Revista ZUM 2

Crer para ver

Lawrence Weschler & Errol Morris Publicado em: 23 de abril de 2014
O cineasta ERROL MORRIS conversa com o jornalista LAWRENCE WESCHLER sobre enganos fotográficos e sua obsessão pela verdade, com escalas no cinema, literatura e na filosofia. Publicado na revista ZUM #2 [abril de 2012].
O longo passeio do castelo de Windsor (1860), foto de Roger Fenton com ilustrações de Daniel Mooney. © 2011, Sua Majestada, A Rainha Elizabeth II, RCIN 2100070.

O longo passeio do castelo de Windsor (1860), foto de Roger Fenton com ilustrações de Daniel Mooney. © 2011, Sua Majestada, A Rainha Elizabeth II, RCIN 2100070.

Com faro apurado e curiosidade insaciável, Errol Morris desafiou a história da fotografia e do jornalismo ao mostrar que nem sempre vemos o que acreditamos ver.  Seus artigos saborosos e polêmicos, publicados no blog do New York Times e no livro Believing Is Seeing, põem em xeque imagens consagradas para tentar definir a natureza da fotografia e da visão.

O primeiro capítulo de seu novo livro representa bem todo o resto – você passa mais de 70 páginas examinando duas fotos de uma estrada depois de uma batalha da Guerra da Crimeia.  E logo no começo do livro você cita seu amigo Ron Rosenbaum: quer dizer que você foi até a Crimeia só por causa de uma frase da Susan Sontag?

Na verdade, foram duas frases.  Primeiro ela diz que agora se sabe que muitas das imagens canônicas das primeiras fotos de guerra tinham sido encenadas, ou posadas, seja lá o que isso queira dizer.  E então dá como exemplo o caso de Roger Fenton, “que, depois de chegar ao vale muito bombardeado perto de Sebastopol, fez duas exposições com o tripé na mesma posição; na primeira versão da celebradíssima foto, as balas de canhão estão concentradas na vala à esquerda da estrada, mas, antes de tirar a segunda, a que é sempre reproduzida, ele se assegurou de que as balas de canhão fossem espalhadas na própria estrada”.

E o que te incomodou tanto nisso?

O que me irrita na maior parte das coisas que se escreve sobre fotografia é que o escritor simplesmente viaja: a foto me fez sentir isso, me fez sentir aquilo ou aquilo outro; a intenção do fotógrafo era essa, era aquela, era aquela outra.  Enfrentei problemas tremendos por ter criticado Roland Barthes e Susan Sontag – os mitos intocáveis da teoria fotográfica –, mas o que me incomodou naquelas duas frases é o fato de Sontag sugerir que sabia o que Fenton estava pensando.  Eu me perguntei: mas como Sontag sabe que a foto com as balas de canhão na estrada, que vou chamar de COM, era posterior à foto com as balas fora da estrada, que vou chamar de SEM? Como ela sabe disso?

E com toda essa autoridade absoluta.

Com qualquer autoridade.  Aquilo me deixou irritado.

O livro deixa muito claro para qualquer leitor que você não ficou só irritado, ficou louco da vida.  A questão te fez ir até a Crimeia! Por quê?

Por várias razões.  Vamos formular um problema: o que dá para saber a partir de uma fotografia? Por exemplo, qual veio primeiro: SEM ou COM, COM ou SEM? Como estabeleço isso? A afirmação de Sontag me pareceu quase ex cathedra.  Como se fosse óbvio.  Talvez até seja, mas para mim não era.  Então, a pergunta era: posso determinar empiricamente a ordem das fotos? Falei com os mais variados especialistas, e percebi que a solução talvez fosse ir até a Crimeia na mesma época do ano, encontrar o local exato e registrar as sombras em horas diferentes da tarde, no começo e no fim, usando as balas de canhão que eu levaria junto.  Como deu para ver, a viagem à Crimeia não trouxe a solução.  É engraçado.  Quer dizer, ter ido até o fim do mundo não resolveu o problema.  E a solução veio inesperadamente.

Como assim?

Veio de um amigo da região de Boston, Dennis Purcell, que é muito habilidoso com o Photoshop.  Em resumo, ele sobrepôs perfeitamente as fotos, de maneira que pudesse alternar facilmente entre uma e outra.  E no final a resposta nem estava nas balas de canhão.  Aí está a ideia ingênua.  A ideia ingênua é que, se quer saber algo sobre a ordem das fotos baseando-se na presença ou na ausência das balas de canhão na estrada, você vai estudar as balas.  Mas, na verdade, isso se mostrou, não digo um erro, mas não se mostrou parte da solução.

Então ele olha o quê?

Ele olha as pedras ao lado da estrada.  Até dá nomes a elas: Fred, Oswald, Marmaduke, Lionel… O que se presume, claro, é que, qualquer que seja a ordem das fotos, alguém teve de mover as balas de canhão.  E que, para tanto, talvez essa pessoa tenha deslocado as pedras próximas.  E, de fato, você consegue ver um padrão no deslocamento das pedras, porque elas rolam para baixo, o que estabelece a ordem das fotos de maneira conclusiva.  Sontag tinha razão.

Droga!

COM vem mesmo depois de SEM. E, quanto às intenções de Fenton, o que isso significa? Não sei bem.  Há inúmeras razões possíveis para que as balas fossem mudadas de lugar.  Porque estavam sendo recolhidas para ser reutilizadas, ou porque Fenton, como afirma Sontag, achava que a foto sairia melhor se elas aparecessem na estrada.  O que me parece um mistério é que Fenton tenha conservado as duas fotos, tenha dado o mesmo título e exposto as duas, às vezes uma ao lado da outra.  Ele não tentou ocultar a existência de uma segunda fotografia.  Não se trata de alguém que armou uma cena e depois destruiu os indícios que mostrariam que a foto fora encenada.

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fotos de Eric S. Zimmerman

Mesmo assim, chega uma hora no livro, lá pela página 50, mais ou menos, que o leitor começa a perguntar: e daí, que importância tem isso? Ou: por que esse cara está tão preocupado com isso? Esse Morris perdeu uns parafusos? Talvez sejam os parafusos dele espalhados pela estrada.  Sério: e daí?

Eu defendo que podemos encontrar se não todas, pelo menos a maioria das questões que importam para a fotografia no exame dessas duas fotos.  A questão da encenação – o que queremos dizer quando afirmamos que uma foto é posada.  A questão da verdade e da falsidade na fotografia – uma foto pode ser verdadeira ou falsa? A questão das intenções do fotógrafo, e se essas intenções são capturadas de alguma maneira nas fotos que ele tira.

E a questão da nobreza dessas intenções.

Também.  O fato é que não existe isso de foto verdadeira, foto falsa.  A verdade e a falsidade são, a rigor, propriedades da linguagem, não das imagens.  Acho que acabamos criando uma infinidade de problemas quando falamos das imagens como se fossem verdadeiras ou falsas.

É mesmo, e essas questões aparecem várias vezes ao longo do livro.  Como exatamente entender aquelas fotos de Abu Ghraib, por exemplo – no livro, você amplia pontos levantados em seu filme Procedimento operacional padrão.  Ou se Walker Evans mudou de lugar ou até introduziu um despertador numa daquelas fotos de Elogiemos os homens ilustres.  Se, em data mais recente, fotojornalistas que estavam em Beirute, na hora em que Israel bombardeou a cidade, mudaram de lugar ou de posição um boneco do Mickey Mouse; e como entender o boneco e a posição dele, seja qual for, independentemente da legenda ou do lugar no jornal matutino onde a foto foi publicada.  

São questões muito epistêmicas, todas elas.

O grande neurologista Oliver Sacks às vezes diz que é um ontologista clínico, para quem, muitas vezes, a pergunta diagnóstica é literalmente: Como vai você? Ele lida constantemente com pessoas para as quais a pergunta apropriada seria: Como você é? Como é ser você? , pois o cerne do trabalho dele é um exame da natureza, da qualidade daquela maneira de ser.  E me ocorre que, da mesma forma, você é uma espécie de epistemólogo forense.  Bela ideia.  Ou talvez também um patologista epistemológico. Também uma bela ideia.  Porque você pega essas fotos e submete a um exame – uma espécie de CSI: Kodak – para saber como somos levados a acreditar nas coisas, a saber das coisas, até que ponto é possível conhecer alguma coisa, até que ponto as coisas podem ser fingidas ou encenadas, ou até que ponto tudo é, em certo sentido, encenado.  Se e como é possível chegar à verdade de qualquer coisa.

Parece que esquecemos um dado muito importante sobre a fotografia.  As fotos estão fisicamente ligadas ao mundo.  E uma parte do estudo da fotografia tem de ser o resgate, a recuperação dessa ligação física com o mundo de onde elas foram tiradas.  É algo que raramente faz parte da tarefa de estudar fotos.  Pegue uma foto do Einstein, por exemplo.  A questão é: não importa quem eu penso que está naquela foto.  O que importa é: Einstein estava na frente daquela câmera? Aquele homem.  Há uma ligação física entre a imagem naquela chapa fotográfica ou no dispositivo digital, seja o que for, e o homem que está ali? Não importa o que eu pense.  O que importa é qual é aquela ligação física.

O que realmente aconteceu.  Mas a pergunta permanece: e daí? Por que você se importa tanto? Pois acho que você realmente se importa.

No fundo, por que as pessoas se importam com a referência? Vamos pôr dessa maneira: se importa para você qual é nossa ligação com o mundo ao redor, então você se importa com questões básicas.  Questões sobre a verdade. Questões sobre referências. Questões sobre identidade.  Questões filosóficas básicas.  Vamos voltar às fotos de Fenton. Quero saber o que estou olhando. Acho que as fotografias têm uma espécie de caráter subversivo. Elas nos fazem achar que sabemos o que estamos olhando. Posso não saber o que estou olhando, mesmo nas melhores circunstâncias. Mas tenho todo esse contexto a minha disposição.  Sei que você é o Ren Weschler.  Já te vi antes.  Na verdade, somos amigos.  E tenho todo o contexto do mundo ao redor.  Mas as fotos fazem algo complicado. Elas descontextualizam as coisas.  Arrancam imagens do mundo e, por isso, nos deixam livres para pensar o que quiser sobre elas.

Achamos que as conhecemos assim como conhecemos os amigos.  

Exato, que temos algum conhecimento profundo só porque estamos olhando para elas.  Tem uma frase que, em certo momento, alguém me pediu para tirar de um dos ensaios do livro.  Falei: não, não posso tirar, é uma das minhas frases favoritas.  A frase é: “Falsas ideias grudam nas fotografias como moscas num papel mata-moscas”.  E acho que é verdade.  Acho que existe alguma coisa na natureza da fotografia que convida ao especioso, ao espúrio.  É um convite explícito para você pensar o que quiser.

Tudo isso explicaria por que você teria virado um poeta. Mas não virou.  Por que virou cineasta?

Não sei.  Porque não sabia escrever. Virei documentarista porque não sabia escrever.  E foi o que me restou como forma de expressão artística.

Não sabe escrever, pois sim… Diga isso aos leitores desses seus textos recentes, até exaustivos às vezes, nos dois sentidos. Vamos deixar um pouco essa linha de discussão, pois agora quero propor uma teoria biográfica a seu respeito. Minha ideia é que o fato de você ter ficado cego de um olho é o acontecimento central de sua vida. Em primeiro lugar, conte o que aconteceu.

Meu pai morreu quando eu tinha dois anos, quase três.  Não guardo nenhuma lembrança dele.  E aí, pouco tempo depois, um médico amigo da família me operou a vista, porque eu era vesgo.

Ampliação do fotograma de um filme de 16mm gravado por Bob Chappell

Ampliação do fotograma de um filme de 16mm gravado por Bob Chappell

E não adiantou.

Não adiantou.  Volta e meia essas operações não adiantam. E nos anos 1950 se sabia muito pouco a respeito.  Existe o estrabismo e existe a ambliopia.  O estrabismo, se não me engano, é apenas a dimensão física dos olhos mal alinhados.  Vesgo para fora ou vesgo para dentro, como era meu caso.  Já a ambliopia é a tentativa do cérebro de lidar com isso.  Se o cérebro não consegue alinhar as imagens dos dois olhos, ele elimina uma das imagens, pois a alternativa seria uma visão dupla.  É esta a explicação.  Naquela época, a solução era vendar o olho bom com um tampão e forçar o olho com defeito a funcionar.  Claro que eu sempre arrancava o tampão.  E aí meu olho esquerdo, o olho preguiçoso, nunca desenvolveu uma visão completa.  Consigo enxergar com ele, não tem nada de errado, o problema é a tentativa do cérebro de lidar com a incapacidade de alinhar os dois olhos.

De qualquer forma, anos depois, sua mãe acabou se casando com esse amigo da família, o oftalmologista.  Sua mulher faz aquela piada dizendo…

É, a Julie diz que é a história do Édipo ao contrário: o cara me deixa cego e se casa com minha mãe.  E ainda por cima logo depois que seu pai morreu. Fica meio mítico mesmo. Devo ressaltar que meu padrasto era um bom sujeito.

Em todo caso, o que sugiro é que a monocularidade resultante se revelou fundamental no seu caso.  Não que você não tenha percepção da profundidade, mas te falta a estereoscopia, que é a maneira habitual como a maioria dos bifocais consegue ter percepção da profundidade.  Você precisa usar todas as outras indicações.  E isso te permitiu, talvez até tenha te obrigado, a ficar hipersensível à constituição do senso de profundidade.  Em outras palavras, você tem de ficar se perguntando continuamente sobre o que está vendo, sobre como está vendo.

Tendo a concordar com isso.  Me deixou hipersensível à natureza da visão.  À maneira como se forma a visão.  Acho que é verdade.  Mas eu diria inclusive que é melhor ser cético sobre a natureza da visão do que aceitá-la acriticamente.  Um dia me saí com uma frase que ainda me agrada muito: “Melhor ser humiano do que humano”.  A frase expressa meu entusiasmo por David Hume, um dos grandes céticos quanto à natureza da experiência.

Antes, quando você estava falando que pensa muito na pose, na encenação, me ocorreu outra conotação da palavra, como na expressão posing a riddle, “propor uma charada, um enigma”.  A gente fala em posar, ou em alguma coisa ou alguém que assumiu uma pose.  Mas o cético é aquele para quem tudo é uma charada.  Ou pode se tornar uma charada.

A encenação sempre me incomodou.  Susan Sontag tem razão num aspecto sobre as fotos de guerra mais famosas, as que se tornaram icônicas – as pessoas questionam as circunstâncias em que foram feitas. Não só as de Fenton.  Joe Rosenthal e a bandeira que os soldados erguem em Iwo Jima, Robert Capa e a foto famosa do soldado tombado na Guerra Civil Espanhola, a foto famosíssima de Alexander Gardner com um atirador de elite rebelde em Gettysburg.  Todas elas são objeto de questionamento – em certa medida, teriam sido fotos posadas.  Mas o que queremos dizer com isso? Digamos que Fenton tenha carregado aquelas balas de canhão para a estrada porque queria uma imagem mais expressiva.  Não sei o que aconteceu, mas suponhamos que ele tenha movido as balas.  Em que sentido a foto resultante é de fato encenada? Não estamos em 1855? Não é a Guerra da Crimeia? Não é o vale da Sombra da Morte? Essa área não sofreu um intenso bombardeio russo? E por aí afora.

Sem dúvida as balas de canhão estiveram na estrada em algum momento.  Pode ser que tivessem sido removidas por uma ou outra razão, e ele apenas as pôs de volta.

Isso.  A questão é: o perigo é simplesmente olhar uma foto e pensar que sabemos o que estamos olhando.  O mais provável é que não façamos a menor ideia.

Parece que sua monocularidade, no sentido em que falávamos, a maneira como ela te deixou excepcionalmente sensível ao que constitui a visão, também te imbuiu de uma espécie de monomania.

Monomania? ! Faça-me o favor…

Vou insistir que a palavra é essa. Mas é uma monomania bifurcada.  De um lado, parece que você diz que toda essa discussão sobre se as coisas são posadas ou não – Fenton, Rosenthal etc. – pode ficar um pouco ridícula. Pois houve uma guerra, houve um bombardeio, crianças morreram no bombardeio de Beirute, e assim por diante.  Ao mesmo tempo, você quer dizer que o que estava realmente acontecendo na frente da câmera tem importância, e uma importância fundamental.

Tudo isso tem importância.

Mas tem como sustentar as duas coisas ao mesmo tempo?

A questão é que as pessoas criaram todas essas regras.  Porque perceberam, talvez de maneira meio inconsciente, como é fácil ser enganado por uma fotografia.  E então criam essas regras para nos proteger, todas essas regras tão conhecidas.  Não mexa em nada. Não toque em nada.  Observe a cena como ela é.  Seja como a mosca proverbial na parede.  Examine, mas não altere.  Use a luz disponível.  Não tente realçar a cena. E por aí vai. E, no final, supostamente, você terá algo verídico.  Seguindo essas regras, de alguma maneira espera-se que a verdade salte ali.  Bom, está errado, claro. Porque há aí todos aqueles outros tipos de pressupostos, problemas e confusões.  O fato de que existe o recorte e não enxergamos além dele, de nenhum dos lados, nem em cima nem embaixo…

E não só o recorte espacial, mas o recorte temporal também.  O fato de que havia coisas acontecendo antes e depois, e de que o fotógrafo escolhe apenas um clique entre as centenas possíveis.

Exato.  E todo o contexto onde a foto aparece.  O bloco de texto e a legenda têm, de fato, uma influência muito maior que a decisão de mexer ou não numa bala de canhão. O que realmente estamos nos perguntando em tudo isso é qual a relação entre nossas imagens e o mundo.

Que é a preocupação que te ocupa.  Você conhece a velha distinção de Isaiah Berlin entre o ouriço e a raposa.  Ele pegou de Arquíloco, o poeta grego antigo: a raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe só uma grande coisa.  Mesmo com toda a variedade dos assuntos que aborda, creio que você é essencialmente um ouriço – na verdade, um ouriço-turbo, um ouriço-perfuratriz.  Cava, cava, cava. É como um arqueólogo da fotografia, não tanto da história do medium, mas da estrutura profunda e da natureza do significado de qualquer foto.  E o engraçado é que, quanto mais fundo, digamos assim, você cava a verdade de uma foto qualquer, mais estranhas ficam as coisas, e geralmente mais incertas.

Mais incertas em alguns aspectos, menos em outros.  Graças a Dennis Purcell, sei com segurança que COM veio depois de SEM. Mas, sim, fico com mais dúvidas sobre outras coisas.

Ilustração de Dennis Purcell

Ilustração de Dennis Purcell

Vamos falar de mais coisas.  Por exemplo: O Homem do Guarda-Chuva.  Para quem ainda não viu no site do New York Times, é um curta-metragem de Errol, de sete minutos – se você puder descrever…

Bom, comecei muitos filmes que ficaram sem terminar.  Geralmente em forma de entrevista.  E nesse caso era uma entrevista com uma figura extraordinária: Josiah Thompson, conhecido como Tink Thompson.  Ele tinha se doutorado em filosofia com uma tese sobre Kierkegaard, era professor no Haverford College, e deixou o emprego por causa de sua obsessão com o filme de Abraham Zapruder sobre o assassinato de John Kennedy.  Foi trabalhar na Time Life e acabou virando detetive particular no norte da Califórnia.  Uma carreira bem excêntrica.

Era uma época em que muita gente estava obcecada com o assassinato de Kennedy. Ele era um desses. E muita gente continua. Mas ele era um entre muitos. E seu livro Seis segundo sem Dallas ainda é um dos melhores sobre o assassinato, ou pelo menos sobre o filme de Zapruder.  Há aquela frase famosa, daquele general argentino antissemita, que dizia que os judeus foram responsáveis por destruir, sucessivamente, a ideia cristã de família: Freud.  A ideia cristã de Estado: Marx. E a ideia cristã de universo: Einstein.  Ao que eu acrescentaria a ideia cristã de Estados Unidos: Abraham Zapruder.

Voltemos ao Homem do Guarda-Chuva.

Isso, o Homem do Guarda-Chuva era uma obsessão de muita gente.  Pois no filme de Zapruder, e em várias fotos tiradas na Dealey Plaza em 22 de novembro de 1963, aparece um homem sozinho, parado, segurando um guarda-chuva preto aberto, que ele fecha logo depois dos disparos.

Isso num dia de tempo bom.

Um dia absolutamente maravilhoso.

O único guarda-chuva em Dallas naquele dia.  E estava parado bem ali, na curvada descida, a poucos metros de onde ocorreu o assassinato.

Exato.  Bem ali de onde saíram os disparos.  Então muita gente se perguntou: Mas que raios é isso? O que significa? Quem é o homem de guarda-chuva?

Devia ter algum significado obscuro.

Muito, muito obscuro mesmo.  Que o guarda-chuva, como Tink descreve, seria um sinal para coordenar o assassinato entre vários atiradores independentes. Ou que o guarda-chuva seria algum tipo de arma disfarçada.

Um guarda-chuva armífero.

Que teria sido responsável pelo ferimento na garganta que aparece no momento crítico do filme de Zapruder.  É uma história sobre as teorias da conspiração e nossas tentativas de explicar os acontecimentos históricos, em vista dos poucos indícios materiais, e como então aparecemos com as teorias conspiratórias mais desvairadas.

Mas nenhuma mais desvairada do que o que estava realmente acontecendo.

Nenhuma mais desvairada que a história real.

A saber?

Que o Homem do Guarda-Chuva – quando ele se revelou, muitos anos depois, respondendo aos pedidos do Congresso para que se identificasse – na verdade estava protestando contra as políticas de Joseph P.  Kennedy, pai de John Kennedy, que tinha incentivado a pacificação e a aceitação de Hitler quando foi embaixador de Roosevelt na Inglaterra, nos anos que culminaram na Segunda Guerra Mundial.  Era uma referência a Neville Chamberlain, que virou o bode expiatório da história.  Neville Chamberlain com seu guarda-chuva fechado.

O que, por sua vez, leva Tink a citar John Updike e sua teoria quântica da verdade.

Bom, o que ele fala no começo é se existe isso que chamam de verdade.  Desconfio que sou daqueles que acreditam na verdade.  No fundo, sou um realista. Acredito sinceramente que existe um mundo real lá fora.

Antes de comentar isso, explique o que diz Updike.

Updike escreveu sobre o Homem do Guarda-Chuva na revista New Yorker.  E sugeriu que talvez o mundo seja tão estranho que existem coisas que nunca,jamais poderemos explicar. Coisas que ficam cada vez mais incertas.

De fato, ele faz uma analogia com a física, sugerindo que, em termos gerais, a história segue o que podemos chamar de leis newtonianas, mas que, quanto mais você cava qualquer evento individual, quanto mais você se aprofunda, mais começam a aparecer coisas quânticas.

Isso, você acaba chegando numa paisagem estranha, que é realmente desconhecida de todos nós.

E que quando você cava, cava e continua a cavar, você atravessa a verdade e vai cair nessa…

Nessa terra de ninguém.

E me parece que, apesar de toda a devoção que você acabou de expressar pela realidade do mundo, pela possibilidade de descobrir se as coisas aconteceram ou não de verdade, pelo menos uma parte de seu trabalho também segue nessa outra direção.

Acho que sim. É um comentário interessante.

Quanto mais se cava, mais louca a coisa fica.

É louca o tempo todo. Existe uma espécie de absurdo demoníaco no mundo.

Então talvez a síntese de Hegel seja que tudo fica cada vez mais louco, mais louco e mais louco, e esta é a verdade.  Que existe um mundo real, e que o mundo real é louco.

Existem tantos, mas tantos detalhes que, quando você começa a explorar os detalhes de qualquer coisa, não sabe quais são pertinentes e quais não são.  Estou escrevendo um livro, O deserto de erros, sobre o caso do assassinato do dr. Jeffrey MacDonald, aquele sobre o qual Janet Malcolm escreveu. Pensei: não seria interessante escrever um livro sobre uma investigação em que a investigação recaísse sobre a incerteza? No livro, comento que existem alguns sinais – Carlo Ginzburg escreveu um ensaio sobre isso, “Sinais: raízes de um paradigma indiciário” – de que a ideia toda do trabalho de detetive foi criada por escritores e depois adotada pela polícia.  Então você temesse grande cânone da literatura de detetives, desde Edgar Allan Poe, Wilkie Collins, Arthur Conan Doyle e Émile Gaboriau.  E há uma frase que eu adoro em Gaboriau, quando o detetive dele, Monsieur Lecoq, está examinando a paisagem em torno da cena de um crime, coberta de neve, com aquelas pegadas espalhadas, e aí ele olha ao redor e diz ao compatriota: “Agora sei tudo”. O sonho é este.  O sonho das histórias de detetive é que o mundo dê provas de si mesmo.  Examinando o mundo, você vai saber tudo o que precisa saber.  É uma tese otimista do século 19.  Que não existem limites. Mas a história é estranha. Fiz um discurso de formatura na escola de jornalismo da Universidade da Califórnia, em Berkeley, e expus meu incômodo com aquela frase de que o jornalismo é o primeiro rascunho da história.  Disse que às vezes o jornalismo é o único rascunho da história. Porque os indícios históricos são perecíveis.  Podem desaparecer.  Se não forem registrados por alguém, se alguém não os observar, podem sumir para sempre. Se perdermos todos os indícios históricos – e perdemos a maioria –, o que de fato poderemos dizer sobre a história? O que de fato poderemos saber sobre ela?

Falei antes que você parecia um epistemólogo forense.  Mas agora me ocorre que o que você traz a campo é especificamente esse cruzamento entre ver e saber. Em outras palavras, o Monsieur Lecoq de Gaboriau diz “Agora sei tudo”.  Outra maneira de dizer é “Ah, estou vendo!”.  Ah, estou vendo, quer dizer, entendo.  Aliás,o título de seu livro, Believing Is Seeing, é um trocadilho com o velho clichê “ver para crer”, uma charada epistemológica, se é que isso existe.

Tudo isso remonta a Poe, como sempre.  Toda a minha ideia de um “deserto de erros” vem dele.  Poe entendeu isso num nível profundo.  Em Assassinatos na rua Morgue, que para mim ainda é um dos grandes triunfos da literatura ocidental, Poe diz duas coisas que podem parecer diametralmente opostas. Primeiro, como Gaboriau, ele diz que você pode saber tudo.  Pode olhar o prego que está sem cabeça, pode olhar o corpo destroçado enfiado na chaminé, pode olhar a bolsa cheia de ouro.  E então faz aquelas deduções fundamentais e determina o que realmente aconteceu.  E é aí que eu acho que entram a genialidade e a loucura de Poe.  Porque você descobre que a cena desses crimes foi criada por uma força selvagem, misteriosa, arcana, recôndita, que no fundo nunca poderá ser explicada.  Você pode saber tudo, e pode não saber nada.

Você acaba de resumir sua posição com relação às fotografias.

É mesmo?

É a dialética que eu estava comentando antes, que você pode cavar, cavar procurando um mundo real…

E no fim encontra um orangotango malvado.  É basicamente o resultado final. Você encontra um orangotango malvado. E aí, onde você está?

E é aí que você vive.

É, é mais ou menos isso.

Vamos começar a pôr um fecho nisso.  No contexto de alguém que perfura e segue adiante, alguém que cava e sonda, há, claro, a ideia de capacidade negativa de John Keats.  Que ele define como aquela condição “quando um homem é capaz de existir entre incertezas, mistérios, dúvidas, sem sentir nenhuma coceira de ir atrás dos fatos e das razões”.  Você me dá a impressão de sentir uma coceira doida de ir atrás de fatos e razões.  E ao mesmo tempo você também tem uma espécie de capacidade negativa. É capaz de existir entre incertezas, mistérios e dúvidas.  Mas só depois de se coçar, coçar, cavar, cavar, explorar, até chegar ao ponto em que alcança essa noção de dúvida e mistério, ao ponto em que finalmente se acalma e se sente centrado.  Isso faz algum sentido para você?

Um pouco…

Você não me dá a impressão de ser alguém com muita capacidade negativa de saída.  Você acha que tem uma capacidade negativa inata? Quer dizer, afinal, você é aquele que tanto se coça e cava durante 75 páginas sobre meia dúzia de balas de canhão.

Uma das coisas que me incomodam em relação ao livro é que as pessoas ficam meio insatisfeitas.  Eu faço tudo isso e elas pensam: ué, ficou por isso mesmo? Não sei o que querem. Será que vão mesmo ficar deprimidas se souberem que as fotos não são falsas nem verdadeiras? Que você não pode fazer nada para dar mais – ou menos – verdade a uma foto? É só uma foto. E todas as fotos são posadas.  E ainda assim as pessoas se empenham em nos enganar com fotos,porque tentam nos enganar com praticamente qualquer coisa que esteja ao alcance delas.  O desejo de enganar o outro talvez seja o desejo mais profundo e mais sincero da humanidade.

Tem quem pense que foi por isso que se inventou a linguagem, para poder enganar os outros.

Era uma de minhas frases: inventamos a linguagem para poder mentir melhor. “A fera foi por ali. ” “Achei que tinha ido por lá. ” “Não, não, foi por ali. ”

Em seu Tractatus, Wittgenstein, quase com a mesma quantidade de páginas em que você fala sobre as benditas imagens das balas de canhão, discorre em pontos enumerados sobre a natureza da relação entre o mundo e a linguagem, e finalmente chega ao ponto número 7 – que, na Criação, é o dia em que Deus descansa. Aí ele declara, de modo simples e desconcertante: sobre o que não se pode falar, deve-se silenciar.  Mas sempre achei que, quando alguém diz meio à toa, por exemplo, “O que se pode dizer sobre o Holocausto, sobre a maldade humana, ou sobre o que for? Devemos ficar em silêncio. ”, sempre achei que o genial do ponto de Wittgenstein é que você tem de fazer por merecer o silêncio.  Você tem de chegar a um silêncio honesto.  E, em certo sentido, o que me impressiona em seu trabalho de ouriço é que você cava, cava, cava como uma perfuratriz turbinada até chegar à dúvida, ao espanto, ao assombro real e profundo.  Você chega lá. Isso faz sentido.

Ah, faz.  Legal o que você disse.

Esteja dito.

É a busca do inefável…

Ou de fazer por merecer o inefável.  Aliás, quando estávamos falando da pose, percebo que temos um terceiro sentido de pose: P-O-E-apóstrofo-S. Poe’s. A pose de Poe. As perguntas difíceis, as posers, de Poe.

E não esqueça a citação que estou usando para meu próximo livro: o título vem de minha citação preferida entre todas.  E vem a propósito do que você estava falando.  Poe discorre sobre seu personagem William Wilson, que procura “um oásis de fatalidade num deserto de erros”.

É um oásis de fatalidade? Ou um oásis de facticidade?

Em Poe, é fatalidade.  Mas não sei bem o que ele quer dizer… tem isso também…Sempre achei, mas é muito possível que eu esteja errado, que significava um oásis de certeza.  Um oásis de algo que você sabe com certeza.

O que para Poe, aliás, seria a morte.

Isso, a certeza da morte. Um oásis de fatalidade, que expressão incrível.  Eu tinha aquela edição Belknap das obras completas de Edgar Allan Poe, e no final tem o fac-símile do último conto.  Você conhece “O farol”?

Não.

Vale a pena olhar o conto e o fac-símile, porque o conto não termina.  Talvez nem pudesse jamais terminar. Vem bem ao caso. Foi a última coisa que Poe escreveu. E ele fala desse farol.  E naquele supremo detalhismo que é o estilo de Poe, ele discorre longamente sobre o farol: que se situa em algum lugar domar, furiosamente açoitado pelas ondas e pelos ventos.  Mas não há por que se preocupar, pois o farol se ergue sobre uma fundação indestrutível, inexpugnável, em leito de rocha e com âncoras de ferro.  A estrutura jamais cederia sob o impacto de coisa alguma.  E ele continua, vai em frente.  Tem um parágrafo sobre a resistência indestrutível do farol, e outro parágrafo sobre a fúria dos temporais e das correntes oceânicas em torno do farol.  E há montes de reticências. O texto é lindíssimo.  E ele avança e recua assim – a fundação incrível, o mar terrível.  E aí, na hora em que ele começa outra celebração dos alicerces, vem uma segunda frase: “Mas, pelo que parece, a fundação pode ser de calcário”. E aí vêm reticências.  Termina assim. É bem uma fatalidade no deserto de erros. Podia existir coisa melhor?

Sabe o que também é engraçado nisso? Um farol é monocular…

Meu Deus! ///

 

Errol Morris é diretor de documentários. Entre seus filmes, destacam-se A tênue linha da morte (1988) e Sob a névoa da guerra (2003). Believing is seeing foi publicado pela Penguin Press em 2011.

Lawrence Weschler trabalhou na revista The New Yorker por mais de 20 anos. Dirige o Instituto de Humanidades da Universidade de Nova York. Publicou, entre outros, Um milagre, um universo (1990).

 

Imagens: divulgação Believing is Seeing, de Errol Morris (penguin Press, 2001)

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