Ensaios

As durações do rastro

Julia de Souza & Jordi Burch Publicado em: 30 de agosto de 2016
Berlim, 2016

Berlim, 2016

Berlim, 2016

Berlim, 2016

Berlim, 2016

Berlim, 2016

Berlim, 2016

Berlim, 2016

Berlim, 2016

As durações do rastro
por Julia de Souza

O tempo correu como um mensageiro com notícias urgentes.
 Wislawa Szymborska

A arquitetura talvez seja a forma de arte mais ligada à noção de coletivo. Sua recepção, mais que em qualquer outra manifestação artística, se dá por meio da partilha: as obras arquitetônicas, por mais escusas, irrompem na paisagem como tópicos de um espaço sensível que é, em larga medida, comum.

Além da vocação coletiva da arquitetura, há outro aspecto de seu acolhimento que pertence à esfera do particular. Habitar uma casa, tê-la como anteparo de seus afetos e transformá-la continuamente é próprio do humano.

Nada garante a preservação de um edifício: guerras, intempéries e até a má engenharia podem comprometer sua permanência ou configuração original. Ainda assim, há uma qualidade de duração na arquitetura que supera as demais composições humanas. Numa habitação social, a tensão entre o particular e o universal parece ocorrer de maneira mais explícita.

Entre fevereiro e março de 2016, Jordi Burch fotografou os bairros sociais projetados pelo arquiteto português Álvaro Siza Vieira em quatro cidades europeias: Bairro da Bouça, no Porto, Campo di Martre, na Giudecca, em Veneza, Bonjour Tristesse, em Berlim, e Schilderswijk West, em Haia, datados respectivamente de 1973, 1983, 1984 e 1985. Em 1974 instituiu-se em Portugal o SAAL, programa de intervenção urbana que, na esteira do processo de redemocratização iniciado com a Revolução de 25 de Abril, renovou a política de habitação do país. O programa tinha como princípios fundamentais o diálogo ativo com os movimentos sociais e a apropriação do espaço urbano pelas camadas populares. Surge então o bairro da Bouça, cujo projeto inicial previa um conjunto habitacional para funcionários judiciais, mas foi readaptado por Siza para receber, no contexto do SAAL, maior numero de moradores. A partir daí, o arquiteto passa a receber convites para desenvolver, em outros países, projetos ligados à premissa do direito à cidade.

A Bienal de Arquitetura de Veneza deste ano elegeu os bairros sociais como tema do pavilhão dedicado a Álvaro Siza. Junto a uma equipe de cinegrafistas, Jordi Burch foi convidado para acompanhar o retorno de Siza aos quatro bairros, nos meses que antecederam a Bienal. Algumas fotografias dos bairros tomadas nessa ocasião foram expostas na Bienal, mas a experiência levou o fotógrafo ao desenvolvimento de um trabalho paralelo, que se desviou do retrato pretensamente objetivo dos conjuntos habitacionais.

Bairro da Bouça, Porto, 2016

Bairro da Bouça, Porto, 2016

Bairro da Bouça, Porto, 2016

Bairro da Bouça, Porto, 2016

Bairro da Bouça, Porto, 2016

Bairro da Bouça, Porto, 2016

Bairro da Bouça, Porto, 2016

Bairro da Bouça, Porto, 2016

Bairro da Bouça, Porto, 2016

Bairro da Bouça, Porto, 2016

Bairro da Bouça, Porto, 2016

Para Burch, o processo de tal registro, além de confirmar a importância da arquitetura na experiência coletiva e social, revelou uma atenção inesperada ao detalhe: as manchas e eflorescências que se impõem nas superfícies; a incidência da luz solar que é própria de cada espaço por sua latitude irrepetível e as marcas que esses raios estampam ao insistirem sobre um plano; os objetos de eleição de cada morador, que marcam sua apropriação do espaço, mas que às vezes permanecem apenas por efeito do esquecimento ou hábito; os vestígios incontornáveis do tempo que se confundem com as inscrições humanas.

O próprio Siza reconhece a importância dos elementos residuais nas ocupações humanas, e cita alguns deles: “rochas emergentes, árvores, muros e caminhos de pé posto, tanques, depósitos e sulcos de água, construções em ruínas, esqueletos de animais”. Essa perspectiva vai ao encontro da noção de rastro. Rastros são elementos residuais e fragmentários que podem ser lidos como cifras de trajetórias que os ultrapassam. Assim, é possível pensar um rastro como um meio favorável à interpretação do passado. Em um trecho de suas Passagens em que disserta sobre a fotografia, Walter Benjamin defende que encaremos “os elementos residuais e de decadência como precursores – de certa forma como miragens das grandes sínteses que vêm em seguida. Estes universos de realidades estáticas devem ser focalizados em toda parte”. Há nesse excerto uma sugestão de que o rastro, além de lançar luz sobre o passado, possui um caráter projetivo; assim, pode conter em si um pequeno mundo e, quem sabe, contribuir à interpretação daquilo que atravessa o homem.

Os habitantes desses prédios foram retratados como estrangeiros em sua própria morada. Em situações encenadas, assemelham-se a bonecos de cera, carentes de aura; sua própria imagem não é capaz de transmiti-los plenamente. Como a soleira que, na arquitetura, não é uma fronteira, mas tem a função de permitir os movimentos de transição entre territórios distintos, esse homem que surge nas imagens é uma zona intermediária entre o espaço terreno da construção humana e a vastidão do espaço cosmológico que nos excede. Um homem que acumula fragmentos acidentais daquilo que em algum momento julgou estar sob seu domínio: edifício, casa, morada.

Para além da referência à importante obra de Siza, As durações do rastro tem como horizonte a compreensão da arquitetura como espaço sensível privilegiado, em sua recepção coletiva e particular; do aspecto cosmológico dos rastros e, ademais, do caráter transitório da experiência humana. Uma série, por assim dizer, sobre a imensidão do particular. Pois se é inalcançável abarcar o mundo em sua totalidade, talvez haja, no detalhe, no espaço íntimo, configurações sintéticas daquilo que nos escapa.///

Giudecca, Veneza, 2016

Giudecca, Veneza, 2016

Giudecca, Veneza, 2016

Giudecca, Veneza, 2016

Giudecca, Veneza, 2016

Giudecca, Veneza, 2016

Giudecca, Veneza, 2016

Giudecca, Veneza, 2016

Haia, 2016

Haia, 2016

Haia, 2016

Haia, 2016

Haia, 2016

 

Jordi Burch nasceu em Barcelona, em 1979. Mudou-se para Lisboa ainda criança e vive em São Paulo há oito anos. Fez parte do coletivo Kameraphoto e em 2015 lançou o livro Havia sol e éramos novos.

Julia de Souza (São Paulo, 1986) é poeta e mestre em literatura pela USP, autora de Covil (7Letras, 2013) e do conto Moinho (e-galáxia, 2015).

 

GALERIA é a seção do site da ZUM dedicada a ensaios e séries fotográficas.

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