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O que nos revela a estética da delação premiada?

Nelson Brissac Peixoto & Giselle Beiguelman Publicado em: 20 de abril de 2017

Os espaços são anódinos, salas e cubículos com paredes nuas, estantes vazias e mesas de fórmica. As webcams, posicionadas sem preocupação com enquadramento ou iluminação, revelam mochilas largadas nos cantos, garrafas de café, cadeiras vazias e fundos de Eucatex. As imagens são desfocadas, em ângulos oblíquos, deformando os rostos delatantes. Personagens se explicam acompanhados de advogados entediados. Oscilam entre a arrogância e a naturalidade, como se a confissão fosse em si uma redenção.

O que nos revela a estética da delação premiada? Antes de tudo, a banalidade dos envolvidos. Seus gestos e falas expressam as certezas de quem jamais imaginou ter seus depoimentos publicamente veiculados. Tudo é tratado como acontecimento corriqueiro. São frequentes as risadas, as piscadas, as espreguiçadas, os dar de ombros e outros gestos de indiferença.

Mas não é somente nisso que reside o inesperado poder de impacto dessas imagens vulgares, improvisadas, até mesmo displicentes. No mundo do espetáculo de si mesmo em que vivemos hoje, de selfies cuidadosamente posadas e vídeos “caseiros” feitos com celular de altíssima resolução, o choque político e cultural foi provocado por imagens desprovidas de qualquer elaboração visual.

Nada que remeta à linguagem da reportagem ou do cinema-verdade. Não é da retórica da fotografia e do cinema que se trata aqui. Estamos longe do universo midiático da votação da abertura do processo de impeachment da presidente Dilma, quando a Câmara dos Deputados se transformou em uma arena de memes e de poses canastronas, porém calculadas para serem enquadradas na tevê.

Essas imagens são praticamente automáticas, gravadas por câmeras de computador, como meros registros dos depoimentos. Ninguém, nem interrogadores nem delatores, parece atentar para o que está sendo feito. Não são câmeras ocultas, as gravações são apenas procedimentos corriqueiros, incorporados à rotina do inquérito.

Talvez seja sua crueza primária, anterior a qualquer linguagem visual, a qualquer intenção estética, o que mais contribua para revelar o seu sentido último, o absoluto desprezo por considerações éticas e sociais das delações. Na sua falta de acabamento, são o retrato mais nítido do que impunidade quer dizer. Não é preciso ouvir os depoimentos. Essas imagens descartáveis nos mostram o que até agora não podíamos ver.///

Giselle Beiguelman é artista e professora da FAUUSP. Seu trabalho inclui projetos em rede, instalações multimídia e intervenções no espaço público. Entre os mais recentes destacam-se: Quanto Pesa uma Nuvem? (2016) e Memória da Amnésia (2015). É Autora de Futuros Possíveis: arte, museus e arquivos digitais (2014), entre outros. Site: http://www.desvirtual.com

Nelson Brissac Peixoto é filósofo e curador. É autor de Paisagens Críticas: Robert Smithson, arte, ciência e indústria (2010), entre outros volumes e ensaios em livros. Foi co-roteirista da série de televisão America, com João Moreira Salles, e é professor da PUC-SP. Atualmente desenvolve os projetos ZL Vórtice e Arte/Cidade – Linha Metálica.

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