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Sangue novo na guerra

Dorrit Harazim Publicado em: 16 de janeiro de 2014

Morrer em Alepo, o epicentro da insana carnificina que há dois anos desmembra a Síria, equivale a virar pó da história. Morrer em Alepo na semana de Natal, quando o resto do mundo menos quer ouvir notícias de uma guerra incompreensível, é ainda mais solitário e clandestino. Molhem Barakat foi a exceção. Fotógrafo local a serviço da agência Reuters, seu nome só adquiriu identidade, peso e significado mundial com a notícia de que morrera.

Não pelas imagens marcantes de sua breve carreira de repórter-fotógráfico. Mas por um dado biográfico que desencadeou uma oportuna reflexão sobre a cobertura de conflitos armados nos tempos atuais: Barakat era apenas um adolescente quando morreu fotografando, a serviço de uma das maiores agências noticiosas mundiais, a destruição final do hospital de Alepo. Tinha 18 anos incertos.

Na página do Facebook que mantinha em maio, com 428 seguidores, listava interesses variados: as cantoras Shakira e Katy Perry, o programa “Arabs Got Talent”, a BBC, a Revolução na Síria. Na foto do perfil, se mostrava de frente, a cara limpa e risonha, vestindo agasalho com o brasão da Grã Bretanha.

Data da mesma época uma crônica escrita pela jornalista inglesa Lucinda Smith, que retornava a Alepo para cobrir o multifacetado conflito sírio para a BBC e o Channel 4. Intitulada “Meu amigo, aspirante a terrorista”, a crônica era sobre Barakat. A repórter o conhecera três meses antes quando ele era um adolescente jovial e expansivo de 17 anos. Gostara do jeito franco do moleque. Tornaram-se amigos. No reencontro, ela deparou-se com um jovem confuso e indeciso entre tornar-se terrorista ou virar fotógrafo. Barakat havia se inscrito na lista de candidatos a membro da Frente Al-Nusra, milícia islamista afiliada à Al Qaeda, e aguardava o veredicto. “Espero ser aceito para um dia poder detonar uma bomba suicida contra o regime do meu país”, contou.

E elencou os motivos: desde a inscrição, passara a receber mensalmente 11 mil libras sírias, o que era motivo de orgulho para um adolescente sem trabalho e sem escola numa zona de guerra, cujo sonho era conhecer Londres. Esclareceu que não faria atentados na capital inglesa, só contra a Síria. Seu tio e avô tinham sido mortos pelo regime de Hafez al-Assad.

Observando o jeitão descolado do jovem – jeans, camiseta com logo da Gucci e corte de cabelo estiloso –, a jornalista quis saber se ele deixaria crescer a barba ao se tornar terrorista. “Acho que não vou ser aceito”, respondeu Barakat. Alguém da Al-Nusra tinha ido investigar sua página no Facebook e não gostara de ver fotos suas com amizades femininas. “Mas talvez eu possa ser útil para transportar armas, pois tenho trânsito livre nos setores controlados pelo governo. Parte da minha família é funcionária pública e apóia Assad”.

De fato, suas credenciais para terrorista não foram consideradas suficientes. O grupo Al Nusra tampouco lhe confiou tarefas secundárias. Em compensação, de tanto conviver com enviados da mídia internacional a sua cidade, servir-lhes de guia, fazer amizades e começar a registrar o que via com seu próprio smartphone, Molhem Barakat havia se tornado, quase sem notar ou querer, uma valiosa testemunha ocular do esfacelamento da vida a sua volta.

E como tantos jovens vivenciando a desintegração de seu país, passou a submeter à Reuters as imagens que captava. Em si, esse tipo de colaboração entre grandes empresas jornalísticas e freelancers locais em regiões de conflito nada tinha de novo. O estranhamento estava na idade do jovem sírio.

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Quase cinco décadas atrás, a guerra do Vietnã já havia enterrado o mito de que a cobertura dos grandes conflitos mundiais precisava ser feita por profissionais estelares das redações centrais, enviados especialmente às zonas de combate. Até então, relembrou recentemente Santiago Lyon, o diretor de fotografia da agência Associated Press (AP), pensava-se que somente um fotógrafo enviado pela matriz saberia traduzir em imagens a linguagem que o leitor ou o telespectador de seu país era capaz de compreender.

O mérito por essa mudança de curso se deve em boa parte a um alemão chamado Horst Faas, que comandou como ninguém o batalhão de fotógrafos da AP na cobertura da guerra do Vietnã. Ao longo de mais de dez anos, Haas arregimentou, treinou e poliu um eclético pelotão de fotojornalistas na sucursal de Saigon da agência. Garimpava talentos novos junto à população local, munia-os com rolos de filmes e câmeras e ensinava-os a olhar e ver, antes de despachá-los para a rua. Entre os recrutados estava Huỳnh Công Út – logo apelidado de Nick Ut, nome com o qual entraria para a galeria dos grandes. É de sua autoria a imagem da menina vietnamita nua, correndo em estrada de terra, com a pele em frangalhos pela ação de bombas de napalm.

Desde então, tornou-se prática corrente recrutar cidadãos habilidosos como colaboradores em “hot spots” de erupções contínuas ou intermitentes como o Iraque, Afeganistão, Egito, Bangladesh e Líbia. Vários se tornaram profissionais contratados. Alguns, hoje, ocupam cargos de chefia.

Nenhum, porém, se arriscaria a trabalhar com adolescentes na Síria. Nem mesmo Patrick Baz, que tinha 12 anos quando foi recrutado para fotografar a guerra fratricida entre cristãos e muçulmanos no Líbano e hoje dirige um escritório regional da agência France Presse.

Baz colaborara com um projeto do Institute of War and Peace Reporting, de Londres, que visava selecionar e formar quinze cidadãos sírios em fotojornalismo. O saldo final, contudo, foi aterrador: um morto, um sequestrado, dois refugiados na Turquia, vários desaparecidos ou que simplesmente desistiram de fotografar. “A Síria é um buraco negro”, resumiu Baz.

Hannah Smith, a autora que escrevera a crônica sobre Barakat, teve o mesmo cuidado. Preferiu não dar qualquer tarefa ao amigo “para não carregar nos ombros a responsabilidade por alguém tão jovem, tão ávido, tão sem treinamento, numa zona de guerra”.

Mas graças à Reuters, que lhe serviu de escoadouro, Barakat pode dar vazão a seu talento e aptidões com a intensidade própria às circunstâncias e ao destemor juvenil. Em pouco tempo tinha câmeras e duas lentes fornecidas pela agência. Acredita-se que recebia U$ 100 pela produção de dez fotos diárias e um bônus caso alguma dessas imagens fosse selecionada como a “foto do dia” pelo site do New York Times.

Suas imagens foram revendidas para publicações de prestígio como a New Yorker, o Guardian e o próprio Times, entre outros, com crédito pleno. Isto é: REUTERS/Molhem Barakat, mais a data e a legenda. Desta forma a agência garantia a autenticidade não só das imagens como dos dados enviados. Caso raro, tratando-se de imagens do conflito enviadas por um freelancer local. Leitores e telespectadores do mundo inteiro já se habituaram a ver cenas da Síria precedidas do aviso de que “não é possível confirmar a origem nem a veracidade das imagens apresentadas” – medida de precaução devido à intensa guerra de propaganda e manipulação travada pelas facções combatentes para conquistar a simpatia mundial.

Barakat retratou tanto o aspecto feroz dos combates como a adequação da população ao novo cotidiano. Captou momentos prosaicos, líricos, absurdos e desoladores que somente a convivência íntima, compartilhada, proporcionam. Foi um adolescente que a guerra transformou em testemunha/ participante/ fotojornalista/ militante precoce.

Morreu sem capacete nem colete à prova de balas, ao lado do irmão, que era militante do Exército da Síria Livre, fotografando a batalha entre rebeldes e forças do governo pela posse das ruínas do principal hospital de Alepo. 20 soldados e seis rebeldes também teriam morrido nesse confronto.

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A notícia da morte de Molhem chegou via Twitter na noite de 20 de dezembro, em post de um colega de profissão. Logo se espalhou pela tribo de jornalistas, fotógrafos, ativistas. O link com a notícia remetia à imagem das duas câmeras ensanguentadas do jovem, pousadas sobre uma mesa rústica ao lado de pedaços de pão pita e um pequeno pote de plástico ainda com comida.

Em decisão atípica para uma agência noticiosa, a Reuters aguardou o dia seguinte para divulgar o ocorrido, em nota sucinta e cuidadosa. Contrariando uma das regras básicas de todo manual de redação de obituários, omitiu a idade de Barakat.

Foi o bastante para que a questão ética da utilização de adolescentes locais em regiões de conflito adentrasse 2014 como uma das pautas mais urgentes para editores de coberturas de conflitos. E fez chegar à direção da Reuters uma série de questionamentos públicos por parte de representantes de mídias internacionais.

O mais incisivo foi Stuart Hughes, da BBC. Como, exatamente, morreu Molhem Barakat? Qual sua idade precisa? A agência o submeteu a treinamento prévio para a cobertura jornalística de guerras? Lhe forneceu capacete, colete, proteção ocular, celular? Qual a origem do equipamento fotográfico que usava? Ele tinha algum seguro de vida em seu nome? Lhe foi oferecido algum seguro? Ele era pautado ou trabalhava solto? Lhe foi acenada a possibilidade de eventual emprego definitivo?

A todas essas e mais perguntas, a venerável agência britânica criada em 1851 e hoje incorporada a uma multinacional que vale U$ 13 bilhões respondeu de forma opaca: “Estamos profundamente consternados com a morte de Molhem Barakat, que vendeu fotos para a Reuters como fotógrafo freelancer. Para melhor proteger os jornalistas que permanecem na perigosa e volátil zona de conflito, acreditamos ser impróprio acrescentar comentários neste momento”.

Greg Marinovich, experimentado repórter-fotográfico em coberturas de conflitos e co-autor de um livro indispensável sobre o ofício (O Clube do Bangue-Bangue), escreveu um texto em homenagem ao jovem sírio quando soube de sua morte. Marinovich é o primeiro fotógrafo sul-africano a ganhar o prêmio Pulitzer de Reportagem. Na fase mais bestial da violência racial nas cidades-dormitório de Johanesburgo, registrou passo a passo a horrenda agonia de um zulu queimado vivo.

“Às vezes nos sentíamos como abutres”, contou no livro. “Pisamos em cadáveres, metafórica e literalmente, e fizemos disso nosso ganha-pão. Porém nunca matamos ninguém. Acredito que salvamos algumas vidas. E talvez nossas fotos tenham feito alguma diferença.”

Hoje com 52 anos, Marinovich alerta as chefias de redação sobre a vulnerabilidade de jovens em zonas de conflito e a força que a sedução da aventura exerce sobre a garotada. “Dado que o Ocidente já decretou ser crime a utilização de crianças-soldados, seria de esperar que empresas internacionais ocidentais também evitassem usar adolescentes na cobertura de guerras”, escreveu. “Falamos muito sobre diamantes de sangue e nos recusamos a usar tênis fabricados pela exploração de mão-de-obra infantil, mas nada temos contra o consumo de imagens feitas por adolescentes que ganham migalhas [pelo que arriscam]”, conclui.

Marinovich sabe que o problema não se restringe à Reuters. Devido ao enxugamento financeiro nos conglomerados de mídia, o envio de correspondentes de guerra mundo afora tem diminuído ano a ano, e os períodos de permanência nas zonas de conflito ficaram mais curtos.

No caso da Síria, o surto específico de sequestros praticados contra jornalistas ocidentais, somado aos riscos já altos da própria matança, reduziu ao mínimo o número de enviados especiais para cobrir uma guerra que hoje está praticamente em mãos de freelancers.

Mesmo críticos como Marinovich reconhecem que foi através da Reuters que o adolescente sírio teve a oportunidade de narrar a história de seu país em guerra e de se tornar o olhar de sua gente e de sua família. “Talvez tenham evitado que ele fosse inexoravelmente arrastado para as fileiras de combatente”, admite o sul-africano.

A questão fundamental, contudo, permanece a mesma. O ponto de partida consta das próprias Diretrizes da Reuters postadas na página da agência na internet. O capítulo 2, sobre as “situações de perigo”, começa com a frase-chave: “A segurança de nossos jornalistas, sejam eles funcionários ou freelancers, é primordial…”

Se Molhem Barakat tivesse tido acesso ao que prometem os doze parágrafos seguintes, ainda assim ele talvez morresse da forma como morreu. Mas a Reuters certamente saberia sua data de nascimento. E teria o nome do parente indicado por ele para receber o eventual seguro de vida.

Dorrit Harazim é jornalista e documentarista brasileira. Nascida na Croácia durante a II Guerra Mundial, talvez venha daí seu interesse pelo papel da fotografia na história e pela história da fotografia como meio de comunicação.