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Saul Leiter (1923-2013), o retratista do fluir da vida

Dorrit Harazim Publicado em: 7 de janeiro de 2014
Taxi (1957)

Taxi (1957)

E de repente, naquele longínquo início de 1950,  quando o cotidiano da vida americana  parecia destinado a permanecer imortalizado nas imagens monocromáticas de Robert Frank, William Klein, Diane Arbus ou Weegee,  Nova York se viu banhada em cores.

Tudo obra da visão  pioneira de Saul Leiter,  filho de um erudito rabino nascido em Pittsburgh que fez do East Village em Manhattan sua pátria definitiva e fotografou Manhattan em amarelo, verde, vermelho e azul Kodachrome como ninguém.

Leiter morreu no dia 26 do último novembro, aos 89 anos, 60 dos quais viveu ora esquecido pelo circuito das artes ora sendo redescoberto e cultuado como joia rara. Seu reconhecimento final pelas grandes instituições mundiais ocorreu somente a partir de 2006, quando já passara dos 80 anos… Em depoimento à Fundação Henri Cartier-Bresson de Paris, que tinha reservado um andar para sua obra em preto e branco e dedicara outro andar inteiro para os trabalhos em cor, ele explicou assim as vantagens de ter os passos ignorados: “Creio que foi o que me permitiu olhar à minha volta e reagir sem estar preparado de antemão. Pude ver o que os outros não viram.”

Embora gravitasse em torno da chamada New York School of Photography, o celebrado grupo de fotógrafos da primeira metade do século passado que compartilhava experiências, temáticas e influências, Leiter parecia ter um filtro próprio e pessoal quando olhava para o mundo à sua volta.

E tinha mesmo. Era o seu filtro de pintor expressionista. Através dele inundou, coloriu e definiu a composição de toda sua obra fotográfica.

Leiter só foi manusear uma Rolleiflex pela primeira vez, e mesmo assim por mera curiosidade, quando começava a se firmar como uma das promessas do expressionismo abstrato americano. Estava com 23 anos, havia se instalado no East Village nova-iorquino e  já conseguira  ter um de seus quadros incluído numa grande mostra de arte abstrata do Instituto de Arte de Chicago. O fundo amargor que causara no pai ao trocar o estudo do talmude pela formação acadêmica em artes plásticas estava consolidado e nada mais  parecia desviá-lo da escolha feita. “Dei as costas para tudo em que meu pai acreditava”, repetiria em tom confessional até o final da vida.

Foi do casulo daquele jovem pintor que emergiu o fotógrafo Saul Leiter. Com a Rollei na mão e rolos de filme Kodachrome na câmera passou a retratar vinhetas do cotidiano num estilo em nada semelhante ao de fotógrafos mais conhecidos do grupo como Richard Avedon, Weegee, Helen Levitt ou Alexey Brodovitch, aém de Frank, Klein ou Arbus.

As imagens do autodidata Leiter eram envolventes e luminosas, ternas. Mesmo quando vibrantes, emanavam quietude. Sua obra era contemplativa, preocupada com cor e geometria. “Ver é uma tarefa bastante negligenciada”, costumava dizer. Preferia não estatelar em demasia a sua intenção nem o seu foco. “Gosto quando não sabemos por que o fotógrafo fez determinada foto; e quando de repente, sem sequer saber a razão de estar olhando para determinada imagem, descobrimos algo nela, só então começamos a ver. Gosto dessa confusão”, ensinava.

Snow (1960)

Snow (1960)

A Kodak havia lançado o primeiro filme colorido para câmeras de 35mm no ano de 1936, mas o seu uso permaneceu virtualmente confinado à publicidade ou à fotografia amadora por mais de uma década. O uso da cor na fotografia como forma de expressão artística era considerado um estorvo, senão um anátema, por todos os nomes de peso da New York School, exceto por uns poucos desbravadores como Ernst Haas e Helen Levitt. Do outro lado do Atlântico, Bresson decretara tratar-se de uma ferramenta superficial e suspeita.

Saul Leiter, ao contrário, serviu-se do filme Kodachrome como de uma paleta de tintas e nele deixou registrado seu olhar de pintor e sua visão mansa da vida.

Enquanto os contemporâneos buscavam captar em preto e branco a ansiedade urbana e o ritmo acelerado da Manhattan que emergia, Leiter ficava à espera de momentos de humanidade corriqueira, espreitava fragmentos universais do cotidiano. Sua obra não transmite urgência nem tensão. É resultado de um olhar flaneur, amoroso e intimista. Mais do que retratar alguém ou algo específico, suas imagens procuram evocar uma atmosfera, traduzir sensações.

O desinteresse e a abissal inépcia de Leiter para a autopromoção eram conhecidos. Ainda assim, nada justifica o esquecimento a que foi relegado por curadores de museu ao longo das cinco décadas mais produtivas de sua carreira. Em 1953, chegou a ter algumas de suas fotos expostas no MoMA, na mostra intitulada “Always the Young Strangers”, organizada por Edward Steichen. Quatro anos depois, outras 20 imagens integraram nova coletiva no mesmo museu. Mas depois disso, o deserto. Nada até  2006, quando foi publicada a monografia “Saul Leiter: Early Color”, seguida da primeira individual no Museu de Arte de Milwaukee. Durante meio século, portanto, sua obra sumira da vista pública.

Só que ao longo deste longo interregno Leiter nunca parou de fotografar. Nem de pintar guaches, aquarelas e quadros. Ganhava a vida como fotógrafo de moda e também ali deixou uma marca de grande originalidade – seus enquadramentos e composições de modelos, roupas e acessórios servem de baliza para fotógrafos do gênero até hoje.

Arrojado no estilo, Leiter sempre fugiu de extravagâncias no comportamento. Certa vez, recebeu carta branca da grife Comme des Garçons para fotografar uma nova coleção em qualquer locação de sua escolha. Qualquer exotismo, luxo ou distância lunar de Manhattan receberia aprovação da marca japonesa. Qual foi a escolha de Leiter? Ambientou o catálogo inteiro nas ruelas do East Village.

Brigitte Woischnick,  curadora de uma grande  retrospectiva Leiter realizada no complexo de Deichtorhallen, em  Hamburgo,  cunhou o termo “passeador” para definir o olhar do fotógrafo por trás de sua câmera – ao mesmo tempo relaxado e de uma curiosidade contínua. Ele conseguia transformar qualquer cena do cotidiano, como a do operário emoldurado por tapumes coloridos (Mondrian Worker), em arte quase abstrata. Ou o inverso. Conseguia capturar ilusões passageiras com precisão científica. Cortinas, brumas, reflexos, chuva, a ponta de um guarda-chuva saindo da moldura, a mão de um passageiro de yellow cab – tudo lhe servia de linguagem. Como escreveu a crítica de arte Roberta Smith, Leiter fotografou percepções, não pessoas. Preferia que as  figuras humanas  de suas fotos fossem percebidas através de frestas, descobertas atrás de cortinas,  complementadas pela imaginação, como em Dark Pink Umbrella.

Harlem (1960)

Harlem (1960)

 Ao lado da companheira Soames Bantry, com quem viveu por 44 anos e cuja silhueta está em Walk With Soames, de 1958, Leiter foi quebrando regras e escancarando as fronteiras da fotografia sem fazer alarde. A ponto de enciclopédias americanas citarem  até hoje os anos 1970 de William Eggleston e Stephen Shore como sendo os do desbravamento da fotografia a cor – quando Leiter já tinha revelado o mundo em Kodachrome duas décadas antes.

Por sorte o documentarista britânico Tomas Leach ficou tão perplexo com a escassez de material visual e sonoro sobre Leiter que decidiu procurá-lo no East Village dois anos atrás e convencê-lo a se deixar filmar.

A abordagem deu certo e In No Great Hurry – 13 Lessons in Life with Saul Leiter  tem sido saudado em vários festivais desde seu lançamento seis meses atrás. O grande  mérito do filme é que são 75 minutos de puro Leiter, sem depoimentos de curadores, críticos ou historiadores de arte a explicar sua obra. Leach percebeu que a singeleza do homem Saul Leiter era tão rica quanto a dimensão do pioneiro da cor, e deixou rolar a câmera com foco somente nele.

Para Leiter, tudo bem. Ele já explicara sua filosofia de vida anteriormente: “Não vivo imerso em autoadmiração. Quando estou ouvindo uma peça de Vivaldi ou alguma música japonesa, ou se estou cozinhando macarrão às 3 da madrugada e me dou conta de que falta o molho, a fama me é de pouca serventia.”

Veja aqui uma galeria de imagens de Saul Leiter.