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Reescrever a história com imagens: o Líbano de Akram Zaatari

Juliana Monachesi Publicado em: 20 de outubro de 2016
Akram Zaatari, Outra resolução [still], 1998-2013. Cortesia do artista

Akram Zaatari, Outra resolução [still], 1998-2013. Cortesia do artista

O Líbano sofre de um déficit iconográfico crônico. Arruinado por uma guerra civil, entre 1975 e 1990, o país, que se tornara uma República apenas 32 anos antes da eclosão dos conflitos entre cristãos maronitas e refugiados palestinos – que afluíram em grande número após a criação do Estado de Israel –, teve sua capital completamente destruída ao longo dos 15 anos de guerra. Um grupo de artistas e intelectuais de Beirute que viveu, ali ou no exílio, o esfacelamento da cultura material libanesa, entre eles Walid Raad, Akram Zaatari, Mona Hatoum, Mohamad Soueid, Rabih Mroué e Jalal Toufic, vem dedicando sua pesquisa a catalogar e reinventar documentos, arquivos fotográficos e a própria história da arte libanesa e do contexto estético-político contemporâneo do Oriente Médio.

A exposição Akram Zaatari – Amanhã vai ficar tudo bem, em cartaz até 3 de dezembro no Galpão Videobrasil, em São Paulo, é uma densa reflexão sobre a imagem. Abre com Dance até o fim do amor (2011), uma videoinstalação em quatro canais, projetados em painéis dispostos como uma sala com as quatro quinas vazadas. A sala fake, entre público e privado, parece o espaço ideal para vivenciar a sequência de fotografias recolhidas da internet e vídeos retirados do YouTube e de outras fontes digitais. De temática homoafetiva, as imagens apropriadas pelo artista retratam casais fazendo selfies, se beijando ou em fotos tipicamente turísticas, em lugares como Egito, Emirados Árabes, Arábia Saudita, Palestina, Iêmen e Líbia. É um retrato da cultura gay em uma região onde a homossexualidade é considerada ilegal, sendo que alguns deles estipulam pena de morte para este tipo de “crime”.

Akram Zaatari - Dance to the End of Love

Akram Zaatari, Dance até o fim do amor [still], 2011. Cortesia do artista

Com tal contexto em mente, o espectador tende a se comover com os vídeos de jovens rapazes cantado músicas românticas árabes que, em geral, tematizam a perda ou a impossibilidade do amor. “Nós nos esquecemos?/ Ou isto é vida?/ O pulsar do nosso coração,/ nossas memórias, nossos momentos juntos/ Nós nos esquecemos? / Ou estava acontecendo em meio ao caos da nossa vida?”, canta um deles (os vídeos têm legendas em português e inglês). “Por que você se importaria?/ Se vivo ou morro, você não tem o direito de perguntar/ E não há nada que você possa dizer/ Isto mostra, com certeza, como você mudou” é parte da letra de outra canção, entonada por um garoto musculoso que gravou seu vídeo em uma sala vazia, repleta de motivos arquitetônicos árabes. Chama a atenção o fato de suas roupas e corte de cabelo serem totalmente ocidentalizados, assim como os da maioria dos “personagens” da grande ópera-remix de Zaatari.

Entre vídeos de interpretações apaixonadas e mosaicos de fotos de homens sozinhos ou em grupo e de casais, uma sequência de fotografias com uma marca d’água atravessada em diagonal sobre a imagem, com as palavras “evaluation version” escritas, sugere que parte do material coligido pelo artista vem de sites de relacionamento. Zaatari também entremeia no conjunto vídeos de fisiculturismo e de motoristas fazendo acrobacias, como dirigir um carro ou caminhonete sobre duas rodas ou uma moto sobre a roda traseira. O artista costuma sublinhar, em entrevistas, que seus temas são escolhas políticas, feitas contra o domínio do discurso sexual masculino ou o medo dos movimentos de resistência que contribuem para formatar novas identidades nacionais baseadas na religião. A opereta termina com o vídeo de dois jovens em um ambiente colorido dançando em estilo raver, num tom mais otimista, com paleta de cores mais quente (um dos garotos veste calça vermelha, o outro, camiseta amarela e calças verdes), e num ritmo mais equalizado com o tempo atual. O título da obra, Dance até o fim do amor, sugere o contrário. Mas não terminam aqui as ambiguidades da obra do libanês.

Em seguida, uma bancada de madeira com iluminação direcionada reúne seis desenhos eróticos, o trabalho mais explícito da mostra. Intitulada Desenhos do X-Tube (2016), a série traz, abaixo de cada desenho de traço singelo, apesar da temática por vezes escatológica, o link de onde Zaatari retirou a foto que serviu de modelo, todos sites x-rated, como X-Tube e GayTube. Outra obra sobre a homoafetividade? Sim e não. Trata-se mais de um ensaio sobre a onipresença da cultura digital mediando as relações humanas contemporâneas. Isso fica claro na videoinstalação que os curadores Solange Farkas e Gabriel Bogossian escolheram para ocupar a sala seguinte: Amanhã vai ficar tudo bem (2010), uma conversa de ex-namorados por escrito, que emula um chat, mas está ambientada em uma máquina de escrever. O “protagonista” escreve em vermelho, retorna para corrigir um erro datilográfico batendo outra letra em cima da anterior, e a resposta, em preto, surge inteira, de uma vez, de baixo para cima, como se a máquina de escrever estivesse conectada à internet recebendo a outra ponta do diálogo em tempo real.

Akram Zaatari, Amanhã vai ficar tudo bem [trecho], 2010. Cortesia do artista

Parece estar em jogo aqui uma ideia de remediação, o conceito de Bolter e Grusin (remediation), segundo o qual toda nova mídia carrega características das mídias anteriores, ao mesmo tempo que impacta essas mesmas mídias, forçando-as a se reinventar. A ecologia midiática envolvida nesse processo de mútua determinação estrutural é, de certa maneira, o assunto dos três trabalhos discutidos anteriormente. O tempo da escrita à máquina de uma carta a um antigo amante, por exemplo, não daria ensejo a comentários à queima-roupa como “Você gostava das minhas costas”, em resposta à acusação de que o outro tinha ido “embora de repente; você me deu as costas”. O curso da conversa não podia ser mudado num instante em uma troca de cartas. Da mesma maneira, uma conversa de chat é uma construção narrativa que pode sintetizar uma história de amor, assim como fizeram os romances epistolares.

É como se Zaatari perguntasse: como se escreve uma história? Como reescrever a história contemporânea do Líbano? São perguntas que pautam seu engajamento na Fundação Árabe da Imagem, instituição que fundou junto com Walid Raad, em 1997, em Beirute, com o objetivo de preservar, difundir e estudar fotografias do Oriente Médio, Norte da África e da diáspora árabe, do século 19 até o presente. A coleção conta hoje com 300 mil imagens. Na exposição no Galpão Videobrasil, elas comparecem, indiretamente, na obra Outra resolução (1998-2013). Aqui, inclusive, ocorre uma guinada curatorial. Porque o foco dos dois trabalhos centrais da mostra é o Líbano contemporâneo, em registro mais ficcional, mais despersonalizado, menos confessional e menos intimista.

Akram Zaatari, Outra resolução [trecho], 1998-2013. Cortesia do artista

Outra resolução consiste de 12 micro projeções na parede. São vídeos de adultos praticamente imóveis, reencenando poses de crianças em fotos antigas, pertencentes à Fundação Árabe da Imagem. Uma garotinha acenando para a câmera fotográfica em 1966 foi “remediada” em uma mulher com vestido curto, semelhante ao da menina, dando um tchau em uma rua da Beirute de hoje, e ainda por um homem, segurando uma bolsa, como também fazia a garotinha na foto. Gestos repetidos para atestar transformações profundas. Em Vistas explodidas de Beirute (2014), ponto alto da exposição, Zaatari homenageia seus heróis cinematográficos. Embora não dedique o filme a um cineasta – como faz, por exemplo, em Amanhã vai ficar tudo bem, dedicado a Éric Rohmer – existem, aqui, referências claras a Michelangelo Antonioni e David Lynch.

Vistas explodidas de Beirute retrata a Beirute pós-guerra, fazendo dela a protagonista (Antonioni) de um enredo algo delirante (Lynch), que envolve dois rapazes morando no meios das ruínas, entediados – um deles está sempre olhando a tela do celular. A vida se desenrola ao redor deles, operários construindo e consertando coisas, um rapaz que toma banho numa ducha instalada fora da casa (ou numa casa a que o olhar do espectador, transformado em voyer, tem acesso justamente porque as paredes não existem mais?), novas construções escaneadas pela câmera. O personagem da ducha ressurge mais tarde na trama, caminhando pela cidade e também com os olhos pregados na tela do celular. Ele volta para casa. É noite e os dois garotos do início também caminham, procurando alguma coisa. Como em Estrada perdida, uma espécie de interferência na imagem faz a trama saltar. Agora os garotos estão dentro da casa do outro. Corta para uma viatura chegando ao local e dois policiais abestalhados que se interrogam (o diálogo acontece atrás de uma vidraça, inacessível, como na obra-prima de Lynch), incrédulos, sobre o ocorrido.

Akram Zaatari, Vistas explodidas de Beirute [trecho], 2014. Cortesia do artista

O que teria ocorrido ali? Um crime? (Antonioni novamente.) Não saberemos. A conclusão é uma vista aérea de uma cidade em ruínas, espaço em que muito fica sem explicação, sem conclusão, suspenso no ar. O trabalho de Akram Zaatari é essa pergunta sem resposta, com suas ambiguidades e paradoxos. Um retrato do mundo em que vivemos.///

 

Amanhã vai ficar tudo bem, de Akram Zaatari
Galpão Videobrasil
Até 3 de dezembro de 2016

 

Juliana Monachesi é jornalista especializada em artes visuais, crítica de arte e curadora independente. A partir de novembro, assina a curadoria de Atlas Abstrato no Centro Cultural São Paulo, uma pesquisa sobre abstração no acervo da Coleção da Cidade.

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