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Entenda a recente polêmica sobre as icônicas fotos do Dia D de Robert Capa

Francisco Quinteiro Pires Publicado em: 11 de setembro de 2015
Reconstrução digital de folha de contato mostrando os nove negativos com imagens do Dia D de Robert Capa, que teriam sobrevivido ao acidente no laboratório da Life; dois dos originais que teriam se salvo se perderam. © Robert Capa/International Center of Photography/Magnum Photos/Latinstock

Reconstrução digital de folha de contato mostrando os nove negativos com imagens do Dia D de Robert Capa, que teriam sobrevivido ao acidente no laboratório da Life; dois dos originais que teriam sido salvos se perderam. © Robert Capa/International Center of Photography/Magnum Photos/Latinstock

 

Por mais de setenta anos, John Morris teria contado uma mentira sobre as icônicas fotografias de Robert Capa (1913-54) do chamado Dia D, como ficou conhecido o desembarque das tropas aliadas na costa litorânea da França, em 6 de junho de 1944. Então editor fotográfico da sucursal de Londres da revista Life, Morris disse na época que apenas 11 das 106 fotos tiradas por Capa de um dos eventos mais significativos da Segunda Guerra Mundial haviam sobrevivido ao erro cometido por um assistente de laboratório, em 7 de junho daquele mesmo ano. Durante a secagem do filme fotográfico, ao ser exposta a uma temperatura maior do que a recomendada, a emulsão dos negativos teria derretido, fazendo com que a superfície do filme se tornasse opaca.

“Podemos continuar tratando a que consideramos ser uma das grandes façanhas de Robert Capa como uma lição de bravura, profissionalismo e competência, como algo a ser venerado e emulado?”, questiona A. D. Coleman, crítico de fotografia norte-americano que afirma ser inverídica a versão sustentada por Morris nas últimas sete décadas. Coleman fez a primeira de suas críticas a Capa e a Morris em junho do ano passado. Em uma série de posts reunidos em seu blog – vencedora na categoria pesquisa do prêmio Sigma Delta Chi, outorgado pela Sociedade de Jornalistas Profissionais norte-americana, em 2014 –, Coleman defende o argumento de que Capa, considerado o protótipo do fotógrafo de guerra, “teve um ataque de pânico atípico durante o desembarque, usou erroneamente seu equipamento fotográfico, causou a superexposição do filme e correu do campo de batalha depois de trinta minutos ou menos”.

O crítico iniciou o questionamento da legitimidade da história contada por Morris depois que o fotógrafo J. Ross Baughman, ganhador do Pulitzer em 1978, revelou seu ceticismo quanto à versão oficial do desempenho de Capa no Dia D e o posterior derretimento da camada de gelatina dos filmes no laboratório da Life. Baughman declarou que, durante sua carreira de mais de quarenta anos, nunca testemunhou os negativos de um filme cuja composição química se derreteu apresentarem um aspecto turvo na superfície. “O calor extremo pode ser a causa para a emulsão ficar muito sensível e mais propensa a riscos ou descamação, mas não para alterar um negativo normal em algo uniformemente opaco”, escreveu Baughman. “Já vi filmes devidamente revelados que, após a lavagem final, foram submetidos a um calor terrível, fazendo com que se deformassem e se curvassem ou com que a emulsão desenvolvesse bolhas e rachasse como uma pintura velha. Nada disso pode ser visto nos filmes danificados de Capa.” (No ano em que recebeu o Pulitzer, Baughman foi criticado por seu método de trabalho. Antes de registrar os maus-tratos de prisioneiros por tropas do governo da extinta Rodésia, ele não se apresentou como fotógrafo. Ao esconder a verdadeira identidade, pôde se infiltrar entre os soldados africanos.)

Não é a primeira vez que o trabalho de Capa é posto em dúvida. A morte do soldado legalista (1936), fotografia feita por ele em Córdoba durante a Guerra Civil Espanhola, é alvo de controvérsia desde os anos 1970. Pesquisadores já afirmaram que Capa estaria em outra cidade da Espanha quando da realização da imagem, e até que o retrato seria de autoria de Gerda Taro (1910-1937), namorada do fotojornalista, morta durante o conflito entre os combatentes republicanos e as tropas lideradas por Francisco Franco.

Tanto Coleman quanto Baughman basearam sua análise nos supostos filmes arruinados que Capa utilizou no Dia D. Um vídeo produzido pelo site da revista Time por ocasião dos setenta anos do desembarque das tropas aliadas na Normandia e exibido em maio de 2014 mostrava os negativos. Com o título Por trás da foto: O Dia D por Robert Capa e duração de 4 minutos e 16 segundos, é narrado por Morris, que repete a história sobre o derretimento da emulsão já relatada em sua autobiografia, Entendendo a figura toda: Uma história pessoal do fotojornalismo (1998).

Tempos após a veiculação do vídeo da Time, o fotógrafo Rob McElroy alertou Coleman de que os negativos de superfície opaca exibidos ali eram adulterados. Inicialmente, a revista não avisou aos internautas sobre a alteração. Quando Coleman fez sua observação sobre a falha editorial, a Time se corrigiu e explicou que aquilo fora feito à guisa de exemplo ilustrativo.

Coleman diz ter replicado em um quarto escuro de sua casa o que teria ocorrido no laboratório da revista, embora não tenha usado o mesmo tipo de filme empregado por Capa em 1944. “Ao contrário da narrativa proposta por Morris, esses negativos nos mostram exemplos de filmes que receberam a revelação e a secagem apropriadas”, escreveu Coleman. “O turvamento dos negativos se deu durante a exposição dos filmes, e não depois de sua revelação no laboratório da Life.”

Crítico premiado que já fez colaborações em veículos como New York Times, Village Voice e New York Observer, Coleman defende a mesma teoria proposta por Baughman. A culpa pelos danos provocados na maior parte dos rolos não fora de um assistente, um adolescente de 15 anos chamado Dennis Banks, tal como Morris tem assegurado nas últimas sete décadas. O responsável seria o próprio Robert Capa.

Depois de visitar por dois dias o arquivo do International Center of Photography (ICP), em Nova York, Coleman afirmou que três dos rolos usados por Capa que teriam sido destruídos no acidente no laboratório da Life estariam na verdade intactos no ICP; ele os teria visto e recebido cópias em baixa resolução, mas não obteve autorização do instituto para divulgar as imagens. De acordo com o crítico, esses três rolos conteriam fotos anteriores ao desembarque dos soldados aliados na praia de Omaha, na Normandia. Em vez da ação do desembarque, os negativos mostrariam soldados que sobem nas embarcações, carregam mochilas e armas, jogam cartas, leem ou descansam.

Coleman argumenta que Capa recuou por covardia no momento mais importante da invasão das tropas aliadas. “Ele usou apenas um rolo na praia de Omaha antes de sair correndo, fez no máximo 36 fotografias, e não 106; dessas, apenas onze resultaram utilizáveis”, escreve. “As imagens de Capa se tornaram famosas não porque eram ‘as melhores sobre o desembarque’, como o próprio reivindicou em 1947, mas porque foram as únicas sobre o ocorrido a alcançar tamanha circulação internacional.”

Dois dos posts divulgados no blog foram escritos por Charles Herrick, militar reformado. Ao analisar uma das fotos do Dia D, originalmente publicada pela Life em 19 de junho de 1944, Herrick conclui que Capa chegou à Normandia duas horas depois do início da operação militar. O que o fotógrafo registrou não eram os primeiros soldados sob o fogo cruzado dos nazistas, mas o Combined Demolitions Team 10, um grupo de engenheiros de guerra responsáveis por desativar os obstáculos deixados na praia. A posição dos soldados na água e a identificação em seus capacetes provariam sua verdadeira identidade.

Detalhe da imagem analisada por Charles Herrick. © Robert Capa/International Center of Photography/Magnum Photos/Latinstock

Detalhe da imagem analisada por Charles Herrick em seus posts. © Robert Capa/International Center of Photography/Magnum Photos/Latinstock

Esses rolos com as imagens sobre os eventos que antecederam a manhã de 6 de junho de 1944 teriam sido transferidos do arquivo da agência Magnum para o do ICP, de acordo com Coleman. Capa, Henri Cartier-Bresson, David “Chim” Seymour e George Rodger, imbuídos por ideais esquerdistas e antifascistas, fundaram a Magnum em 1947 como uma cooperativa de fotógrafos para que eles, e não jornais ou revistas, detivessem os direitos autorais do próprio trabalho. A seu ver, a mesma fotografia poderia circular em diferentes periódicos e ser depois publicada em livro. Cornell Capa, irmão de Robert, criou o ICP em 1974 para promover o que chamou de “fotografia engajada”. Nada mais natural, acredita Coleman, que a ligação fraternal explique a ida do acervo de Capa da Magnum para o ICP.

A consolidação da história sobre a camada de gelatina derretida é atribuída pelo crítico a Richard Whelan, ex-curador do ICP e autor de Robert Capa: Uma biografia (1985), texto autorizado sobre o fotojornalista. No catálogo da exposição Isto é Guerra! Robert Capa em Ação, realizada em 2007 e da qual foi curador, Whelan repete a mesma ideia por ele apresentada no livro mais de vinte anos antes. “A emulsão tinha derretido apenas o suficiente para que deslizasse um pouco sobre a superfície do filme”, escreveu o curador e biógrafo. “Ironicamente, a pouca definição das imagens sobreviventes pode realmente ter reforçado seu impacto dramático, pois as imbuiu de um sentido quase palpável de urgência, gerando por conseguinte uma repercussão explosiva.”

Coleman aponta como falha grave a ausência de fontes primárias e notas de rodapé na biografia de Whelan, cujo trabalho ainda serve de referência para Cynthia Young, atual curadora do acervo de Capa no ICP. Quando inquiriu representantes da Magnum e do ICP para apresentar a sua teoria, o crítico diz que ambas instituições ignoraram seus pedidos de esclarecimento. Ele chama de “Consórcio Capa” a suposta tentativa da Magnum e do ICP de acobertar a “fábula” do fotojornalista que se vangloriava de ser destemido. “Em minha opinião, Morris inventou essa história não para criar uma lenda, mas para proteger uma – a de Capa como o maior fotógrafo de guerra”, escreveu. Segundo ele, Morris tinha consciência de que sua reputação como editor dependeria da de Capa como fotojornalista. Apesar de ter trocado e-mails com Coleman, dado entrevistas depois do início da polêmica e mencionado a existência da teoria de que Capa pode ter arruinado três rolos por conta própria, Morris não fez um mea-culpa.

Procurada pelo site da ZUM, Young desmentiu a afirmação de Coleman de que estão intactos no ICP os negativos dos três rolos usados por Capa antes do início da operação de combate na França. “O ICP detém apenas nove negativos sobreviventes do desembarque na praia de Omaha em 6 de junho de 1944”, disse. “Não há no instituto filmes adicionais feitos por Capa e relacionados ao desembarque.” A curadora contestou as afirmações de Coleman de que Capa teria estragado os rolos por incompetência. “John Morris estava no laboratório da Life em Londres quando os negativos do desembarque dos aliados foram revelados. Disseram-lhe que o calor excessivo tinha derretido a emulsão de boa parte dos filmes. A suposição desde sempre é que a péssima qualidade dos negativos do Dia D foi causada pela má revelação naquele laboratório”, diz Young.

Embora tenha pedido ao arquivo do ICP um exame técnico independente, o crítico diz que essa sua sugestão também foi ignorada. “Se as fotos não são boas o suficiente, é porque o fotógrafo não esteve perto o suficiente”, Robert Capa costumava dizer. Caso esteja certa, a teoria de Coleman e seus colaboradores põe em xeque uma tradição celebrada por Capa e que até hoje persegue os fotógrafos de guerra: a de que o valor de uma foto está sujeito à coragem de seu autor de chegar e permanecer na linha de frente.

 

Francisco Quinteiro Pires (1982) é jornalista. Nasceu no Brasil e vive em Nova York desde 2010.

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