Revista ZUM 5

Pio Figueiroa fala à ZUM sobre o coletivo Cia de Foto e o ensaio Passe Livre

Bruno Ghetti Publicado em: 15 de abril de 2014
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O país ainda hoje vive sob o impacto das passeatas de junho de 2013, quando os brasileiros foram às ruas para protestar contra o aumento na tarifa do transporte público. Os fotógrafos do coletivo paulistano Cia de Foto registraram as manifestações na cidade, e as imagens mais marcantes foram selecionadas para o ensaio Passe Livre, publicado na ZUM #5, em outubro de 2013.

Dois meses após o lançamento da revista, o coletivo, formado por Pio Figueiroa, Rafael Jacinto, João Kehl e Carol Lopes, anunciou o fim de suas atividades, depois de uma década de que contribuiu para dar vigor ao cenário fotográfico nacional. A Cia ficou conhecida por não individualizar as imagens de seus ensaios: todas traziam a assinatura do coletivo.

Pio Figueiroa falou à ZUM sobre o processo de trabalho do coletivo e sobre as imagens publicadas na última edição da revista. Os outros integrantes foram contatados, mas recusaram o convite para a entrevista.

As imagens do ensaio Passe Livre parecem mostrar pessoas realmente empenhadas em protestar, e não aqueles manifestantes de ocasião que, segundo muitos, foram para a rua somente para “tirar fotos e postar no Instagram”. Você acha que esses manifestantes “de verdade” são mais representativos do que foram realmente os protestos de junho?

Nós fomos contaminados, como toda cidade de São Paulo, depois daquele fatídico dia da repressão policial contra os primeiros levantes do MPL (Movimento Passe Livre). Após essa motivação, nosso trabalho apareceu como ideia, pois convivo com alguns integrantes do movimento há alguns anos, e já acompanhava algumas de suas ações e debates. Conheço eles do curso de Filosofia da USP, e sou fã. São tão jovens quanto articulados; estudam muito e praticam o pensamento, a política e a expressão.

Inicialmente, houve o envolvimento massivo de todos nós da Cia, como todos em São Paulo e posteriormente no Brasil, na questão que suscitou as passeatas. E houve, posteriormente, um direcionamento para o trabalho pautado pela curiosidade e admiração ao MPL.

Nós fomos para a rua cobrir algumas passeatas. Essas fotografias, a princípio, não tinham um direcionamento. Elas vinham às levas. Fotos e mais fotos. Algum tempo depois, sentamos e começamos a pensar em uma forma, em uma cara pictórica para esse material. A primeira percepção que tínhamos era que seria difícil entender toda aquela movimentação, e isso nos fez tomar duas decisões fundamentais. A primeira, basear-nos no MPL e não na massa, ou na polícia ou em qualquer outro movimento constituinte daquele episódio todo. A segunda decisão foi a de construir imagens com pretensão atemporal, sem cravar nelas um sentido preso a qualquer imediatismo. Disso partimos para o P&B e, depois, para a estratégia de isolar indivíduos na massa. Há em nossas imagens um certo recuo da multidão e o destaque para uma pessoa. Isso foi um desdobramento de um trabalho anterior, o Marcha (2012/2013), em que refotografamos um filme feito na Estação da Luz e, com essas novas fotografias em mãos, destacamos transeuntes dessa marcha, dando-lhes vozes individuais. Léo Cordeiro, amigo integrante do MPL e estudante de Filosofia, vendo o Marcha, me falou de uma ideia que lhe vinha à sua cabeça ao ver aquelas pessoas destacadas. Para ele era como se a cidade estivesse de alguma forma iluminando essas pessoas. Pois foi daí que saiu a ideia de iluminar alguns manifestantes. Em um segundo momento, quando já estávamos conversando com Thyago Nogueira, editor da ZUM, sobre este trabalho, ele sugeriu que iluminássemos mais de uma pessoa. O que fizemos e que muito bem contribuiu para o resultado da pesquisa, do ensaio por fim publicado na revista. O trabalho ainda ganhou uma ideia vinda de Elisa von Randow, que criou a peça gráfica como cartaz, isso deu uma amarração conceitual muito interessante. E aí veio o texto do professor Eugênio Bucci, que tem que ser lido, não é?

Mas para te responder brevemente, eu acho que o MPL nos devolveu uma capacidade de fazer política. E uma política para além dos prazos burocráticos e momentâneos das eleições. Eles devolveram à política a face de sonho pela emancipação social, para além das pautas medonhas de um Estado como o Brasil. Isso me interessou e provocou a busca por uma representação artística que também se pretende política.

Passados alguns meses, qual a sua visão pessoal daquelas manifestações?

Um grande momento, uma movimentação histórica. Penso que a única coisa realmente globalizada no mundo são as aspirações. O que é globalizado, portanto, paira no subjetivo, e isto é assustador, pois o que permanece, por exemplo, é o mando do consumo. Quando vejo os meninos do MPL acendendo o estopim dessa luz toda que se derramou em nosso país, me pego em um ponto positivo de aspiração, conectado com grandes movimentos sociais e contrários à massificação das doutrinas de um mundo regido pelo capital.

A mídia foi muito visada por alguns manifestantes mais exaltados, sendo que alguns fotógrafos foram inclusive agredidos. Vocês tiveram alguma precaução nesse sentido?

Particularmente, tenho bastante experiência em coberturas acirradas, foram muitos anos de jornalismo diário. Quando entro em situações assim, geralmente, percebo antes os riscos. Tenho sempre muito medo da polícia e nunca me senti ameaçado pelos manifestantes, nem pelos exaltados de direita nem pelos mais anárquicos Black Blocs. Passei tranquilo, sem nenhuma ameaça ou constrangimento. O que eu sentia e sinto é sempre muita emoção em estar na rua.

As fotografias da Cia de Foto não traziam a assinatura de ninguém, apenas do coletivo. Era difícil para o grupo encontrar uma unidade estética com fotos de diferentes autores? Havia uma tentativa por parte dos fotógrafos de evitar um tom muito pessoal ou o coletivo respeitava as particularidades de cada um?

Quase sempre a produção imediata do coletivo era afastada dos sentidos que as imagens ganhavam posteriormente, quando se transformavam em um trabalho. Havia dois passos em nossa produção: o primeiro, contínuo, o de gerar imagens. Vendo já numa perspectiva do tempo, tínhamos como uma performance atlética, uma produção estrondosa que misturava o gesto fotográfico amador (no sentido pleno da palavra, de quem ama) com as demandas profissionais de responder a um mercado e sobreviver dele. O segundo passo, em uma temporalidade mais racional e reflexiva, era o de rearranjar essas imagens em torno de um conceito estético que chamávamos de “ensaio”. Nesta parte de nosso processo, olhávamos para o acervo como predadores de sentidos, esgaçando o que ali teimava em permanecer como intenção inicial. Violentávamos, quase todas as vezes, a camada da performance que nos fazia fotógrafos de campo e trazíamos à tona a expressão artística de editores, desses que criam sentidos reais a uma superfície imagética adormecida nos arranjos pictóricos padronizados.

Essa é uma função que me dedico a cumprir na fotografia. Acho que em um mundo imagético como o nosso, ser fotógrafo é também caminhar e iluminar fotografias já produzidas. Nesse sentido, o trabalho de campo tinha suas particularidades de abordagem, intensidade e poética, entre os diferentes fotógrafos do coletivo. Porém, o que prevalecia era essa segunda etapa de produção – essa que ia a público, ganhava as salas de exposição, páginas de revistas como a ZUM, etc. E aí esse processo, inclusive, contava com a ajuda e participação de pessoas de fora do coletivo. Era bem comum convidarmos novas ideias para ajudar a determinar um ensaio nosso. Isso sempre acontecia.

Como eram feitas as “negociações” entre os membros do coletivo para a escolha das imagens que fariam parte de um ensaio? (Ou: como domar o próprio ego quando, digamos, os demais não gostam de uma imagem sua que você adora?)

A construção dos ensaios não se contaminava pelas ansiedades tão imediatas, sabe? Tinha um procedimento criativo descolado da produção da rua, como já disse, e havia uma direção criativa discutida entre os integrantes e os convidados. Isso tudo retornava às nossas mesas de trabalho, para ganhar salas de exposição, revistas e etc. O nosso trabalho sempre foi exposto em plena discussão interna. Nunca houve um consenso e, sim, disposição para pesquisa em torno da linguagem fotográfica. Por exemplo: não era consenso no grupo a visão sobre a tarifa livre de ônibus, sobre a Mídia Ninja ou outras questões que explodiram recentemente no país. Mas isso não impedia que o trabalho fosse posto à rua e, em torno dele, os discursos aparecem. Muitas vezes para fora de nosso controle. É como no texto do professor Eugenio Bucci, que acompanha o ensaio na ZUM e que poderia ter saído de uma conversa entre mim e o Léo Cordeiro: “Uma vez, um raio de sol atravessou uma das frestas e perfurou a atmosfera do cômodo, do alto da janela até a tábua corrida do assoalho. Deitado na cama, o menino viu brilhar cada um dos ciscos que flutuavam no espaço[…] o quarto agora é outro. O raio de luz parece igual, mas vem cruzar outros ares. Atravessa as aglomerações que escorreram pelas ruas de São Paulo desde do mês de junho e acende cada um dos ciscos humanos que agitam as passeatas […] Como acontecia no quarto antigo, agora também é possível ver as evoluções líquidas do ar, graças ao contraluz de soslaio, travesso, infantil”.

Bruno Ghetti é jornalista cultural e mestre em estudos cinematográficos pela Université de Paris VII.

Leia a matéria Passe Livre, Cia de Foto & Eugenio Bucci aqui.