogueira

Um triciclo branco e verde, de curvas robustas e meio surrado, se impõe sobre uma típica paisagem de subúrbio americana, com casas térreas alinhadas, identificadas pelas caixas de correio e pelo modelo de carro na garagem. Tirada em 1971, em Memphis, a foto estampa a capa do livro – catálogo conhecido como o Guia de William Eggleston (William Eggleston’s Guide), publicado pelo Museu de Arte Moderna de Nova York por ocasião da primeira exposição individual importante do fotógrafo. Ao posicionar a câmera no chão, Eggleston oferece ao espectador o ponto de vista de uma criança e sugere que é o triciclo que vai guiar nosso passeio.

O pequeno catálogo reúne cenas de rua, paisagens, interiores e retratos tirados na região natal do fotógrafo, um pedaço do sul dos Estados Unidos que abrange o oeste do estado do Tennessee e segue pelo rio Mississippi, em direção a New Orleans. Chamar o catálogo de guia foi ideia de John Szarkowski, então diretor do departamento de fotografia do MOMA, onde a exposição abriu em 25 de maio de 1976. O título era referência aos famosos Guias Michelin, criados no início do século 20 pela empresa de pneus francesa para estimular o mercado automobilístico − uma piscadela irônica, que propunha um passeio por uma área de poucas atrações notáveis e raros turistas.

FORMAÇÃO

Eggleston nasceu em 1939 em Memphis, Tennessee, mas logo se mudou para a casa do avô materno, na cidade de Sumner, no Mississippi, porque o pai, que trabalhava na Marinha, era obrigado a passar longos períodos distante de casa. Herdeiro de uma família que havia pelo menos duas gerações se dedicava ao cultivo de algodão, Eggleston cresceu numa área dominada por antigas plantações, planícies alagadas e córregos pantanosos (os bayous), salpicada de pequenos núcleos urbanos e cortada por uma crescente malha de estradas. Uma região dos Estados Unidos que, na década de 1960 – os anos de formação de Eggleston –, ainda vivia as cicatrizes do passado escravocrata, dividida entre conflitos raciais intensos e o surgimento de uma classe média interessada em desfrutar dos novos padrões de consumo. Eram os tempos de Elvis Presley e da Guerra do Vietnã, de J.F. Kennedy (assassinado em Dallas, 1963) e Martin Luther King (assassinado em Memphis, 1968). Eggleston abraçou a fotografia quando frequentava o meio universitário. Em 1957, o estudante da Universidade de Vanderbilt, em Nashville, Tennessee, comprou sua primeira câmera e começou a fotografar intensamente. Dois anos depois, transferido para a Universidade do Mississippi, em Oxford, Eggleston teve contato com o trabalho de Henri Cartier-Bresson e de Walker Evans.

O trabalho de Cartier-Bresson deve ter libertado Eggleston de certas amarras fotográficas. Os flagrantes de rua do fotógrafo francês mostravam que era possível condensar movimentos complexos em uma única imagem, partindo de temas prosaicos. Bem diferente da rigidez técnica e compositiva de fotógrafos como Ansel Adams, então referência para a fotografia de arte. Astúcia e descontração se tornavam ingredientes indissociáveis da fotografia.

Nas fotos de Evans, Eggleston deve ter descoberto a elegância singela, os enquadramentos frontais, simples e equilibrados. A afinidade entre os dois também deve ter sido temática. Em 1936, Evans e o escritor James Agee passaram uma temporada com meeiros de algodão no sul dos Estados Unidos, a mando da revista Fortune, para uma reportagem sobre os efeitos da Grande Depressão. A matéria, que se afastou de uma história jornalística tradicional, levou cinco anos para ser publicada, mas várias das fotografias tiradas no Alabama, no Mississippi e no Tennessee entraram no livro Fotografias americanas (1938), de Evans, com que Eggleston teve contato na universidade. A fachada de uma barbearia em New Orleans, os grafismos criados por cartazes rasgados ou uma típica oficina de carros são algumas das imagens de Evans que parecem ter reaparecido no trabalho de Eggleston anos mais tarde. Evans era um fotógrafo intelectualizado, olhando para a decadência sulista com uma distância e um refinamento ainda pouco comuns.

EM PRETO E BRANCO

Eggleston não terminou o curso universitário, mas durante o período teve a chance de experimentar diversas práticas artísticas. Com um amigo pintor, chamado Tom Young, teve contato com o expressionismo abstrato. A essa altura, o jovem Eggleston já havia transformado a fotografia em preto e branco em atividade constante, e era ele próprio quem ampliava suas imagens. Os primeiros cliques ainda pareciam uma cópia dos mestres que lhe haviam servido de inspiração, mas, de 1960 a 1965, ele fotografou tão intensamente com sua câmera de 35 mm que sua produção deu um salto.

“Eu não imaginava fazer algo melhor do que uma cópia perfeita de Cartier-Bresson. E consegui, afinal. Mas chegou um ponto − deve ter tido algo a ver com buscar as raízes e vir para Memphis −, porque então eu não tinha esses mentores, um momento em que eu tive de encarar o fato de que o que eu devia fazer era sair atrás de paisagens desconhecidas. O que era novo naquela época eram os shopping centers − então tirei fotos deles.”

Nos anos que se seguiram, Eggleston investiu no universo estranho e familiar que o cercava, o cotidiano das pequenas cidades do sul dos Estados Unidos. Fotografou de tudo: lojas de conveniência e lanchonetes, escritórios e oficinas, supermercados e estacionamentos, além da família, dos amigos e de quem mais encontrasse. A mecanização do campo e a industrialização acelerada faziam surgir uma nova classe urbana. A indústria do automóvel se modernizava, barateando o preço dos veículos e despejando carros onde houvesse uma estrada. As lojas de bairro eram substituídas por gigantescos supermercados rodoviários, que atendiam a vários núcleos urbanos e punham à disposição centenas de produtos. A vida social deixava as praças centrais das cidades e se deslocava para os shoppings de estrada, com seus complexos de lojas, restaurantes e cinemas. Os costumes se modernizavam, e a moda mudava, com novos cortes e tecidos. Um cotidiano que até então parecia estacionado ganhava um interesse renovado. Calotas reluziam, penteados surgiam, mercadorias piscavam, e o mundo do consumo desabrochava. Um mundo de luzes, brilhos e… cores. Era o que faltava à fotografia.

A VIDA EM CORES

Por volta de 1965, Eggleston começou a experimentar com os filmes em cores, até então pouco comuns na arte e mais usados na fotografia amadora e publicitária.

“O que me propus foi fazer algumas fotos coloridas que fossem completamente satisfatórias, que tivessem tudo, começando pela composição. Minhas primeiras tentativas foram ridículas. Voltei com alguns instantâneos, e não os tinha exposto corretamente. Eram horríveis, joguei fora. A composição provavelmente estava correta, mas estavam perdidos por conta da péssima falha técnica. Eu imaginava que podia fazer em cores o que tinha feito em preto e branco, e tive uma lição dura e rápida. Os elementos fundamentais. Mas tinha de ser assim.

“Então, uma noite, fiquei acordado planejando o que ia fazer no dia seguinte, que era ir ao grande supermercado descendo a rua, chamado Montesi’s − não sei por quê. Parecia um bom lugar para experimentar coisas. Eu tinha na cabeça esse novo sistema de exposição, de sobre-expor o filme de forma que todas as cores aparecessem. E, meu Deus, tudo funcionou. Da noite para o dia. A primeira foto, me lembro, era de um rapaz empurrando carrinhos de supermercado. Quando buscam os carrinhos no estacionamento e empurram até a loja, para que outras pessoas usem. Fiz a foto de um rapaz sardento, ruivo, na luz do fim de tarde. Uma foto bem bonita, na verdade.”

A imagem do auxiliar de supermercado já aponta questões que serão fundamentais para o trabalho do fotógrafo. O olhar atento ao dia a dia das pequenas cidades do sul dos Estados Unidos; o interesse por temas prosaicos e pelo americano comum; as novas formas de interação social, produzidas pelas mudanças nos costumes, no consumo e pela descentralização urbana, com a massificação dos carros e das redes de estrada; e, claro, a sedução de cores e brilhos oferecidos pelo mundo das mercadorias. A luz amarela, que realça o perfil angelical do garoto e o metal dos carrinhos, dá um ar enlevado a um universo que até então parecia banal.

LOS ALAMOS

A imagem do supermercado é a pedra fundamental da primeira grande série de Eggleston, mais tarde conhecida como Los Alamos. Feita apenas com filme negativo em cores, Los Alamos reúne cerca de 2.200 imagens, tiradas na região natal do fotógrafo e em viagens até New Orleans, Las Vegas e pelo sul da Califórnia, sozinho ou em companhia de amigos. As fotos foram feitas em dois períodos distintos: de 1965 a 1968 e de 1972 a 1974.

Vistas em conjunto, formam uma espécie de canto de louvor à América rodoviária, que poderia ter como epígrafe a fala do músico David Byrne no filme Histórias reais (True Stories, 1986): “As autoestradas são as catedrais do nosso tempo”.

A maior parte das imagens de Eggleston é organizada por um elemento central, digno de nota, seja pela cor, pela escala ou pela complexidade visual. É o caso do enorme letreiro de hambúrgueres contra um céu azul anil, da palmeira anã descabelada e enfiada num canteiro de jardim, ou da elegante senhora grisalha vista de costas. Em algumas imagens, o fotógrafo chega tão perto de seus assuntos que só enxergamos fragmentos deles, como se quisesse mostrar apenas suas cores, superfície e textura. Um resultado gráfico que pode estar ligado ao interesse pelo expressionismo abstrato. A maneira como Eggleston trabalha, compondo um panorama da vida americana por meio de pedaços, faz pensar numa construção metonímica, capaz de tratar do todo representando apenas suas partes.

O colorido das imagens é intenso, e o contraste, acentuado, com verdes, vermelhos e amarelos realçados por um céu azul limpo ou pelo alaranjado do fim de tarde. Ainda que uma senhora franza o cenho, as cores fazem pensar num mundo feliz, solar. Mas um olhar atento também é capaz de sentir uma ponta de precariedade. O freezer de Coca-Cola vermelho está carcomido, num estado muito diferente dos anúncios publicitários; o caprichado cartaz de sorvetes tem erros de ortografia crassos; um sujeito que deveria estar entretido com um fliperama é flagrado com um olhar perdido; e boa parte dos toldos e das fachadas reluzentes aparece avariada. Com seus temas e cores, Eggleston adiciona uma camada ambígua à estranha mistura de otimismo e pessimismo que rondava a sociedade americana. Eram tempos de consumo brilhante e decadência opaca.

O enquadramento das imagens oscila entre a visão frontal e o olhar enviesado. Muitas vezes, o corte é seco, brusco, repentino, e tão fechado que é difícil distinguir o contexto. É como se Eggleston caminhasse a esmo, tropeçasse num assunto e então batesse uma foto num reflexo instintivo, antes de compor totalmente a cena. “Fotografo para descobrir que cara as coisas têm quando fotografadas”, disse certa vez Garry Winogrand. Eggleston parece seguir intuição semelhante. Fotografar primeiro, reconhecer depois. Não muito diferente de alguém que sai ao mato para caçar perdizes e, ao menor barulho, se vira e dispara. Um trabalho rápido e preciso, que ele próprio comparou a tocar piano, paixão que o acompanha desde a infância.

Em certos casos, Eggleston parece tão obcecado por um assunto central que ignora o que está em volta. Isso talvez explique os estranhos cortes nos letreiros da fachada de uma lavandeira − quem ocupa o centro da foto é uma lâmpada fluorescente delgada − ou o incômodo enquadramento de um vestiário azulejado, em que o fotógrafo volta sua atenção para um par de cabides. O corte duro produz uma composição inesperada, que adiciona mistério e fascínio às imagens. Ao focar nos “objetos” da modernidade, é como se Eggleston criasse ready-mades fotográficos.

Esse modo de agir ganha uma interpretação curiosa no livro O instante contínuo (2008) , do escritor inglês Geoff Dyer: “As fotografias de Eggleston parecem ter sido feitas por um marciano que perdeu a passagem de volta e acabou trabalhando numa loja de armas numa cidadezinha perto de Memphis. Nos fins de semana, ele procura a passagem perdida − ela tem de estar em algum lugar − com um rigor aleatório que desrespeita os métodos consagrados de investigação.”

Para entender a fotografia de Eggleston, também é preciso levar em conta seu enorme interesse pela fotografia amadora, com a profusão de temas banais e a aleatoriedade compositiva. É o próprio fotógrafo que lembra como, no final dos anos 1960, costumava visitar um amigo que trabalhava em um laboratório de revelação automática: “Comecei a ver essas imagens saírem − elas saem em longas tiras − e achei que a maioria delas fosse um acidente. Algumas eram absolutamente lindas. E comecei a passar a noite toda admirando essas tiras fotográficas.”

Sua consciência sobre o poder de sedução da imagem colorida e o interesse pela cultura de massa, pelos anúncios publicitários e por um universo quase kitsch, também o aproximaram dos artistas pop do período.

De forma geral, Eggleston − que entre amigos é chamado de Bill − se manteve distante dos grandes centros da arte. Nas últimas entrevistas que concedeu, foi tão monossilábico quanto são suas fotografias. Ele evita falar do trabalho e não se importa muito com o que dizem sobre ele. Para Eggleston, palavras e imagens são duas linguagens distintas: “Uma não tem nada a ver com a outra”, afirma. “É possível gostar de arte e apreciá-la, mas não falar sobre ela.” Eggleston não gosta de dar título às imagens (“podem distrair demais”) e, mesmo quando se interessa por um assunto, dedica a ele um ou dois cliques. “É muito confuso se depois você tiver uma tira de seis imagens para escolher uma”, explica.

OS CROMOS OU SLIDES

Nos anos em que fotografou com filme negativo em cores, Eggleston produziu suas cópias em lojas de revelação automática, e com elas editava o trabalho e o mostrava aos amigos. Mas o processo automático permitia pouco controle sobre o resultado final e, com o passar do tempo, as cores das imagens esmaeciam. As cópias coloridas automáticas eram uma solução prática e barata, mas limitada, se comparada ao controle oferecido pela fotografia em preto e branco, que permitia ao fotógrafo fazer ajustes no laboratório.

Em 1969, talvez insatisfeito com os resultados, Eggleston deixou de lado os negativos e abraçou os cromos ou slides. O slide dava novo impulso ao trabalho, pois a tecnologia que permitia produzir uma imagem positiva no próprio filme também proporcionava cores mais precisas. De 1969 a 1974, ele produziu cerca de cinco mil slides coloridos. Aos poucos, o acaso também pareceu ganhar força em suas imagens. Eggleston começou a fotografar sem olhar pelo visor da câmera, apoiando a máquina no chão, deixando-a na altura da cintura ou erguendo os braços acima da cabeça, como fez na foto do triciclo ou em Greenwood, Mississippi, 1973.

Durante esse período, o fotógrafo deu outro passo técnico importante. Os slides geravam uma imagem positiva, que podia ser apreciada diretamente, sem a necessidade de cópias impressas. Na mesa de luz ou em projeções na parede de casa, Eggleston reunia os amigos para mostrar o trabalho em sessões animadas, muitas vezes com o fotógrafo ao piano. Mas ele ainda precisava de cópias impressas para que as imagens circulassem e pudessem ser vendidas.

Por volta de 1972, ele começou a usar um processo de impressão colorida chamado de dye-transfer. Velho conhecido da fotografia de moda e de publicidade, o dye-transfer era caro e de execução trabalhosa. Mas uma cópia em dye-transfer permitia ao fotógrafo controlar individualmente as cores e produzir uma saturação intensa. As imagens ganharam corpo e vida. Não deve ter sido coincidência que uma das primeiras imagens impressas em dye-transfer tenha sido Greenwood, Mississippi, 1973. O vermelho do teto ganhava uma intensidade fora do comum, capaz de lembrar a declaração de Henri Matisse: “Um certo azul entra na sua alma. Um certo vermelho afeta a pressão sanguínea.”!

NOVAS FRENTES

Entre 1973 e 1974, Eggleston ainda abriu dois parênteses importantes na sua produção: as filmagens em vídeo que deram origem ao filme Encalhado em Cantão (Stranded in Canton, 2005), e os retratos em grande formato da série de 5×7 polegadas.

Influenciado pelo cinema direto americano, Eggleston registrou em preto e branco a família e as noitadas com os amigos, usando câmeras portáteis adaptadas e com sensibilidade para a luz infravermelha. Numa mistura de irreverência e intimidade, as declamações, os improvisos e as bebedeiras atravessaram noite e dia. O título faz referência a um lugar imaginário, o Cantão, onde se pode “ficar pelado, fumar maconha e não carregar um passaporte”, define um dos filmados.

O segundo parêntese de Eggleston foi um grupo de retratos posados, produzidos com uma câmera de grande formato que permitia obter o nível de detalhes oferecido pelos antigos retratos de estúdio. O fotógrafo levou a câmera e um flash para os bares e se pôs a registrar estranhos e conhecidos. Mesmo diante de um equipamento grande e complexo, os personagens parecem estranhamente à vontade, encarando a câmera ou absortos em seu próprio mundo. Centralizadas e bem definidas, as imagens compõem uma galeria de tipos americanos que remete aos tradicionais álbuns de formatura.

ESTRANHO E FAMILIAR

Apaixonado por armas e carros, Eggleston nunca precisou ter um trabalho fixo. Era conhecido pela vida boêmia, com noites regadas a música e álcool. No período que coincide com a adoção dos slides e o nascimento dos filhos − William Joseph III (1967), Andra (1971) e Winston (1973) –, Eggleston começou a produzir fotografias que possuíam uma diferença sutil, mas notável.

Aos poucos, o espírito on the road ganhou ambientes familiares. Surgiram mais imagens de Memphis e de Sumner, cidades onde Eggleston passou a maior parte da vida. As cenas de rua e de transeuntes anônimos começaram a dividir espaço com pessoas dentro de casas, sentadas na poltrona da sala, ao piano ou na cama. Rostos conhecidos apareceram nas imagens, e com um pouco de atenção era possível distinguir amigos, filhos e outros membros da família. Até mesmo o corte brusco e fechado pareceu alternar com panoramas abertos, capazes de oferecer uma vista mais ampla de uma cena, de um espaço ou de uma região. À aparente inquietude dos primeiros anos, se somava uma visão mais matizada. As cores chapadas e a saturação estridente também iam sendo apaziguadas. Surgiam mais dias nublados, fotos noturnas e fins de tarde arroxeados.

Em “Fotografia americana nos anos 1970”, texto fundamental para se entender o boom fotográfico daquela década nos Estados Unidos, Lewis Baltz explica que o período foi marcado por intenso financiamento público e pelo surgimento de cátedras de fotografia nas universidades. Os inúmeros museus construídos na década anterior também viam na fotografia uma maneira barata e rápida de montar coleções e atrair público. Os anos 1970 viram surgir ainda uma profusão de portfólios fotográficos e livros de artistas, estimulados por financiamentos e por um grupo emergente de colecionadores, estudantes e especialistas. Em 1975, a George Eastman House, em Rochester, causara espécie com a exposição Novos topográficos: fotografias de uma paisagem alterada pelo homem, com imagens coloridas de Stephen Shore e em preto e branco de Robert Adams, Lewis Baltz, entre outros.

Tudo isso estava em jogo em 1976 quando John Szarkowski inaugurou no MOMA de Nova York a exposição Fotografias, com 75 imagens de Eggleston, e publicou o pequeno Guia. Aos 36 anos, o jovem artista de Memphis fincava sua bandeira na capital cosmopolita.

Num bilhete enviado a Szarkowski em julho daquele ano, o influente crítico de arte Clement Greenberg agradece o catálogo e expõe o tipo de desconfiança que rondava as imagens coloridas: “As fotos são de encher os olhos, e seu ensaio, também. Mais uma vez sou obrigado a perceber que tudo é possível em arte – não que eu não houvesse pensado que boa fotografia colorida era algo possível, mas parecia improvável, exceto por acidente. Sim, tinha visto muitas fotos coloridas acidentalmente boas (eu mesmo fiz duas), mas, porque eram acidentais, elas não ‘se somavam’. As de Eggleston ‘se somam’, e acidentais é a última coisa de que as chamaria.” Eggleston construía um novo vocabulário visual para os Estados Unidos.

Com apenas 48 imagens e um recorte mais íntimo do que a maior parte de sua produção, o Guia de William Eggleston se tornou um dos livros mais influentes da história da fotografia. Sua fama deve-se à perfeita combinação de intimidade e mistério, de proximidade e ocultamento presentes em cada imagem, mas também à coerência narrativa do conjunto, construído por uma edição cuidadosa. Como um convite a entrar nesse universo, o livro começa com a porta de uma casa, ornada com uma guirlanda de plástico e tingida pela luz do amanhecer. Ao longo das 47 imagens seguintes, o fotógrafo nos conduz por lugarejos do Tennessee e do Mississippi – e também de Louisiana e do Alabama. Entramos e saímos de casas, atravessamos quintais desconhecidos e cruzamos com pessoas nas ruas. Dividimos momentos íntimos com amigos, vizinhos e familiares, ao mesmo tempo que somos introduzidos à vastidão da paisagem sulista. O livro transcorre como um longo dia, recheado de eventos estranhos ou corriqueiros. Aos poucos, anoitece nas imagens, enquanto atravessamos uma sequência de interiores e paisagens noturnas, por onde circulam personagens que sugerem a passagem dos anos e que nos lembram do tédio e da solidão.

A COR AMERICANA

A exposição William Eggleston: a cor americana reúne a melhor produção do fotógrafo, feita entre os anos de 1960 e 1974. A mostra traz ao Brasil, pela primeira vez, a famosa série apresentada no MOMA, em 1976, assim como outros trabalhos do período, para dar uma dimensão completa de sua produção. Foi apenas depois dos anos 2000, quando as imagens publicadas no Guia já eram amplamente consagradas, que as fotografias em preto e branco, a série Los Alamos, os retratos em 5×7 e a experiência em vídeo começaram a ganhar o reconhecimento devido. Quase 40 anos depois de sua entrada triunfal no mundo da arte, a importância de Eggleston para a história da fotografia não para de crescer.

Com uma sintaxe própria, Eggleston abriu novos caminhos para a fotografia colorida. Seu estranho quebra-cabeça, formado por cacos e fragmentos, por fotografias em preto e branco e em cores, e por vídeos, ampliou a nossa visão do período. Sua obra se tornou sinônimo de um modo de vida americano e produziu uma reflexão indireta sobre os efeitos da cultura de massa e do consumo, da obsolescência e da alienação. O interesse pelo próprio cotidiano, sua crença no fascínio da imagem e seu universo de cores e assuntos compuseram uma sinfonia extraordinária, que continua a ser digerida por gerações de amadores e artistas.///

 

Thyago Nogueira nasceu em São Paulo, em 1976. É editor da revista de fotografia ZUM e coordenador da área de fotografia contemporânea do Instituto Moreira Salles.

 

Bibliografia

Almereyda, Michael. William Eggleston in the Real World. 35 mm, eua, 2006, 86 min.

Baltz, Lewis. Lewis Baltz: Texts. Göttingen: Steidl, 2012.

Bussard, Katherine A. e hostetler, Lisa. Color Rush: American Color Photography from Stieglitz to Sherman. Nova York: Aperture, 2013.

Dyer, Geoff. O instante contínuo: uma história particular da fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

Eggleston, William. William Eggleston´s Guide. Nova York: MOMA, 2002.

__________. Chromes. Göttingen: Steidl, 2011.

__________. Los Alamos Revisited. Göttingen: Steidl, 2003.

__________. Before Color. Göttingen: Steidl, 2010.

__________. 5×7. Santa Fé: Twin Palms, 2006.

__________. Stranded in Canton. Santa Fé: Twin Palms, 2008.

Hagen, Charles. “An Interview with William Eggleston”. Aperture, Nova York, n. 155, verão 1989.

“Irony is far from me”. Entrevista com William Eggleston. Leica World, 2002.

Sussman, Elizabeth e Weski, Thomas. William Eggleston Democratic Camera. Nova York/Munique: Whitney Museum of American Art/ Haus der Kunst, 2008

 

Livro: William Eggleston, a cor americana

Livro-catálogo com fotografias e textos inéditos de David Byrne, de Geoff Dyer, do crítico de arte Richard Woodward e do curador Thyago Nogueira, além da primeira tradução para o português do texto de John Szarkowski, publicado no catálogo ‘William Eggleston´s Guide’, de 1976.