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Terrorismo em cena: fotógrafos e jornalistas falam sobre a polêmica foto do ano do World Press Photo 2017

Suzana Velasco Publicado em: 22 de fevereiro de 2017

Burhan Özbilici, Mevlüt Mert Altıntas após assassinar a tiros o embaixador russo na Turquia, Andrei Karlov, em uma galeria de arte, 19/12/2016. Foto do Ano do World Press Photo 2017.

A figura do turco Mevlüt Mert Altintas, que matou o embaixador russo na Turquia, Andrei Karlov, numa galeria de arte, rodou o mundo no fim do ano passado pela imagem de Burhan Özbilici. Parece um frame de cinema. O assassino veste terno ajustado e gravata fina, tem uma mão apontada para o alto, uma pistola na outra, e grita ao lado do cadáver no chão. No dia 13 de fevereiro, ela voltou à circulação ao ser eleita a foto do ano pelo World Press Photo (WPP), um dos principais prêmios internacionais de fotojornalismo. Junto com a honraria vieram críticas de que ela ampliaria a voz do terrorismo, mas também a defesa de uma fotografia que um dos jurados, João Silva, chamou de “a cara do ódio”.

O estopim da polêmica foi a oposição do próprio presidente do júri do WPP, Stuart Franklin, que em artigo no jornal britânico The Guardian afirmou: “Pôr a fotografia neste alto pedestal é um convite aos contempladores deste tipo de espetáculo ensaiado”. Franklin sustenta ainda que “a publicação da foto é moralmente tão problemática como a de uma degolação terrorista”. Apesar desse questionamento moral de sua publicação, ele defende o prêmio dado a Özbilici na categoria Notícias – Histórias, pela sequência de fotos na galeria de arte em Ancara. Acredita, no entanto, que o título de foto do ano faz ecoar uma mensagem terrorista.

A jornalista Dorrit Harazim discorda da opinião de Franklin. “No meu entender, as reticências morais por ele levantadas não se sustentam. Todo atentado terrorista visa à espetacularização máxima, à manipulação da mídia e da sociedade – a essência do terror é ser, ao mesmo tempo, meio e fim”, diz, em depoimento por e-mail. “Franklin argumenta que não deveríamos injetar-lhe mais oxigênio, que a cena premiada foi um homicídio premeditado e coreografado para ocorrer diante da imprensa presente no salão. Sem dúvida; é possível até que o assassino tenha ensaiado em casa, diante do espelho, o gestual de maior efeito cênico. Ainda assim, ele não poderia ter previsto a cena captada por Özbilici, na qual até o par de óculos do morto jaz, inútil, num canto da parede. Tampouco o fotógrafo previu a cena, apenas teve o talento e o instinto de registrá-la para a história. A imagem atrai e repulsa. Ela é o retrato do ódio da sociedade polarizada em que vivemos.”

O fotógrafo de guerra André Liohn também sustenta que a imagem tem o efeito oposto: ela desqualifica o terrorismo, não o incentiva. “Ela expõe exatamente a dimensão do problema com que estamos lidando hoje. Isso é fotojornalismo”, afirma ele, por Skype, de Mossul, no Iraque. Editor-adjunto do Núcleo de Imagem da Folha de S. Paulo, Daigo Oliva concorda, e diz que se atos de loucos não pudessem ter visibilidade, outras imagens tampouco seriam premiadas pelo WPP. “A foto do ano tem informação, ela materializa a insanidade humana. Você consegue enxergar o que é um homem insano naquela foto.”

Em texto no blog Entretempos, o editor aponta o retorno do prêmio a um fotojornalismo mais cru. Em 2014, a foto do ano foi do americano John Stanmeyer, que sublinhava a propagação da tecnologia num registro de imigrantes somalis com seus celulares. Em 2015, a eleita foi a imagem de um casal gay na Rússia, do dinamarquês Mads Nissen. Em 2016, o prêmio voltou à realidade mais imediata com uma imagem de refugiados passando um bebê por uma cerca, do australiano Warren Richardson. Ainda assim, diz Oliva, esta é muito contemplativa se comparada à eleita em 2017.

“A foto na galeria é puramente instinto, é uma foto de reação, sem concepção por trás”, afirma o editor, que compara a imagem a uma cena dos filmes 007 ou Cães de aluguel. “O fato de  estar levemente errada, com o pé cortado, dá uma sensação mais genuína à imagem, nesses tempos em que a gente não sabe mais o que é verdade ou mentira. Isso não quer dizer que seja uma foto feia. Ela tem uma luz a que não estamos acostumados no fotojornalismo, sem querer acaba tendo uma estética sofisticada”.

A premiação de um fotojornalismo menos cerebral é comemorada por Liohn, que já havia criticado a escolha de Nissen em 2015 – não pela qualidade da imagem, mas porque o tema em torno da foto era homofobia, que, segundo ele, deveria ser posta em evidência pela violência, não por um momento de ternura. “Durante os oito anos do governo Obama, o processo jornalístico foi muito saneado. Quando foi a última vez em que apareceu a foto de um soldado ocidental morto? Todos chamaram a atenção para a morte de dois civis no Iêmen logo após Donald Trump assumir. Mas soldados e civis continuavam morrendo antes e ninguém falava nada. Vi 17 civis morrerem numa mesma casa em Mossul”, conta. “A foto do assassinato na galeria é importante até para reabrir o debate sobre o que é violência.”

O turco Burhan Özbilici capta uma violência que irrompe inesperadamente. O fotógrafo da Associated Press voltava para casa e decidiu passar na abertura da exposição de fotografia. Uma pauta sem grandes expectativas acabou gerando um registro que fotojornalistas como Ana Carolina Fernandes consideram raro no cotidiano de trabalho. “Trabalhei 25 anos em jornais diários, não vemos todos os dias um flagrante dessa magnitude”, diz ela. “O Burhan teve sangue frio e maturidade, além de luz, distância e lente certas. A foto é quase surreal, não se vê sangue. É um homem-bomba de terno e gravata, como se fosse ficcional. O assassino parece um personagem do Cães de aluguel, ou mesmo o Elvis Presley”.

A clássica pose de Elvis dançando com braços em diagonal, para cima e para baixo, foi usada pelo fotógrafo sul-africano Adam Broomberg, no lugar da foto de Özbilici, para criticar o prêmio. Ele diz que “o evento foi coreografado [pelos terroristas] para criar a imagem” e, como Franklin, acredita que a premiação possa encorajar atos semelhantes. “Para onde você direciona os olhos das pessoas é a coisa mais política que pode fazer”, afirmou em sua página no Facebook. Procurado, Broomberg se recusou a dar entrevista porque a matéria reproduziria a imagem de Özbilici.

Mesmo antes da premiação, outras vozes já haviam manifestado desconforto. Editor do site American Suburb X, o fotógrafo e colecionador americano Brad Feuerhelm escreveu sobre o “efeito Hollywood” da imagem,  poucos dias depois de sua publicação. Se o flagrante é raro porque difícil de registrar, a foto é “superfamiliar”, diz o editor, uma repetição de outras já vistas e revistas – justamente por seu caráter cinematográfico, apontado por tantos fotógrafos, que fazem referências imediatas a cenas de James Bond e de filmes de Quentin Tarantino. Para Feuerhelm, o assassino pensou no potencial visual do ato, ou seja, a foto seria uma peça de propaganda assim como o material de divulgação do Estado Islâmico, que explora da facilidade de acesso a câmeras e o tempo real da internet.

Vencedor do segundo lugar do WPP 2017 na categoria Questões Contemporâneas – Histórias, Lalo de Almeida rejeita a comparação.  “Sou contra publicar cenas de degolação do EI porque elas são marketing. Este caso é totalmente diferente, porque não há qualquer combinação entre assassino e fotógrafo. Do contrário não publicaríamos a ação de maluco algum, nem resultados de atentados. O momento em que estamos vivendo é este”, afirma o fotógrafo da Folha de S. Paulo, premiado com uma reportagem sobre vítimas da Zika.

Outro premiado brasileiro neste ano, Felipe Dana (terceiro lugar na categoria Notícias – Individuais) acredita que o WPP gosta de gerar esse tipo de polêmica. Como Lalo, ele considera a discussão relevante, mas também escolheria o registro de Özbilici. “Entendo a preocupação com a exposição que a foto terá a partir de agora, mas não a interpreto como propaganda nem premiação do terrorismo. O fotógrafo é quem foi premiado. É um momento dificílimo de se registrar e ele o fez muito bem, com uma foto impactante, chocante”, diz Dana, cuja imagem vencedora mostra a explosão de um carro-bomba perto das forças especiais iraquianas em Mossul, em disputa de área dominada pelo Estado Islâmico.

O fotógrafo Mauricio Lima, um dos vencedores do Prêmio Pulitzer e também do WPP em 2016, diz que não conhece os critérios da escolha, já que nunca participou do júri, mas acha incoerente dar o título de foto do ano a uma entre mais de 80 mil imagens. “Por que o assassinato de um indivíduo dentro de uma galeria de arte é mais relevante do que a interminável matança na Síria, a exploração de mão de obra infantil no Congo ou a barbárie ocorrida nas Filipinas?”, pondera, por e-mail. “Minha resposta são questionamentos. Esse deve ser o papel da fotografia. Nesse sentido, a imagem do ano, que possui a potência de um cruzado do Mike Tyson, cumpriu sua incoerente função com maestria.”

Já a fotógrafa Marizilda Cruppe, que foi jurada do WPP em 2010 e 2011, diz que poucos estariam técnica e emocionalmente preparados para “congelar o horror” como fez Özbilici. “Fotografias de pessoas mortas e feridas circulam aos milhões, são acessíveis em qualquer ferramenta de busca. Muitos leitores, que se julgam sensíveis, não querem ver uma imagem dessas no seu jornal, mas alimentam a rede de violência com atitudes cotidianas preconceituosas, racistas, discriminatórias. É a soma de nossas atitudes e escolhas que alimenta o horror. Uma fotografia também traz consigo a história de quem a vê. Burhan Özbilici colocou muita gente diante do espelho com a sua foto. Não gostar do que está refletido incomoda.”///

 

Suzana Velasco é jornalista. Trabalhou por 12 anos no jornal O Globo. É autora do livro A imigração na União Europeia: Uma leitura crítica a partir do nexo entre securitização, cidadania e identidade transnacional (EDUEPB, 2014).

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